quarta-feira, 11 de maio de 2011

Ao Correr da Pena, de José de Alencar

Ao Correr da Pena, de José de Alencar
Fonte:
ALENCAR , José de. Ao correr da pena. São Paulo : Instituto de Divulgação Cultural, [s.d.].
Texto proveniente de:
A Biblioteca Virtual do Estudante Brasileiro
A Escola do Futuro da Universidade de São Paulo
Permitido o uso apenas para fins educacionais.
Texto-base digitalizado por:
Marciana Maria Muniz Guedes - São Paulo/SP
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AO CORRER DA PENA
José de Alencar
(Crônicas publicadas no “Correio Mercantil”, de 3 de setembro de 1854 a 8 de julho de
1855, e no “Diário do Rio”, de 7 de outubro de 1855 a 25 de novembro do mesmo ano,
ambos os jornais do Rio de Janeiro).
PRIMEIRA PARTE
FOLHETINS DO “CORREIO MERCANTIL”
(De 3 de setembro de 1854
a 8 de julho de 1855)
3 de setembro
O título que leva este artigo me lembra um conto de fada que se passou não há muito
tempo, e que desejo contar por muitas razões; porque acho-o interessante, porque me livra
dos embaraços de um começo, e me tira de uma grande dificuldade, dispensando-me da
explicação que de qualquer modo seria obrigado a dar. Há de haver muita gente que não
acreditará no meu conto fantástico; mas isto me é indiferente, convencido como estou de que
escritos ao correr da pena são para serem lidos ao correr dos olhos.
Um belo dia, não sei de que ano, uma linda fada, que chamareis como quiserdes, a
poesia ou a imaginação, tomou-se de amores por um moço de talento, um tanto volúvel como
de ordinário o são as fantasias ricas e brilhantes que se deleitam admirando o belo em todas as
formas. Ora, dizem que as fadas não podem sofrer a inconstância, no que lhes acho toda a
razão; e por isso a fada de meu conto, temendo a rivalidade dos anjinhos cá deste mundo,
onde os há tão belos, tomou as formas de uma pena, pena de cisne, linda como os amores, e
entregou-se ao seu amante de corpo e alma.
Não serei eu que desvendarei os mistérios desses amores fantásticos, e vos contarei as
horas deliciosas que corriam no silêncio do gabinete, mudas e sem palavras. Só vos direi e
sito mesmo, é confidência, que, depois de muito sonho e de muita inspiração, a pena se
lançava sobre o papel, deslizava docemente, brincava como uma fade que era, bordando as
flores mais delicadas, destilando perfumes mais esquisitos que todos os perfumes do Oriente.
As folhas se animavam ao seu contato, a poesia corria em ondas de ouro, donde saltavam
chispas brilhantes de graça e espírito.
Por fim, a desoras, quando já não havia mais papel, quando a luz a morrer apenas
empalidecia as sombras da noite, a pena trêmula e vacilante caía sobre a mesa sem forças e
sem vida, e soltava uns acentos doces, notas estremecidas como as cordas da harpa ferida
pelo vento. Era o último beijo da fada que se despedia, o último canto do cisne moribundo.
Assim se passou muito tempo; mas já não há amores que durem sempre,
principalmente em dias como os nossos, nos quais o símbolo de constância é uma borboleta.
Acabou o poema fantástico no fim de dois anos; e um dia o herói do meu conto, chamado a
estudos mais graves, lembrou-se de um amigo obscuro, e deu-lhe a sua pena de ouro. O outro
aceitou-a como um depósito sagrado; sabia o que lhe esperava, mas era um sacrifício que
devia à amizade, e por conseguinte prestou-se a carregar aquela pena, que já adivinhava havia
de ser para ele como uma cruz pesada que levasse ao calvário.
Com efeito, a fada tinha sofrido uma mudança completa: quando a lançavam sobre a
mesa, só fazia correr. Havia perdido as formas elegantes, os meneios feiticeiros, e deslizava
rapidamente sobre o papel sem aquela graça e faceirice de outrora. Já não tinha flores nem
perfumes, e nem centelhas de ouro e de poesia: eram letras, e unicamente letras, que nem
sequer tinham o mérito de serem de praça, que serviria de consolo ao espírito mais
prosaico.Por fim de contas, o outro, depois de riscar muito papel e de rasgar muito original,
convenceu-se que, a escrever alguma coisa com aquela fada que o aborrecia, não podia ser de
outra maneira senão – Ao correr da pena
De feito, começou a escrever ao correr da pena, e como se trata de conto fantástico,
não vos admirareis de certo se vos achardes de repente e sem esperar a ler o que escreveu.
Estou persuadido que não gastareis o vosso tempo a censurar o título, que vale tanto como
qualquer outro. Quanto ao artigo, correi os olhos, como já vos disse, deixai correr a pena; e
posso assegurar-vos que, ainda assim, nem uns nem a outra correrão tão rapidamente como os
ministros espanhóis diante das pedradas e do motim revolucionário de Madri.
Já sabeis em que deu toda esta história, e por isso prefiro contar-vos outras notícias
trazidas pelos dois últimos paquetes a respeito da questão do Oriente, que , segundo uma
observação muito espirituosa, tomou para a Áustria certo caráter medicinal de muita
importância. Napier, como velho teimoso, continuava de namoro ferrado com a soberba
Cronstadt, que em negócio de amores parece-me ter mais fé nos cossacos do que nos ingleses
velhos. Entretanto por prudência o nosso almirante foi-se arranjando com Bommarsund para
passar o inverno. Bem mostra que é inglês e teimoso. Jurou que havia de passar, e, como não
lhe deixam passar o canal, embirrou que havia de passar o inverno. Queira deus, porém, que
não seja o inverno que passe por ele!
Enquanto os ingleses na Finlândia se conservam frios, não por causa dos gelos do
norte, mas sim por causa do fogo da Rússia, os ingleses de Londres saíram do sério e deram a
mais formidável pateada em Mário, o belo tenor, que cantava Cujus animam numa noite de
representação em Convent-Garden.. A história desses motim teatral, contada pelo folhetim do
Constitutionnel, deveria ser bem estudada por grande número dos nossos dilettanti, que se
contentam em fazerem um barulho insuportável no teatro, desaprovando pobres artistas sem
mérito, e deixando em paz os únicos responsáveis de semelhantes atos.
O povo de Londres é mais positivo; depois de ter desaprovado os cantores, obrigou a
vir à cena o empresário, e a todos os seus speechs respondeu um só grito uníssono: money,
money. A coisa não prestava, exigiam a restituição do dinheiro, o que era muito justo: até dez
horas pagaram-se bilhetes recambiados! O empresário teve de repor dinheiro de sua algibeira,
mas no dia seguinte Mário foi aplaudido com três salvas estrepitosas no romance da Favorita.
Decerto, a causa desta demonstração a favor de Mário não foi unicamente a sua bela
voz de tenor e a sua presença agradável, mas também a influência da Favorita, que ainda nos
desperta tantas emoções e na qual os parisienses, mais felizes do que nós, vão recordar
atrasados ouvindo a Stoltz, que se esperava devia cantar no primeiro meado de agosto na
ópera de Paris. Também nós tivemos esta semana nossas recordações bem doces da Stoltz e
da Favorita e lembramo-nos com saudade de Arsace na noite do concerto Malavazi, que
esteve brilhante em todos os sentidos. Nada faltou, houve de tudo, e até desgostosos, que
sentiam que ainda faltava alguma coisa; o que isto era não sei; é provável que fosse o chá do
costume, que, a falar a verdade, não atino com o princípio higiênico por que foi banido dos
concertos.
Além destas recordações, tivemos a nossa festa musical na segunda-feira, noite do
benefício do Ferranti. O ator simpático cantou como nos seus bons dias, e desempenhou
primorosamente a cena dos Prigioni de Edimburgo, que, à custa de esforços seus, foi o mais
bem ensaiado possível. Nesta noite as mãos pagaram os prazeres do ouvido, num e noutro
sentido, e, depois de muitas salvas de aplausos, consta-nos que o nosso barítono brilhante saiu
do teatro mais brilhante do que nunca entrara.
Tão feliz como Ferranti não foram dois inspetores de quarteirão lá das bandas de São
Cristóvão, que faziam o seu benefício à nossa custa, sem nem ao menos terem a delicadeza de
nos advertirem. A polícia, que nem sempre está ocupada em dar passaportes e prender negros
fugidos, assentou que, sendo a semana de benefícios, devia também fazer o nosso, o do
público, demitindo-os, isto é, dispensando aqueles honrados cidadãos do grande obséquio que
nos faziam em servir-nos de graça.
O excesso em tudo, porém, é prejudicial, e o benefício, quando não é pedido, é
incômodo, como essa resolução dos números dos bilhetes de teatro que ontem foi posta em
vigor. Tiram-nos os lenços e as marcas, que eram mais pitorescas e mostravam no público
uma delicadeza louvável. Acharam que isto era mau; dessem-nos coisa melhor, e não
pusessem em homem grave na dura necessidade de ir ao teatro lírico recordar a tabuada. Além
de não se saber que número terão as travessas e mochos, se pertencerão aos inteiros, aos
quebrados ou aos décimos, faço idéia em que apertos não se verá um pobre homem que não
souber ler ou que for míope, a procurar o tal número constante de um pedacinho de papel
microscópio, que precisamente no momento necessário, e como para fazer pirraça, some-se no
labirinto de uma carteira ou nas profundezas de um desses bolsos à maneira, de vastas
dimensões!
Quando vi pela primeira vez enfileirados pelos recostos das cadeiras aqueles batalhões
de números brancos, que sem licença e com a maior sem-cerimônia do mundo se iam
retratando a daguerreótipo nas costas das nossas pobres casacas, julguei que aquilo seria uma
medida policial, por meio da qual os agentes ocultos poderiam seguir fora do teatro algum
indiciado ou suspeito de importância, que fosse reconhecido no salão. Mas nunca pensei que,
quisessem ainda numerarem os bancos as casacas dos dilettanti, quisessem ainda numerar-
lhes os assentos, e obrigar um homem a comprar por dois mil réis o direito de estar preso
numa cadeira e adstrito a um número como um servo da gleba.
Também o que nos faltava era justamente uma nova questão de bancos, embora de
espécie diferente, porque a outra, a das sociedades comanditárias, já vai ficando velha e está
quase a ir fazer companhia à do Oriente, à dos seiscentos contos e outras, que provavelmente
hão de reaparecer daqui a algum tempo, como está sucedendo na Câmara dos Deputados com
a das presas da independência.
O crédito proposto pelo Ministério da Marinha tem sido combatido por falta de uma
liquidação regular; mas tudo induz a crer que desta vez o negócio ficará decidido. E depois
disto, neguem-me que o Brasil seja um gigante! Uma criancinha que só aos trinta anos lhe
começam a sair as primeiras presas! A falar a verdade, já era mais que tempo de soltarem-se
estas malditas presas, por causa das quais andam presas tantas algibeiras.
Falemos sério. – A independência de um povo é a primeira página de sua história; é um
fato sagrado, uma recordação que se deve conservar pura e sem mancha, porque é ela que
nutre esse alto sentimento de nacionalidade, que faz o país grande e o povo nobre.Cumpre não
marear essas reminiscências de glória com exprobrações pouco generosas. Cumpre não falar a
linguagem do cálculo e do dinheiro, quando só deve ser ouvida a voz da consciência e da
dignidade da nação.
Com essa questão importante tem ocupado a atenção da Câmara a discussão de um
projeto do Sr. Wanderley sobre a proibição do transporte de escravos de uma para outra
província. Este projeto, que encerra medidas muito previdentes a bem da nossa agricultura, e
que tende a prevenir, ou pelo menos atenuar uma crise iminente, é combatido pelo lado da
inconstitucionalidade, por envolver uma restrição ao direito de propriedade. Entretanto a
própria Constituição autoriza a limitar o exercício da propriedade em favor da utilidade
pública, que ninguém contestará achar-se empenhada no futuro da nossa agricultura e da
nossa indústria, principal fim do projeto.
Por hoje basta. Vamos acabar a semana no baile da Beneficência Francesa, onde
felizmente não há, como em Paria, a quête feita pelas lindas marquesinha, e onde teremos o
duplo prazer de beneficiar aos pobres e a nós mesmo divertindo-nos.
II
Rio, 17 de setembro de 1854
Estamos na primavera, dizem os folhetins dos jornais, e a folhinha de Laemmert, que é
autoridade nesta matéria. Não se pode por conseguinte admitir a menor dúvida a respeito. A
poeira, o calor, as trovoadas, os casamentos e as moléstias, tudo anuncia que entramos na
quadra feiticeira dos brincos e dos amores.
Que importa que o sol esteja de icterícia, que a Charton enrouqueça, que as noites
sejam frias e úmidas, que todo o mundo ande de pigarro? Isto não quer dizer nada. Estamos na
primavera. Os deputados, aves de arribação do tempo do inverno, bateram a linda plumagem;
a Sibéria fechou-se por este ano, os buquês de baile vão tomando proporções gigantescas, as
grinaldas das moças do tom são perfeitas jardineiras, a Casaloni recebe uma dúzia de
ramalhetes por noite, e finalmente os anúncios de salsaparrilha de Sands e de Bristol
começam a reproduzir-se com um crescendo animador.
Come, gentil spring! Vem, gentil quadra dos prazeres! Vem encher-nos os olhos de pó!
Vem amarrotar-nos os colarinhos da camisa, e reduzir-nos à agradável condição de um vaso
de filtrar água. Tu és a estação das flores, o mimo da natureza! Vem perfumar-nos com as
exalações tépidas e fragrantes da Rua do Rosário, da Praia de Santa Luzia, e de todas as praias
em geral!
Doce alívio dos velhos reumáticos, esperança consoladora dos médicos e dos
boticários, sonho dourado dos proprietários das casinhas dos arrabaldes! Os sorveteiros, os
vendedores de limonadas e ventarolas, os donos dos hotéis de Petrópolis, os banhos, os
ônibus, as gôndolas e as barracas, te esperam com a ansiedade, e de suspirar por ti quase estão
ficando tísicos (da bolsa).
Esta semana já começamos a sentir os salutares efeitos de tua benéfica influência!
Vimos uma estrela do belo céu da Itália eclipsada por uma moeda de dois vinténs, e tivemos a
agradável surpresa de ouvir o 1º ato do Trovatore e um epeech da polícia, tudo de graça.
Alguns mal intencionados pretendem que a noite não foi tão gratuita como se diz; mas
deixai-os falar; eu, que lá estive, posso afiançar-vos que o espetáculo foi todo de graça, como
ides ver,
A autoridade policial depois de participar que ficava suspensa a representação e que os
bilhetes estavam garantidos, sendo por conseguinte aquela noite de graça, como esta notícia
excitasse algum rumor, declarou formalmente, e com toda a razão, que se acomodassem,
porque a polícia, quando tratava de cumprir o seu dever, não era para graças.
Os namorados que tiveram duas noites de namoro pelo custo de uma, os donos de
cocheira que ganharam o aluguel por metade do serviço, o boleeiro que empolgou a sua
gorjeta sem contar as estrelas até a madrugada, aqueles que lá não foram, não só riram-se de
graça, como acharam nisto uma graça extraordinária.
Muito olhar suplicante vi eu nos últimos momentos, humilhando-se diante de um
rostozinho orgulhoso e ofendido, clamar com toda a eloqüência do silêncio: grazia! grazia! É
preciso advertir que o olhar estava no Teatro Provisório, e por isso não se deve admirar que
falasse italiano; além de que, o olhar é poliglota e sabe todas as línguas melhor do que
qualquer diplomata.
Finalmente, para completar a graça deste divertimento, as graças com os seus alvos
vestidinhos brancos se reclinavam sobre a balaustrada dos camarotes, cheias de curiosidade,
para verem o desfecho da comédia. E a este respeito lembra-me uma reflexão que fiz a
tempos, e da qual não vos quero privar, porque é curiosa.
Os gregos, como gente prudente e cautelosa, inventaram unicamente três graças, e
consta que viveram sempre muito bem com elas. Nós, de mal avisados que somos, queremos
ter em todos os divertimentos, nos bailes, nos teatros e nos passeios uma porção delas, sem
refletir que, logo que se ajuntarem muitas, podem formar necessariamente um grupo de dez
graças.
Maldito calembur! Não vão já pensar que pretendo que as graças tenham sido a causa
de tudo isto, nem também que todo aquele desapontamento fosse produzido por alguma graça
da Charton. A prima-dona estava realmente doente, e, aqui para nós, suspeito muito os meus
colegas folhetinistas de serem a causa daquela súbita indisposição com o formidável terceto
de elogios que entoaram domingo passado. Lembrem-se que os elogios e os aplausos
comovem extraordinariamente um artista. Ainda ontem vi como ficaram fora de si as tímidas
coristas, unicamente porque lhe deram duas ou três palmas!
Em toda esta noite, porém, o que houve de mais interessante foi o fato que vou contar-
vos. Um velho dilettante do meu conhecimento, ainda do tempo do magister dixit, e para
quem a palavra da autoridade é um evangelho, teve a infeliz lembrança de justamente nesta
noite encomendar um magnífico buquê para oferecer à Charton no fim da representação.
Apenas se declarou o relâche par indisposition, o homem perdeu a cabeça, e, o que foi pior,
com os apertos da saída perdeu igualmente a bengala, que lá deixou ficar com os ares de novo
um chapéu comprado pela Páscoa.
No outro dia, o homem, que tinha seus hábitos antigos de comércio, viu-se em sérias
dificuldades. Não podia deixar de acreditar, à vista da declaração da polícia, que o espetáculo
da noite antecedente fora de graça; mas, ao mesmo tempo, tinha de dar saída no livro de
despesas ao dinheiro que gastara com o aluguel do carro, com a gorjeta do boleeiro, com o par
de luvas, com o buquê da Charton, o custo da bengala e o estrago do chapéu. Coçou a cabeça,
tomou a sua pitada, e afinal escreveu o seguinte assento: Importe de um espetáculo gratuito no
Teatro Provisório – 26$000!
O meu dilettanti ainda não sabia que a palavra grátis é um anacronismo no século XIX,
e, quando se fala em qualquer coisa de graça, é apenas uma graça, que muitas vezes torna-se
bem pesada, como lhe sucedeu. Provavelmente, depois deste dia, o velho lhe aditou ao seu
testamento um codicilo proibindo terminantemente ao seu herdeiro os espetáculos gratuitos.
Assim a crônica futura desta heróica cidade consignará nas suas páginas que, pelo
começo da primavera do ano de 1854, tivemos um divertimento de graça. Os nossos bisnetos,
não falo dos militares de boca aberta , hão de pasmar quando lerem um acontecimento tão
extraordinário, e, se nesse tempo ainda estiver em uso o latim, clamarão com toda a força dos
pulmões: Miserabile dictu!
Depois de uma semelhante noite, era natural que os dias da semana corressem, como
correram, monótonos e insípidos, e que o baile do Cassino estivesse tão frio e pouco animado.
Entretanto aproveitei muito em ir, pois consegui perder as minhas antipatias pela valsa, a
dança da moda. É verdade que não era uma mulher que valsava, mas um anjo. Um pezinho de
Cendrillon, um corpinho de fada, uma boquinha de rosa, é sempre coisa de ver-se, ainda
mesmo em corrupios.
Fiz a amende honorable de minhas opiniões antigas, e, vendo nos rápidos volteios da
dança voluptuosa passar-me por momentos diante dos olhos aquele rostinho iluminado por
um sorriso tão ingênuo, não pude deixar de fazer uma comparação meio sentimental e meio
cosmogônica, que talvez classifiqueis de original, mas que em todo o caso é verdadeira.
Quando o mar, que Shakespeare disse ser a imagem da inconstância, revolveu o globo
num cataclisma e cobriu a terra com as águas do dilúvio, foi uma pomba o emblema da
inocência, que anunciou aos homens a bonança, trazendo no bico um raminho de oliveira. Se
algum dia uma paixão de loureira vos revolver a alma, e deixar-vos o desgosto e a desilusão,
há de ser um anjinho inocente como aquele quem vos anunciará a paz do coração, trazendo
nos lábios o sorriso do amor o mais casto e mais puro.
III
Rio, 24 de setembro
Domingo passado o caminho de São Cristóvão rivalizava com os aristocráticos
passeios da Glória, do Botafogo e São Clemente, no luxo e na concorrência, na animação e até
na poeira. O Jockey Club anunciara a sua primeira corrida; e, apesar dos bilhetes amarelos,
dos erros tipográficos e do silêncio dos jornais, a sociedade elegante se esforçou em responder
à amabilidade do convite.
Fazia uma bela manhã: - céu azul, sol brilhante, viração fresca, ar puro e sereno. O dia
estava soberbo. Ao longe o campo corria entre a sombra das árvores e o verde dos montes; e
as brisas da terra vinham impregnadas da deliciosa fragrância das relvas e das folhas, que
predispõe o espírito para as emoções plácidas e serenas.
Desde sete horas da manhã começaram a passar as elegantes carruagens, e os grupos
dos gentlemen riders, cavaleiros por gosto ou por economia. Após o cupê aristocrático tirado
pela brilhante parelha de cavalos do Cabo, vinha a trote curto o cabriolé da praça puxado
pelos dois burrinhos clássicos, os quais, apesar do nome, davam nesta ocasião a mais alta
prova de sabedoria, mostrando que compreendiam toda a força daquele provérbio inventado
por algum romano preguiçoso: Festina lente.
Tudo isso lutando de entusiasmo e ligeireza, turbilhonando entre nuvens de pó,
animando-se com a excitação da carreira, formava uma confusão magnífica; e passava no
meio dos estalos dos chicotes, dos gritos dos cocheiros, do rodar das carruagens, e do rir e
vozear dos cavaleiros, como uma espécie de sabat de feiticeiras, a começar no campo de
Sant’Anna e a perder-se por baixo da sombra de meia dúzia de árvores do Prado e das tábuas
sujas e carcomidas de uma barraca que por capricho chamam pavilhão, e que de velha já se
está rindo das misérias do mundo.
Às 10 horas abriu-se a raia (turf), e começou a corrida com a irregularidade do
costume. Os parelheiros pouco adestrados, sem o ensino conveniente, não partiram ao sinal e
ao mesmo tempo, e disto resultou que muitas vezes o prêmio da vitória não coube ao jóquei
que montava o melhor corredor, e sim àquele que tinha a felicidade de ser o primeiro a lançar-
se na raia. A última corrida, que durou um minuto e dezenove segundos, teria sido brilhante
se dois dos cavalos não se tivessem lembrado de imitar as pombinhas de Vênus, que dizem,
voavam presas por um laço de amor.
A diretoria, que envidou todos os seus esforços para tornar agradáveis as novas
corridas, deve tomar as providências necessárias a fim de fazer cessar estes inconvenientes,
formulando com o auxílio dos entendidos um regulamento severo do turf. Convém substituir
o sinal da partida por outro mais forte e mais preciso, e só admitir à inscrição cavalos
parelheiros já habituados à raia.
Seria também para desejar que se tratasse de melhorar a quadra (sport) com as
inovações necessárias para comodidade dos espectadores; e que desse alguma atenção à parte
cômica do divertimento. Instituindo-se corridas de burrinhos e de pequiras. Nós ganhávamos
com isto uma boa meia hora de rir franco e alegre, e estou certo que por esta maneira o gosto
dos passatempos hípicos se iria popularizando.
A uma hora da tarde estava tudo acabado, e os sócios e convidados disseram adeus às
verdes colinas do Engenho Novo, e voltaram à cidade para descansar e satisfazer a
necessidade tão trivial e comum de jantar, insuportável costume, que, apesar de todas as
revoluções do globo e todas as vicissitudes da moda, dura desde princípio do mundo. À tarde,
aqueles que tiveram a honra de um convite foram a Saúde assistir à inauguração do Instituto
dos Cegos na casa que serviu de residência do primeiro Barão do rio-Bonito.
Há muito tempo que se esperava a realização desta bela instituição humanitária,
destinada a dar às pobres criaturas privadas da luz dos olhos a luz do espírito e da inteligência.
Devemos esperar do zelo das pessoas a quem foi confiada a sua administração que em pouco
conseguiremos resultados tão profícuos como têm obtido a França e os Estados Unidos.
A inauguração fez-se em presença de SS.MM. e de um luzido e numeroso concurso de
senhoras e de pessoas de distinção, que aí se achavam animados pelo mesmo sentimento, e
como para realçarem aquele ato humanitário com a tríplice auréola da majestade, da virtude e
da ilustração.
Depois de tudo isto, uma bela noite sem lua, fresca e estrelada; algumas partidas no
Catete, um passeio agradável ao relento, ou o doce serão da família em redor da mesa do chá;
e por fim cada um se recolheu a repassar lentamente na memória os prazeres do dia, e a
lembrar-se de um sorriso que lhe deram ou de uns olhos que não viu.
Entretanto a mim não me sucedeu o mesmo. Tinha-me divertido, é verdade; mas aquele
domingo cheio, que estreava a semana de uma maneira tão brilhante, fazia-me pressentir uma
tal fecundidade de acontecimentos, que me inquietava seriamente. Já via surgir de repente
uma série interminável de bailes e saraus, um catálogo enorme de revoluções e uma cópia de
notícias capaz de produzir dois suplementos de qualquer jornal no mesmo dia. E eu, metido
no meio de tudo isto, com uma pena, uma pouca de tinta e uma folha de papel, essa tripeça do
gênero feminino, com a qual trabalham alguns escritores modernos, à moda do sapateiro
remendão dos tempos de outrora.
É uma felicidade que não me tenha ainda dado ao trabalho de saber quem foi o
inventor deste monstro de Horácio, deste novo Proteu, que chamam – folhetim; senão
aproveitaria alguns momentos em que estivesse de candeias às avessas, e escrever-lhe-ia uma
biografia, que, com as anotações de certos críticos que eu conheço, havia de fazer o tal sujeito
ter um inferno no purgatório onde necessariamente deve estar o inventor de tão desastrada
idéia.
Obrigar um homem a percorrer todos os acontecimentos, a passar do gracejo ao
assunto sério, do riso e do prazer as páginas douradas do seu álbum, com toda a finura e graça
e a mesma monchalance com que uma senhora volta as páginas douradas do seu álbum, com
toda a finura e delicadeza com que uma mocinha loureira dá sota e basto a três dúzias de
adoradores! Fazerem do escritor uma espécie de colibri a esvoaçar em ziguezague, e a sugar,
como o mel das flores, a graça, o sal e o espírito que deve necessariamente descobrir no fato o
mais comezinho!
Ainda isto não é tudo. Depois que o mísero folhetinista por força de vontade conseguiu
atingir a este último esforço da volubilidade, quando à custa de magia e de encanto fez que a
pena se lembrasse dos tempos em que voava, deixa finalmente o pensamento lançar-se sobre o
papel, livre como o espaço. Cuida que é uma borboleta que quebrou a crisálida para ostentar o
brilho fascinador de suas cores; mas engana-se: [e apenas uma formiga que criou asas para
perder-se
De um lado um crítico, aliás de boa-fé, é de opinião que o folhetinista inventou em vez
de contar, o que por conseguinte excedeu os limites da crônica. Outro afirma que plagiou, e
prova imediatamente que tal autor, se não disse a mesma coisa, teve intenção de dizer, porque,
enfim nihil sub novum. Se se trata de coisa séria, a amável leitora amarrota o jornal, e atira-o
de lado com um momozinho displicente a que é impossível resistir.
Quando se fala de bailes, de uma mocinha bonita, de uns olhos brejeiros, o velho tira os
óculos de maçado e diz entre dentes:”Ah! o sujeitinho está namorando à minha custa! Não
fala contra as reformas! Hei de suspender a assinatura”.
O namorado acha que o folhetim não presta porque não descreveu certo toilette, o
caixeiro porque não defendeu o fechamento das lojas ao domingo, as velhas porque não falou
na decadência das novenas, as moças porque não disse claramente qual era a mais bonita, o
negociante porque não tratou das cotações da praça, e finalmente o literato porque o homem
não achou a mesma idéia brilhante que ele ruminava no seu alto bestunto.
Nada, isto não tem jeito! É preciso acabar de uma vez com semelhante confusão, e
estabelecer a ordem nestas coisas. Quando queremos jantar, vamos ao Hotel da Europa; se
desejamos passar a noite, escolhemos entre o baile e o teatro. Compramos luvas no
Wallerstein, perfumarias no Desmarais, e mandamos fazer roupa no Dagnan. O poeta glosa o
mote, que lhe dão, o músico fantasia sobre um tema favorito, o escritor adota um título para
seu livro ou o seu artigo. Somente o folhetim é que há de sair fora da regra geral, e ser uma
espécie de panacéia, um tratado de omni scibili et possibili, um dicionário espanhol que
contenha todas as coisas e algumas coisinhas mais? Enquanto o Instituto de França e a
Academia de Lisboa não concordarem numa exata definição do folhetim, tenho para mim que
a coisa é impossível.
Façam idéia, estando ainda dominado por estas impressões da véspera, como não fiquei
desapontado no dia seguinte, quando me fui esbarrar com a nova da chegada do paquete de
Southampton, o qual parece que mesmo de propósito trouxe quanta notícia nova e velha havia
lá pela Europa.
Nicolau, vendo que nada arranjava com os seus primos da Áustria e da Prússia,
assentou de aliar-se com o Judeu Errante, um certo indivíduo inventado, no tempo em que
ainda se inventava, e correto e aumentado no Século 19 por Eugênio Sue. Entretanto saiu-lhe
a coisa às avessas, porque os ingleses e franceses com o cólera ficaram verdadeiramente
coléricos e então não há mais nada que lhes resista. Tomaram Bommarsund, e é de crer que a
esta hora já tenham empolgado Sebastopol.
Ao passo que eles lá no Oriente pelejam combates e batalhas para se distraírem durante
a convalescença da moléstia, os Egípcios deram ao mundo uma grande lição de política
constitucional a seu modo em duas palavras – pau e corda; e mostraram claramente que toda a
ciência de governar está na maneira de empregar aqueles dois termos.
Se Abbas-Paxá tivesse aprendido na escola de Napoleão pequenino, em vez de mandar
meter o bastão nos mamelucos para estes o enforcarem, teria usado da outra forma simbólica
de governar, corda e pau, isto é, teria-os mandado enforcar num pau qualquer, e estaria agora
vivo e bem disposto para mandar enforcar uma nova porção.
Políticos do mundo inteiro! Jornalistas do orbe católico! Publicistas, que desde Hugo
Grocio queimais as pestanas a resolver a grande questão das formas de governo! Podeis fazer
cartucho de vossos jornais, podeis vender os vossos enormes infólios para papel de embrulho,
podeis dar aos vossos pequerruchos as memórias que elaborastes para que eles se divirtam a
fazer chapéu armado! Paula majora canamus! Tudo quanto escrevestes, tudo quanto
meditastes não vale aquela lição simples e grande dada por dois mamelucos!
Quereis ver como a coisa está agora clara e simples? Teoria do governo constitucional
– pau e corda. Teoria do governo absoluto – corda e pau. Quanto à república, como é a forma
de governo simples por excelência, será simbolizada unicamente pela corda. Os democratas
estão livres do bastão, e contentam-se em enforcarem-se uns aos outros como na revolução
inglesa, ou a guilhotinarem-se, como têm o bom gosto de fazer os nossos vizinhos do Sul.
Além destas notícias que vos tenho referido, todas as mais, trazidas pelo paquete, não
valem uma ode que nos veio também por ele, e que foi publicada no Portuense. Não se riam,
nem pensem que há nisto exageração! Leiam, e depois conversaremos. É um homem obscuro,
lá de um recanto de Portugal, com o nome mais antipoético do mundo, que de repente sentiu
na mente uma centelha de Vitor Hugo, recebeu uma inspiração do céu, tomou uma folha de
papel, e lavrou a sentença da Inglaterra com uma ironia esmagadora, com um metro enérgico
e uma rima valente. Leiam, e digam-me se neste pensamento grande, nesta concepção vasta,
nesta forma imponente, não há como um pressentimento, como a profecia de um
acontecimento, que talvez não esteja muito longe?
Ia-me esquecendo de outra notícia, a da aposentadoria do Sr. Delavat y Rincon,
Ministro da Espanha, no caráter diplomático da missão que exercia no Brasil. Residindo entre
nós há muitos anos, o Sr. D. José tem-se ligado intimamente ao Brasil, não só pelos laços de
família que o prendem, como pelas atenções que sempre mostrou para com o nosso país.
Com tanta novidade curiosa chegada pelo paquete, e que oferece larga matéria à
palestra e aos comentários, ainda assim não ficamos de todo livres de certas conversas
divertidas, muito usadas nos nossos círculos.
Não sabeis talvez o que é uma conversa divertida? Pois reparai, quando estiverdes
nalgum ponto de reunião, prestai atenção aos diversos grupos, e ouvireis um sem-número
desta espécie de passatempo, que é na verdade de um encanto extraordinário.
Uma conversa divertida – é um pretendente que vos agarra no momento em que se vai
dançar, para demonstrar a vantagem da reforma das secretarias. É um médico que aproveita a
ocasião em que pode ser ouvido por todos, para proclamar a probabilidade da invasão da
cólera no Brasil . É um sujeito que escolhe justamente o momento da ceia, para contar casos
diversos de indigestão e congestões cerebrais. É um indivíduo qualquer que se vos posta
diante dos olhos, como uma trave, e vos tira a vista da vossa namorada, para perguntar-vos
com voz de meio-soprano: o que há de novo?
Na primeira revisão do Código Penal é preciso contemplar estes sujeitinhos nalgum
artigo de polícia correcional. Uns furtam-nos o nosso tempo, que é um precioso capital – time
is money, e, o que mais é, furtam com abuso de confiança, porque se intitulam amigos; por
conseguinte incorrem na pena de estelionato. Os outros são envenenadores, porque com as
suas conversas de cólera e febre amarela vão minando surdamente a nossa vida com os
ataques de nervos e com as terríveis apreensões que fomentam.
Enquanto, porém, aquela reforma não tem lugar, chamo sobre eles a atenção do Sr. Dr.
Cunha, assim como também sobre a desordem que reina no teatro nas noites de enchente.
A princípio, um homem sentava-se comodamente para ver o espetáculo. Entenderam
que isto era sibaritismo, estreitaram o espaço entre os bancos, e tiraram-nos o direito de
estender as pernas.
Ainda a coisa não ficou aí: pintaram os bancos e privaram-nos do espreguiçamento do
recosto. Julguei que tinham chegado ao maior aperfeiçoamento do sistema, mas ainda faltava
uma última demão. Agora aqueles que querem ver ficam de pé; e os que preferem ficar
sentados têm o pequeno inconveniente de nada verem. Não cabem dois provérbios num saco,
diz o provérbio: ou bem ver, ou bem sentar.
Isto pode ter muita graça para a diretoria; porém aquele que compra o direito de ver,
sentado e recostado, não pode sofrer semelhante defraudação. É urgente proceder-se a uma
rigorosa lotação das cadeiras do teatro, e proibir a introdução de mochos e travessas. Este
expediente, acompanhado da severa inspeção na venda e recepção dos bilhetes, restituirá a
ordem tão necessária num espetáculo onde a presença de Suas Majestades e de pessoas gradas
exige toda a circunspeção e dignidade.
IV
Rio, 1.º de outubro
Meu caro redator. – Faço idéia do seu desapontamento quando receber esta carta em
vez da nossa Revista costumada do domingos; mas tenha paciência, e lembre-se que o acaso é
um menino cheio de caprichos que nos dirige a seu modo, sem ter ao menos a delicadeza de
nos consultar de vez em quando.
Fatis agimur, cedite fatis.
Sei que há de ficar maçadíssimo comigo, que me acusará de remisso e negligente, e
acumulará sobre a minha cabeça uma série de sinônimos de igual jaez de envergonhar
qualquer Cícero provinciano dos mais afamados na oratória.
É já prevenindo esta eventualidade que tomo o prudente alvitre de escrever-lhe, e não ir
verbalmente desfiar o longo rosário de desculpas que a minha imaginação, sem que lho
recomendasse eu, teve o cuidado de ir preparando apenas pressentiu os primeiros pródromos
da preguiça.
O que vale é que a borrasca há de passar. Quanto maior for a zanga, tanto maior graça
há de achar depois no logro que lhe preguei involuntariamente, está entendido; a por fim de
contas, quando se lembra do seu tempo de folhetinista, estou certo que me há de dar carradas
de razões. Previno-o, porém, desde já que não é preciso mandar-me à casa as tais carradas de
razões; isto pode importar-lhe uma grande despesa de carretos sem necessidade.
Decidi contar-lhe confidencialmente a minha vida desta semana, para que não lhe reste
a menor dúvida sobre a boa-fé com que procedi em todo este negócio, e para assim habilitá-lo
a redigir uma daquelas desculpas da rotina, com que ordinariamente os jornais (compreendido
o nosso por política) embaçam os leitores, logo pela manhã, e em jejum, ocasião esta em que
naturalmente os carapetões são de mais fácil digestão.
Os nossos velhos da era antiga diziam que não havia domingo sem missa, sem
segunda-feira sem preguiça. A primeira parte deste provérbio tem sofrido nos últimos tempos
alguma modificação, principalmente a respeito dos redatores dos grandes jornais, que
substituíram à missa o folhetim. Mas em compensação ninguém ainda se animou a contestar a
segunda e última parte do anexim, e pó isso na segunda-feira redatores, folhetinistas, leitores e
leitoras, todos desejariam poder saborear as delícias do dolce farniente.
Como isto não é possível a todos, o que se segue é que muitas vezes o corpo parece que
trabalha, enquanto a mente, como uma sultana favorita, se embala molemente nas doces
recordações do domingo e de toda a semana passada.
O redator estende a folha de papel para escrever o seu artigo de fundo; mas, quando
procura pelo pensamento, vai descobri-lo no fundo de algum boudoir elegante, donde não há
forças que o possam arrancar. Resulta daí que, depois de algumas horas de esforço baldado, o
tal artigo de fundo fica no fundo do tinteiro.
A mocinha com os olhos quebrados e corpinho lânguido toma o seu bordado e começa
a trabalhar. Pensa que está fazendo ponto de crochê! Qual! está fazendo namoro a crochê. Os
olhos e a boquinha são os ganchos; cada ponto é um olhar provocador; cada malha um jogo
vivo de sorrisos à direita e à esquerda. Quando a agulha fere-lhe um dos dedinhos rosados,
sou capaz de apostar que lembrou-se de um despeito, ou de um arrufo no baile.
A respeito do folhetinista não falemos. Na segunda-feira tem a cabeça que é um caos
de recordações, de faros, de anedotas e observações curiosas. A imaginação toma ares de
pintor chinês, e começa a desenhar-lhe flores e arabescos de um colorido magnífico. As idéias
dançam uma contradança no Cassino. A memória passeia no meio do salão, de braço dado
com a ironia, gracejando e fazendo reflexões a propósito.
Enfim os cinco sentidos põem-se ao fresco, e largam-se a passear cada um para seu
lado. O ouvido a Flâner recorda a cabaleta do Trovatore. O paladar e o olfato sentam-se
comodamente à mesa da ceia. O olhar erige-se em dagueorreotipeiro e diverte-se em tirar
retratos d’après nature. E o tato vai estudar praticamente o magnetismo, para descobrir as
causas misteriosas dos estremecimentos que produz a pressão doce e tépida de uma mãozinha
delicada.
À vista disto, meu caro redator, já vê que a segunda-feira é um dia inteiramente
perdido, e que só vem na folhinha para encher o número dos sete que formam a semana, assim
como sucede nas listas tríplices para senador. Acredite que não se faz nada, nem mesmo
quando se possui a receita infalível, que eu tenho sobre a mesa, de um libelo ou de uns
provarás, cujo efeito poderoso o senhor deve conhecer.
Os antigos tinham razão. E estou certo que, se Josué vivesse no nosso século, havia de
adotar o anexim português, e, pedindo licença a Galileu, todos os domingos à meia-noite
faria parar o sol até terça-feira, para assim poder bem saborear o dia consagrado à preguiça,
sem temer a claridade importuna que de madrugada, isto é, às desoras, vem bater-nos nas
pálpebras, como um credor impertinente que não compreende a verdadeira organização do
crédito.
Ora, eu sei que me podem objetar que a Bíblia manda trabalhar seis dias e descansar no
sétimo. Mas aquele preceito foi inventado na primeira semana, isto é, quando não se tinha
trabalho antes; e por isso podia haver preguiça na segunda-feira. Além de que, como ainda
não se sabia ao certo o peso do trabalho da semana, julgou-se, que era bastante um só dia de
descanso. Veja o senhor, que é deputado, o inconveniente de fazer leis sem primeiro
estudarem-se profundamente as necessidades públicas.
Logo que os homens aprenderam por experiência própria quanto custavam os tais seis
dias de trabalho, assentaram que era preciso pelo menos dois ou três dias de descanso. Daí
veio que os antigos, pensando sobre a gravidade do caso, inventaram os dias santos para
iludirem o preceito da Bíblia; e modernamente se instituiu nas semanas em que não há dias
santos, o feriado da quinta-feira para estudantes e lentes, porém especialmente para estes.
Enfim o nosso amável redator sabe que a própria astronomia confirma a convicção
profunda em que estou de que pelas leis divinas e humanas a segunda-feira deve ser
completamente consagrada à preguiça. A segunda-feira é o dia da lua, e ninguém ignora a
influência poderosa que exerce esta senhora sobre os pobres mortais, a quem ela persegue
como uma velha cheia de flatos e medeixes. Ora, não podendo o corpo assim indisposto
entregar-se ao trabalho, é evidente que as próprias leis físicas, que regulam a harmonia e o
equilíbrio do mundo, destinaram a segunda-feira para a calaçaria.
Parece-me que tenho provado o ponto controvertido, com argumentos dignos de figurar
em uma conclusão magna. Está a segunda-feira, portanto, fora de toda a questão; e por isso,
tranqüilo na minha consciência, não tenho o menor escrúpulo em confessar-lhe que naquele
dia não trabalhei.
Passei o dia, como faço-lhe a justiça de acreditar que passou o seu, sem dar atenção às
misérias deste mundo; e tratando de realizar aquele dito de Marcial, que apesar de poeta (com
perdão de V.S.) disse um dia uma coisa boa, talvez mesmo por não se muito forte na poesia:
Vivere bis, vita posse priore fruire
Acho escusado dizer-lhe que, apesar de ser o dia inteiramente contemplativo, não me
descuidei da carne, e tive o cuidado de almoçar, jantar e cear. À noite fui ao Teatro Lírico
ouvir ainda uma vez o Trovatore e ver Leonora morrer depois de nos ter dado algumas horas
de vida deliciosa.
Desejava trazer alguma idéia boa para o nosso folhetim. Mas o senhor sabe o que é
uma idéia; é a coisa mais bandoleira e mais volúvel que eu conheço. As idéias são as
borboletas do espírito; são, como diz um provérbio oriental a respeito das mulheres, a sombra
do nosso corpo que nos acompanha sempre, e que nos foge apenas as queremos apanhar.
Esperei por conseguinte pela terça-feira, em que verdadeiramente devia começar o
trabalho da semana, segundo os princípios que já tive a honra de lhe expender. Entretanto,
servindo-me eu daqueles mesmos princípios com que provei que os antigos tinham toda a
razão de destinar a segunda-feira para o santo ócio, sucedeu que tive na terça-feira ao acordar
uma lembrança luminosa, cujo peso deixo ao seu alto critério.
Se os antigos, que não tinham baile, nem teatros líricos, nem concertos, nem clubes,
nem corridas, e que se contentavam com algum sarau de vez em quando, inventaram os dias
santos para filarem assim dois dias de descanso, nós, que temos durante a semana todo esse
enorme acréscimo de trabalho imposto pela sociedade, nós que já fomos privados dos dias
santos, devemos em todo o rigor da justiça lograr mais um dia de descanso, e juntar a terça-
feira à segunda, a fim de poder na quinta encerrar o trabalho, com o espírito calmo e o corpo
bem disposto.
Este argumento sem réplica calou-me no ânimo a convicção inabalável de que seria
anti-racional e anti-filosófico trabalhar na terça-feira, principalmente estando todo preocupado
com o baile do Cassino, que devia ter lugar à noite.
Por conseguinte, levei o dia literalmente a esperar pela noite, e a ler as notícias da
Europa, chegadas pelo Maria 2.ª.
Tive um alegrão quando vi aquele carapetão da tomada de Sebastopol, inventado pelos
passageiros do Candiá, que podem ser taxados de mentirosos, mas que pelo menos mostraram
ser mais hábeis em estratégia e tática militar do que os generais franceses e ingleses, pois
tomaram uma praça forte sem armas e sem soldados, somente com o auxílio da língua e de
algum jeito para a petalogia.
Com este fato tinha eu base para um artigo brilhante sobre o futuro da guerra do
Oriente; mas o meu contentamento foi passageiro, porque no dia seguinte li o desmentido do
Jornal do Comércio, que nem sequer deixou à pobre notícia o tempo de correr.
A noite que eu esperava ansiosamente, chegou.Às 9 horas entrei no Cassino, onde tive
o sumo prazer de encontra-lo, o que unicamente (espero terá a bondade de o acreditar) fez-me
passar algumas horas bem agradáveis.
Se a falta do nosso folhetim de amanhã, a qual deploro igualmente com o senhor, não o
traz ainda atordoado a esta hora, deve lembrar o baile magnífico pela elegância das senhoras,
e pela sociedade que aí se reuniu.
Havia naturalmente de notar, com o seu conhecido bom gosto, a justeza de uma
observação que fez Arséne Houssae, provavelmente ao meio de algum baile como aquele: - Il
y a des femmes qui sont roses, il y a des femmes qui sont épines, il y a des femmes qui sont des
sourires, il y a des femmes qui sont des grimaces.
A este pensamento eu acrescentaria que há mulheres que são verdadeiras rosas, e que
por isso têm para aqueles que se chegam um perfume e um espinho ao mesmo tempo.
Também havia de ver, como eu, surgir naquela noite uma estrela suave a deslizar
docemente num céu de azul. Era uma verdadeira estrela, bela como suas irmãs, brilhando no
céu; porque o céu é a pátria da candura e da inocência.
Se não teve a felicidade de ver esta serena aparição no baile, tome o meu conselho. Vá
a casa do Reis, na rua do Hospício n.º 72. É a melhor loja de instrumentos de óptica e de física
que há nesta cidade: aí encontrará um sortimento magnífico de binóculos, de telescópios e
lunetas.
Escolha a melhor jumelle eliptique que ele tiver, vá esta noite beneficiar os italianos
ouvindo música italiana, e lá examine o céu do Teatro Lírico, que talvez tenha ocasião de ver
a estrela de que lhe falei. Não fite muito o óculo; uma estrela é tudo o que há mais puro e de
mais casto neste mundo.
Voltando ao baile, creio que não estranhará se durante toda aquela noite nem sequer me
lembrasse do folhetim. A uma hora despedi-me como os outros até a noite seguinte, na qual
nos devíamos encontrar no baile militar, ou nos salões de um estrangeiro distinto, que recebia
em sua casa a sociedade elegante desta corte.
Enfim veio a quarta-feira, o dia em que sensatamente se deve dar princípio ao trabalho.
Não comece já a pensar que vou apelar para algum sofisma, a fim de inutilizar também este
dia. Não: a quarta-feira é um dia muito útil, o mais útil talvez da semana
A quarta-feira é destinada para se dispor o homem a começar os seus afazeres. Depois
de três dias de descanso, é impossível que se tenha disposições para encetar de chofre o
trabalho. Seria mesmo anti-higiênico passar repentinamente do repouso ao movimento.
Motus est causa caloris. Consulte um bom médico, e verá que ele lhe diz que isto
importa tanto como as transições rápidas do frio para o calor e vice-versa, e que por
conseguinte pode originar graves moléstias.
Não sei que sábio antigo disse que a natureza não vai aos saltos: Natura non facit
saltus. Todas as línguas vivas e mortas que eu conheço têm um rifão que, despida a forma,
contém aquele mesmo pensamento.
Ora, logo que a sabedoria, a higiene e a experiência popular consagram um princípio
inconcusso, não é possível deixar de aderir principalmente quando há uma atração irresistível
para ele. Foi o que me sucedeu, levei toda a quarta-feira a fazer tenções e cálculos de trabalho
para o dia seguinte. A fim de melhor dispor o espírito, não deixei de ir à reunião de que lhe
falei, e tive ocasião de apreciar a amabilidade dos hóspedes e a graça das lindas convivas.
Na quinta-feira, resolvi logo pela manhã por-me de ponto em branco, isto é, todo de
preto, para ir ao convento de Santo Antônio, assistir a um ofício fúnebre que os estudantes de
medicina fizeram celebrar pela alma de seu colega José Cândido de Almeida.
Embora já habituado a estas cenas de luto e de tristeza, a memória deste causa-me
dolorosa impressão. Não me posso lembrar com indiferença daquele moço, cheio de vida e de
talento, colhendo o germe da morte justamente quando, levado pelo amor do estudo,
investigava com o escalpelo na mão os segredos da ciência.
O que consola o espírito quando me recordo deste fato é a efusão e a espontaneidade de
sentimentos com que seus colegas demonstraram a mágoa que lhes deixou aquela morte
prematura. Os estudantes de medicina deram nesta ocasião um exemplo, bem raro hoje, de
espírito de classe; e nas demonstrações de sua dor substituíram quase para seu colega, morto
longe do seio materno, as lágrimas sublimes de mãe.
A hora, que correu mais rapidamente do que eu pensava, obstou a realização do meu
intento. Entretanto fiquei sempre debaixo daquela impressão, o que contudo não me afastava
da idéia de começar decididamente o trabalho na quinta.
No correr do dia, refletindo melhor, assentei em duas coisas. Primeiro, que num clima
tão doentio como é o do Rio de Janeiro todo mundo tem o direito incontestável de declarar-se
doente pelo menos um dia por semana, ainda que não seja senão para poupar a saúde e não
gasta-la toda de uma vez. Segundo, que todo o homem que cumpre exatamente os seus
deveres durante todo o ano pode lá uma semana fazer um extra e destinar o dia para ir passar
no campo e não fazer absolutamente nada, senão distrair-se.
E agora, meu caro redator, confesse francamente, não acha que é um impossível físico
e moral fazer uma semana inteira com um dia somente, quando para isto é necessário em toda
a folhinha sete dias e sete noites?
Como estou certo que não me responderá negativamente a esta pergunta, desde já me
tenho por plenamente justificado para com a redação do jornal; lá quanto aos leitores, isto é
coisa que lhe diz respeito, e na qual eu lavo as mãos.
Entretanto é pena que isto sucedesse, porque havia bastante que dizer-se sobre esta
semana. Além dos divertimentos que lhe falei, do baile do Campestre, da chegada de um
literato cego que nos veio pedir hospitalidade acompanhado de sua Antígone, houve um fato
que interessa muito a população desta cidade.
O desembargador Figueira de Melo foi nomeado Chefe de Polícia desta corte, e deve
tomar posse hoje, dia de São Jerônimo, seu patrão.
Não acha que esta coincidência é um presságio feliz para esta nomeação, e que o novo
chefe de polícia continuará as tradições deixadas pelo Sr. Siqueira que durante a sua curta
administração adquiriu títulos ao reconhecimento público? Eu inclino-me a crer que sim, e
não estou longe de supor que nisso vamos de acordo.
A empresa lírica começa a ser administrada pela nova diretoria, e também há razões de
esperar das pessoas que a compõem, se não todos, ao menos alguns dos melhoramentos que
exige o nosso Teatro para poder elevar-se ao estado que comporta a civilização e os recursos
desta corte.
Veja que pena! Com tanta notícia importante, não temos artigo hebdomadário! Mas
console-se; a semana que vem não se anuncia menos brilhante. Teremos um baile esplêndido
na Fileuterpe, e no Teatro de São Pedro um concerto vocal e instrumental, de música alemã e
clássica, o que deve ser uma novidade artística digna de atrair todo aquele que se prezar de
bom gosto. A orquestra será regida por um jovem professor nacional, o Sr. Stockemeyer, que
já tem dado provas do seu talento.
Não se amofine por conseguinte, e creia na minha boa vontade.
Seu, etc.
S.C. 30 setembro. Al.
P. S. Agora, quase ao fechar esta, lembrei-me de um expediente aproveitável em tão
críticas circunstâncias. A liberdade do folhetinista é ilimitada, a carta longa: portanto escreva-
lhe em cima o nosso título – Ao correr da pena – e mande para a composição. Não deixe
transpirar coisa alguma; e amanhã o leitor com toda a sua finura pensará que isto foi uma
idéia original que tivemos. Há de ver, que, no fim de contas, o negócio arranja-se às mil
maravilhas.
V
Rio, 15 de outubro
Encontram-se às vezes na história da humanidade certas coincidências tão notáveis,
que parecem revelar uma lei fatal e misteriosa, um elo invisível que através dos anos e dos
séculos prende entre si os grandes acontecimentos.
O tempo, dizia Píndaro, é o oceano imenso sobre o qual navega a humanidade. Quem
sabe se, como o marinheiro lançado sobre a amplidão dos mares, batido pelos ventos e pelas
tempestades, o gênero humano não percorre os caminhos já trilhados, e não atravessa as
idades revendo na sua torna-viagem as mesmas plagas, os mesmos climas?
O espírito se confunde desde que intenta perscrutar tão altos arcanos, e se perde numa
série de pensamentos elevados, como os que me assaltaram quando me pus a refletir sobre os
destinos do dia 12 de outubro, que marca época nos anais do mundo, da América e do Brasil.
Quando se desdobra esta página do calendário, e se volve os olhos para o passado, vê-
se surgir entre as sombras das gerações que morreram dois grandes vultos de heróis, que
separados por mais de três séculos, parecem estender-se a mão por sobre o espaço, como para
consolidar a sua obra.
No mesmo dia um descobriu um novo mundo, o outro fundou um grande império. Um
chamava-se Colombo, o outro era Pedro I. Dois nomes que por si só valem uma história.
Entretanto a América e o Brasil deixaram-nos escritos apenas nos livros, como uma
simples recordação; e, tomando um nome de empréstimo, nem ao menos copiaram no
mármore ou no bronze aquela página de tantas glórias.
O viajante do velho mundo, que contemplou as pirâmides do Egito, as ruínas do
Partenon, as abóbadas do Coliseu, os obeliscos e os arcos de triunfo, monumentos de um
século, de um povo, ou de um rei somente, não encontra nas plagas americanas nem sequer o
nome desse semideus que criou um mundo!
Apenas a espaços, uma palavra perdida, uma exprobração amarga, e mesmo alguns
esforços infrutíferos para levar a efeito a idéia de um monumento a Colombo e de uma estátua
a D. Pedro.
Tudo isto, porém, passa no turbilhão das idéias que servem de pasto a uma agitação
momentânea, e nada resiste a esse esquecimento fatal e prematuro. Dir-se-ia que o presente,
temendo ser ofuscado por tão grandes feitos do passado, como que receia transmiti-los às
gerações futuras.
Mas o eco das idades, esse brilho que ilumina os séculos, e a que o mundo chama a
glória, não há forças que o abafem. Através do tempo ouve-se ainda e sempre esse sublime
diálogo que formam, como diz L’Hermenier, as relações do gênio com a humanidade.
Assim, aqueles dois grandes vultos, que parecem perdidos nas sombras do passado, se
refletirão com todo o seu brilho na posteridade, principalmente quando o primeiro tem para
desenha-lo a pena de um homem como Lamartine, e o outro a história de uma nação como o
Brasil.
Talvez que então, quando a marcha dos tempos tiver desvendado altos mistérios do
destino, a humanidade possa compreender esse elo invisível que prende dois acontecimentos
tão remotos, essa relação inexplicável entre dois homens, essa coincidência providencial de
duas revoluções que em épocas diferentes se realizaram no mesmo dia.
Quem sabe se o fato que veio depois de três séculos não era o complemento e o remate
do primeiro? Quem sabe se D. Pedro I não foi o continuador de Colombo? Quem sabe se a
fundação do Império do Brasil não devia ser uma condição essencial nos futuros destinos da
América?
Estes pensamentos nos levariam muito longe, muito além do presente, e nos fariam
esquecer que nestas páginas somos o homem do passado, o simples cronista dos
acontecimentos de uma semana. Deixemos, portanto, as altas elocubrações, e voltemos aos
fatos da atualidade.
Falávamos de gênio, de talento, de glórias passadas e destinos futuros. O presente não é
menos fértil em qualquer destas coisas, sobretudo em talento.
O talento! Divinae particulam aurae! Não há nada como o talento. Riquezas, honras,
nascimento, nobreza, nada disso vale uma pequena dose daquela inspiração divina. Só ela tem
o privilégio da divindade, o dom de criar e inventar.
Se duvidam do que estou dizendo, tomem qualquer jornal da semana, e corram-lhe os
olhos, que terão a prova desta minha asserção.
O cólera-morbo andava muito sossegado lá pela Europa e nem sequer ainda se tinha
lembrado de escrever o Brasil no seu itinerário ou jornal de viagem, quando um homem de
talento necessariamente, teve a feliz idéia de afirmar que a moléstia já estava em caminho e
não tardaria a chegar.
Imediatamente fez-se uma revolução, e tivemos uma verdadeira epidemia de cólera-
morbo in nomine. Não se falava em outra coisa; não se escrevia sobre outro assunto. Os
médicos dissertavam largamente, os profanos gracejavam ou discutiam, a Câmara Municipal
trabalhava, e a Academia de Medicina fazia sessões públicas.
Ouvi queixar-se muita gente que de todas essas luminosas discussões nada se concluía;
creio porém, que estão mal informados . Se fossem ao escritório de qualquer das folhas diárias
desta corte, haviam de ver entrar para a caixa a conseqüência lógica e verdadeira de toda esta
argumentação – a paga das correspondências e publicações a pedido.
A epidemia foi tal, que até foram bulir com a pobre gramática, que estava bem
sossegada, e chamaram-na a campo para decidir se o cólera-morbo era masculino ou
feminino.
Não me devo meter em semelhante questão; mas, a falar a verdade, prescindindo da
gramática, creio que aqueles que dão ao cólera o gênero feminino têm alguma razão, por isso
que os maiores flagelos deste mundo, a guerra, a morte, a fome, a peste, a miséria, a doença,
etc., são representadas por mulheres.
E o que torna-se mais notável ainda é que os gregos, gente sempre tida em conta de
sábia, quando inventaram os seus deuses, fizeram homens Apolo e Cupido, e para mulheres
escolheram as Parcas, as Fúrias e as Harpias.
Se as minhas amáveis leitoras não gostaram desta razão, que acho muito natural,
chamem a contas os pintores e os poetas, que são os autores de tudo isto. Quanto a mim, não
tenho culpa nenhuma das extravagâncias dos outros, e até estou pronto a admitir a opinião do
meu colega A. Karr, que explica aquele fato pela razão de que as senhoras são extremos em
tudo, tanto que as mais belas coisas deste mundo são também significadas por mulheres,
assim como a beleza, a glória, a justiça, a caridade, a virtude e muitas outras que, como estas,
não se encontram comumente pelo mundo, mas que existem no dicionário.
Ora, à vista da razão que apresentei, parecia que não devia haver mais dúvida sobre o
gênero do cólera; porém o argumento do –h-, que ainda não tinha lembrado aos gramáticos
antigos e modernos, veio mudar a face da questão. Homem, que é o símbolo do gênero
masculino, começa por –h-; logo, desde que o cólera for escrito com -h- é masculino. A isto
não há que responder; e por conseguinte, à vista de um tal argumento, persisto na minha
antiga opinião.
Apesar de todas estas discussões interessantes com que se procura entreter o ânimo
público, à noite os dilettanti não deixam de se encaminhar para o Teatro Lírico, embora
tenham muitas vezes o desgosto de esbarrarem com o nariz na porta fechada, como sucedeu
segunda-feira.
Disseram que a Charton estava um pouco incomodada, o que bem traduzindo quer
dizer que não tinha nada absolutamente.
Ora, admitindo mesmo o caso do incômodo, desejava sinceramente que os espíritos
dados às altas e importantes questões de utilidade pública, como sejam as do gênero do cólera,
do contágio da moléstia, da sua antiguidade, etc., me elucidassem, por meio de uma discussão
esclarecida, um ponto muito duvidoso para mim: e é se as primas-donas têm o direito de
adoecerem em dia de representação, e deixarem-nos desapontados sem sabermos o que fazer
da noite.
Na minha opinião entendo que uma prima-dona, quando muito, tem unicamente o
direito de adoecer na véspera, a tempo de se publicar o anúncio da transferência do
espetáculo; e, quando quiser adoecer no mesmo dia, então deve adivinhar de véspera que na
noite seguinte estará incomodada, a fim de se prevenir o público, e evitar-lhe uma
desagradável surpresa.
Felizmente o incômodo da Charton foi passageiro, e as soirées Líricas continuaram
sem mais transferências até sexta-feira, em que nos deram a Semiramide, em benefício da
Casaloni. A noite foi ruidosa: aplausos, rumor, flores, versos, brilhantes, houve de tudo, até
mesmo uma pateada solene. Foi por conseguinte uma festa completa.
Para fazer diversão à música italiana, ofereceram-nos, sábado da semana passada, no
Teatro de São Pedro, um outro benefício de música alemã clássica, no qual os entendedores
tiveram ocasião de apreciar coros magníficos a três e quatro vozes, e de gozar belas
recordações dos antigos maestros, hoje tão esquecidos por causa das melodias de Rossini e
Donizetti e das sublimes e originais inspirações de Verdi e Meyerbeer.
VI
Rio, 22 de outubro
O tempo serenou; as nuvens abriram-se, e deixam ver a espaços uma pequena nesga de
céu azul, por onde passa algum raio de sol desmaiado, que, ainda como que entorpecido com
o frio e com a umidade da chuva, vem espreguiçar-se indolentemente sobre as alvas pedras
das calçadas.
Aproveitemos a estiada da manhã, e vamos, como os outros, acompanhando a devota
romaria, assistir à festividade de São Pedro de Alcântara, que se celebra na Capela Imperial!
A igreja ressumbra a severa e impotente majestade dos templos católicos. Em face
dessas grandes sombras que se projetam pelas naves, da luz fraca e vacilante dos círios
lutando com a claridade do sai que penetra pelas altas abóbadas, do silêncio e das pompas
solenes de uma religião verdadeira, sente-se o espírito tomado de um grave recolhimento.
Perdido no esvão de uma nave escura, ignorado de todos e dos meus próprios amigos,
que talvez condenavam sem remissão um indiferentismo imperdoável, assisti com o espírito
do verdadeiro cristão a esta festa religiosa, que apresentava o que quer seja fora do comum.
Sob o aspecto contido e reservado daquele numeroso concurso, elevando-se
gradualmente do mais humilde crente até às últimas sumidades da hierarquia social,
transpareciam os assomos de uma curiosidade sôfrega e de uma ansiedade mal reprimida.
Qual seria a causa poderosa que perturbava assim a gravidade da oração? Que pensamento
podia assim distrair o espírito dos cismas e dos enlevos da religião?
Não era de certo um pensamento profano, nem uma causa estranha que animava aquele
sentimento. Ao contrário: neste templo que a religião enchia com todo o vigor de suas
imagens e toda a poesia de seus mitos, neste recinto em que as luzes, o silêncio e as sombras,
as galas e a música representavam todas as expressões do sentimento, só faltava a palavra,
mas a palavra do Evangelho, a palavra de uma inspiração sublime e divina, a palavra que cai
do céu sobre o coração como um eco da voz de Deus, e que refrange aos lábios para poder ser
compreendida pela linguagem dos homens.
Era isto o que todos esperavam. Os olhos se voltavam para o púlpito onde havia
pregado Sampaio, S. Carlos e Januário; e pareciam evocar dos seus túmulos aquelas sombras
ilustres para virem contemplar um dia de sua vida, uma reminiscência de suas passadas
glórias.
Deixai que emudeçam as orações, que se calem os sons da música religiosa, e que os
últimos ecos dos cânticos sagrados se vão perder pelo fundo dos erguidos corredores ou pelas
frestas arrendadas das tribunas.
Cessaram de todo as orações. Recresce a expectação e a ansiedade; mas cada um se
retrai na mudez da concentração. Os gestos se reprimem, contêm-se as respirações anelantes.
O silêncio vai descendo frouxa e lentamente do alto das abóbadas ao longo das paredes, e
sepulta de repente o vasto âmbito do templo.
Chegou o momento. Todos os olhos estão fixos, todos os espíritos atentos.
No vão escuro da estreita arcada do púlpito assomou um vulto. É um velho cego,
quebrado pelos anos, vergado pela idade. Nessa bela cabeça quase calva e encanecida pousa-
lhe o espírito da religião sob a tríplice auréola da inteligência, da velhice e da desgraça.
O rosto pálido e emagrecido cobre-se desse vago, dessa oscilação do homem que
caminha nas trevas. Entre as mangas do burel de seu hábito de franciscano cruzam-se os
braços nus e descarnados.
Ajoelhou. Curvou a cabeça sobre a borda do púlpito, e, revolvendo as cinzas de um
longo passado, murmurou uma oração, um mistério entre ele e Deus.
Que há em tudo isto que desse causa à tamanha expectação? Não se encontra a cada
momento um velho, a quem o claustro seqüestrou do mundo, a quem a cegueira privou da luz
dos olhos? Não há aí tanta inteligência que um voto encerra numa célula, e que a desgraça
sepulta nas trevas?
É verdade. Mas deixai que termine aquela rápida oração; esperai um momento... um
segundo... ei-lo!
O velho ergueu a cabeça; alçou o porte; a sua fisionomia animou-se. O braço
descarnado abriu um gesto incisivo; os lábios, quebrantando o silêncio de vinte anos,
lançaram aquela palavra sonora, que encheu o recinto, e que foi acordar os ecos adormecidos
de outros tempos.
Fr. Francisco de Monte Alverne pregava! Já não era um velho cego, que a desgraça e a
religião mandava respeitar. Era o orador brilhante, o pregador sagrado, que impunha a
admiração com a sua eloqüência viva e animada, cheia de grandes pensamentos e de imagens
soberbas.
Desde este momento o que foi aquele rasgo de eloqüência, não é possível exprimi-lo,
nem sei dize-lo. A entonação grave de sua voz, a expressão nobre do gesto enérgico a copiar a
sua frase eloqüente, arrebatava; e levado pela força e veemência daquela palavra vigorosa, o
espírito, transpondo a distância e o tempo, julgava-se nos desertos de Said e da Tebaida, entre
os rochedos alcantilados e as vastas sáfaras de areia, presenciando todas as austeridades da
solidão.
De repente, em dois terços, com uma palavra, com um gesto, muda-se o quadro; e
como que a alma se perde naquelas vastas e sombrias abóbadas do Mosteiro de São Justo,
para ver com assombro Pedro de Alcântara em face de Carlos V, o santo em face da grandeza
decaída.
Aqueles que em outros tempos ouviram Monte Alverne, e que podem comprar as duas
épocas de sua vida cortada por uma longa reclusão, confessam que todas as suas
reminiscências dos tempos passados, apesar do prestígio da memória, cederam a esse triunfo
da eloqüência.
Entre as quatro paredes de uma célula estreita, privado da luz, é natural que o
pensamento se tenha acrisolado; e que a inteligência, cedendo por muito tempo a uma força
poderosa de concentração, se preparasse para essas expansões brilhantes.
O digno professor de eloqüência do Colégio de Pedro II; desejando dar aos seus
discípulos uma lição de prática de oratória, assistiu com eles, e acompanhado do respeitável
diretor daquele estabelecimento, ao belo discurso de Monte Alverne.
Não me animo a dizer mais sobre um assunto magnífico, porém esgotado por uma
dessas penas que com dois traços esboçam um quadro, como a palavra de Monte Alverne com
um gesto e uma frase.
Contudo, se este descuido de escritor carece de desculpas, parece-me que tenho uma
muito valiosa na importância do fato que preocupou os espíritos durante os últimos dias da
semana, e deu tema a todas as conversações.
Parece, porém, que a chuva só quis dar tempo a que a cidade do Rio de Janeiro pudesse
ouvir o ilustre pregador, sem que o rumor das goteiras perturbasse o silêncio da igreja.
À tarde o tempo anuviou-se, e a água caía a jorros. Entretanto isto não impediu que a
alta sociedade e todas as notabilidades políticas e comerciais, em trajes funerários,
concorressem ao enterro de uma senhora virtuosa, estimada por quantos a tratavam,
conhecida pelos pobres e pelas casas pias.
A Sra. Baronesa do Rio Bonito contava muitas afeições, não só pelas suas virtudes,
como pela estimação geral de que gozam seus filhos. O grande concurso de carros que
acompanharam o seu préstito fúnebre em uma tarde desabrida é o mais solene testemunho
desse fato.
Entre as pessoas que carregaram o seu caixão notaram-se o Sr. Presidente do Conselho,
o Sr. Ministro do Império e alguns Diretores do Banco do Brasil. É o apanágio da virtude, e o
único consolo da morte. Ante os despojos exânimes de uma alma bem formada se inclinam
sem humilhar-se todas as grandezas da terra.
Esses dois fatos, causa de sentimentos opostos, enchem quase toda a semana. Desde
pela manhã até a noite a chuva caía com poucas intermitências, e parecia ter destinado aqueles
dias para as solenidades e os pensamentos religiosos.
Apesar da esterilidade e sensaboria que produz sempre esse tempo numa cidade de
costumes como os nossos, apesar dos dissabores dos namorados privados dos devaneios da
tarde, e dos ataques de nervos das moças delicadas, os homens previdentes não deixavam de
estimar essas descargas de eletricidade, e essas pancadas d’água, que depuram e refrescam a
atmosfera.
Na opinião (quanto a mim estou em dúvida), essas caretas que o tempo fazia aos
prognosticadores de moléstias imaginárias, valiam mil vezes mais do que todas as discussões
de todas as academias médicas do mundo.
Quanto mais, se soubessem que o Sr. Ministro do Império durante esses dias se
preocupava seriamente das medidas necessárias ao asseio da cidade, mostrando assim todo
zelo em proteger esta bela capital dos ataques do diabo azul. Sirvo-me deste nome, porque
estou decidido a não falar mais em cólera, enquanto não resolverem definitivamente se é
homem, se é mulher ou hermafrodita.
Para este fim o Sr. Pedreira consultou o presidente da câmara municipal, e incumbiu ao
Sr. Desembargador chefe de polícia a inspeção do serviço, cujo regulamento será publicado
oportunamente.
Com as providências que se tomaram, e especialmente com a medida da divisão dos
distritos e da combinação da ação policial com o elemento municipal, a fim de remover
quaisquer obstáculos, creio que podemos esperar resultados úteis e eficazes.
VII
Rio, 29 de outubro
Quando estiverdes de bom humor e numa excelente disposição de espírito, aproveitai
uma dessas belas tardes de verão como tem feito nos últimos dias, e ide passar algumas horas
no Passeio Público, onde ao menos gozareis a sombra das árvores e um ar puro e fresco, e
estareis livres da poeira e do incômodo rodar dos ônibus e das carroças.
Talvez que, contemplando aquelas velhas e toscas alamedas com suas grades
quebradas e suas árvores mirradas e carcomidas, e vendo o descuido e a negligência que reina
em tudo isto, vos acudam ao espírito as mesmas reflexões que me assaltaram a mim e a um
amigo meu, que há cerca de um ano teve a habilidade de transformar em uma semana uma
tarde no Passeio público.
Talvez pensareis como nós que o estrangeiro que procurar nestes lugares, banhados
pela viração da tarde, um refrigério à calma abrasadora do clima deve ficar fazendo bem alta
idéia, não só do passeio como do público desta corte.
A nossa sociedade é ali dignamente representada por dois tipos curiosos e dignos de
uma fisiologia no gênero de Balzac. O primeiro é o estudante de latim, que, ao sair da escola,
ainda com os Comentários debaixo do braço e o caderno de significados no bolso, atira-se
intrepidamente qual novo César à conquista do ninho dos pobres passarinhos. O segundo é o
velho do século passado que, em companhia do indefectível compadre, recorda as tradições
dos tempos coloniais, e conta anedotas sobre a Rua das Belas Noites e sobre o excelente
governo do sr. Vice-Rei D. Luís de Vasconcelos.
Assim, pois, não há razão de queixa. O passado e o futuro, a geração que finda e a
mocidade esperançosa que desaponta, fazem honra ao nosso Passeio, o qual fecha-se às oito
horas muito razoavelmente, para dar tempo ao passado de ir cear, e ao futuro de ir cuidar nos
seus significados.
Quanto ao presente, não passeia, é verdade; porém, em compensação, vai ao Cassino,
ao Teatro Lírico, toma sorvetes, e tem mil outros divertimentos agradáveis, como o de encher
os olhos de poeira, fazer um exercício higiênico de costelas dentro de um carro nas ruas do
Catete, e sobretudo o prazer incomparável de dançar, isto é, de andar no meio da sala, como
um lápis vestido de casaca, a fazer oito nas contradanças, e a girar na valsa como um pião, ou
como um corrupio.
Com tão belos passatempos, que se importa o presente com esse desleixo imperdoável
e esse completo abandono de um bem nacional, que sobrecarrega de despesas os cofres do
Estado, sem prestar nenhuma das grandes vantagens de que poderiam gozar os habitantes
desta corte?
Quando por acaso se lembra de semelhante coisa, é unicamente para servir-lhe de
pretexto a um estribilho de todos os tempos e de todos os países, para queixar-se da
administração e lançar sobre ela toda a culpa. Ora, eu não pretendo defender o governo, não
só porque, tendo tanta coisa a fazer, há de por força achar-se sempre em falta, como porque
ele está para a opinião pública na mesma posição que o menino de escola para o mestre, e que
o soldado para o sargento, isto é, tendo a presunção legal contra si.
Contudo parece-me que o estado vergonhoso do nosso Passeio Público não é
unicamente devido à falta de zelo da parte do governo, mas também aos nossos usos e
costumes, e especialmente a uns certos hábitos caseiros e preguiçosos, que têm a força de
fechar-nos em casa dia e noite.
Nós que macaqueamos dos franceses tudo quanto eles t~em de mau, de ridículo e de
grotesco, nós que gastamos todo o nosso dinheiro brasileiro para transformar-nos em bonecos
e bonecas parisienses, ainda não nos lembramos de imitar uma das melhores coisas que eles
têm, uma coisa que eles inventaram, que lhes é peculiar e que não existe em nenhum outro
país a menos que não seja uma pálida imitação: a flânerie.
Sabeis o que é a flânerie? É o passeio ao ar livre, feito lenta e vagarosamente,
conversando ou cismando, contemplando a beleza natural ou a beleza da arte; variando a cada
momento de aspectos e de impressões. O companheiro inseparável do homem quando flana é
o charuto; o da senhora é o seu buquê de flores.
O que há de mais encantador e de mais apreciável na flânerie é que ela não produz
unicamente o movimento material, mas também o exercício moral. Tudo no homem passeia: o
corpo e a alma, os olhos e a imaginação. Tudo se agita; porém é uma agitação doce e calma,
que excita o espírito e a fantasia, e provoca deliciosas emoções.
A cidade do Rio de Janeiro, com seu belo céu de azul e sua natureza tão rica, com a
beleza de seus panoramas e de seus graciosos arrabaldes, oferece muitos desses pontos de
reunião, onde todas as tardes, quando quebrasse a força do sol, a boa sociedade poderia ir
passar alguns instantes numa reunião agradável, num círculo de amigos e conhecidos, sem
etiquetas e cerimônias, com toda a liberdade do passeio, e ao mesmo tempo com todo o
encanto de uma grande reunião.
Não falando já do Passeio Público, que me parece injustamente votado ao abandono,
temos na Praia de Botafogo um magnífico boulevard como talvez não haja um em Paris, pelo
que toca à natureza. Quanto à beleza da perspectiva, o adro da pequena igrejinha da Glória é
para mim um dos mais lindos passeios do Rio de Janeiro. O lanço d’olhos é soberbo: vê-se
toda a cidade à vol d’oiseau, embora não tenha asas para voar a algum cantinho onde nos
leva sem querer o pensamento.
Mas entre nós ninguém dá apreço a isto. Contanto que se vá ao baile do tom, à ópera
nova, que se pilhem duas ou três constipações por mês e uma tísica por ano, a boa sociedade
se diverte; e do alto de seu cupê aristocrático lança um olhar de soberano desprezo para esses
passeios pedestres, que os charlatães dizem ser uma condição da vida e de bem-estar, mas que
enfim não têm a agradável emoção dos trancos, e não dão a um homem a figura de um boneco
de engonço a fazer caretas e a deslocar os ombros entre as almofadas de uma carruagem.
A boa sociedade não precisa passear; tem à sua disposição muitos divertimentos, e não
deve por conseguinte invejar esse mesquinho passatempo do caixeiro e do estudante. O
passeio é a distração do pobre, que não tem saraus e reuniões.
Entretanto, se por acaso encontrardes o diabo Coxo de Lesage, pedi-lhe que vos
acompanhe em alguma nova excursão aérea, e que vos destampe os telhados das casas da
cidade; e, se for noite em que a Charton esteja doente e o Cassino fechado, vereis que a
atmosfera de tédio e monotonia encontrareis nessas habitações, cujos moradores não passeiam
nunca, porque se divertem de uma maneira extraordinária.
Felizmente creio que vamos ter breve uma salutar modificação nesta maneira de
pensar. As obras para a iluminação a gás do Passeio Público e alguns outros reparos e
melhoramentos necessários já começaram e brevemente estarão concluídos.
Autorizando-se então o administrador a admitir o exercício de todas essas pequenas
indústrias que se encontram nos passeios de Paris para comodidade dos freqüentadores, e
havendo uma banda de música que toque a intervalos, talvez apareça a uma banda de música
que toque a intervalos, talvez apareça a concorrência, e o Passeio comece a ser um
passatempo agradável.
Já houve a idéia de entregar-se a administração a uma companhia, que, sem nenhuma
subvenção do governo, se obrigaria a estabelecer os aformoseamentos necessários, obtendo
como indenização um direito muito módico sobre a entrada, e a autorização de dar dois ou
três bailes populares durante o ano.
Não achamos inexeqüível semelhante idéia; e, se não há nela algum inconveniente que
ignoramos, é natural que o Sr. Ministro do Império já refletido nos meios de leva-la a efeito.
Entretanto o Sr. Ministro que se acautele, e pense maduramente nesses melhoramentos
que está promovendo. São úteis, são vantajosos; nós sofremos com a sua falta, e esperamos
ansiosamente a sua realização. Mas, se há nisto uma incompetência de jurisdição, nessa caso,
perca-se tudo, contanto que salve-se o princípio: Quod Dei Deo, quod Cesaris Cesare..
A semana passada já o Sr. Pedreira deu motivo a graves censuras com o seu
regulamento do asseio público. E eu que caí em dizer algumas palavras a favor! Não tinha
ainda estudado a questão, e por isso julgava que, não dispondo a Câmara Municipal dos
recursos necessários para tratar do asseio da cidade, o Sr. Ministro do Império fizera-lhe um
favor isentando-a desta obrigação onerosa e impossível, e a nós um benefício, substituindo a
realidade do fato à letra morta das posturas.
Engano completo! Segundo novos princípios modernamente descobertos em um jornal
velho, a Câmara Municipal não tem obrigação de zelar a limpeza da cidade, tem sim um
direito; e por conseguinte dispensa-la de cumprir aquela obrigação é esbulha-la desse seu
direito. Embora tenhamos as ruas cheias de lama e as praias imundas, embora a cidade às dez
horas ou meia-noite esteja envolta numa atmosfera de miasmas pútridos, embora vejamos
nossos irmãos, nossas famílias e nós mesmos vítimas de moléstias provenientes destes focos
de infecção! Que importa! La garde meurt, mais ne se rend pas. Morramos, mas respeite-se o
elemento municipal; salve-se a sagrada inviolabilidade das posturas!
Filipe III foi legalmente assassinado, em virtude do rigor das etiquetas da corte
espanhola. Não é muito, pois, que nós, os habitantes desta cidade, sejamos legalmente
pesteados, em virtude das prerrogativas de um novo regime municipal.
A pouco tempo eu diria que isto era mais do que um contra-senso, porém hoje, não;
reconheço que o Ministro do Império não deve tocar no elemento municipal, embora o
elemento municipal esteja na pasta do Ministro do Império, que aprova as posturas e conhece
dos recursos de suas decisões.
Respeite-se, portanto, a independência da edilidade, e continuemos a admirar os belos
frutos de tão importante instituição, como sejam a reedificação das casas térreas da Rua do
Ouvidor, a conservação das biqueiras, o melhoramento das calçadas das Ruas da Ajuda e da
Lapa, e a irregularidade da construção das casas, que se regula pela vontade do proprietário e
pelo preceito poético de Horácio – Omnis variatio delectat.
Ora, na verdade um elemento municipal, que tem feito tantos serviços, que além de
tudo tem poetizado esta bela corte com a aplicação dos preceitos de Horácio, não pode de
maneira alguma ser privado do legítimo direito que lhe deu a lei de servir de valet de chambre
da cidade.
Pelo mesmo princípio, sendo o pai obrigado a alimentar o filho, sendo cada um
obrigado a alimentar-se a si mesmo, qualquer esmola feita pela caridade, qualquer instituição
humanitária, como recolhimento de órfãos e de expostos, não pode ser admitido, porque
constitui uma ofensa ao direito do terceiro.
E agora que temos chegado às últimas e absurdas conseqüências de um princípio
arbitrário, desculpem-nos aqueles a quem contestamos o tom a que trouxemos discussão.
Neste mundo, onde não faltam motivos de tristeza, é preciso rir ainda à custa das coisas as
mais sérias.
A não ser isto, provaríamos que o Sr. Ministro do Império, tomando as medidas
extraordinárias que reclama a situação, respeitou e considerou o elemento municipal, e
deixou-lhe plena liberdade de obrar dentro dos limites de sua competência. Se me contestarem
semelhante fato, então não terei remédio senão vestir o folhetim de casaca preta e gravata
branca, e voltar à discussão com a lei numa mão e a lógica na outra.
Aposto, porém, que a esta hora já o meu respeitável leitor está torcendo a cabeça em
forma de ponto de interrogação, para perguntar-me se pretendo escrever uma revista
hebdomadária sem dar-lhe nem ao menos uma ou duas notícias curiosas.
Que quer que lhe faça? O paquete de Liverpool chegou domingo, mas a única notícia
que nos trouxe foi a do desembarque na Criméia. Ora, parece-me que não é preciso ter o dom
profético para adivinhar os lances de semelhante expedição, que deve ser o segundo tomo da
tomada de Bommarsund, já tão bem descrita, todos sabem por quem.
Há três ou quatro vapores soubemos que se preparava a expedição da Criméia; depois
disto, as notícias vieram, e continuaram a vir pouco mais ou menos desta maneira. – As forças
aliadas embarcaram. – estão em caminho. Devem chegar em tal tempo. – Chegaram. –
Desembarcaram. – Reuniu-se o conselho general para resolver o ataque. – O ataque foi
definitivamente decidido. – Começou o assalto. – Interrompeu-se o combate para que os
pintores ingleses tirem a vista da cidade no meio do assalto. – Continuou o combate. – Fez-se
uma brecha. – Nova interrupção para tirar-se a vista da brecha.
Isto, a dois paquetes por mês, dá-nos uma provisão de notícias que pode chegar até
para meados do ano que vem. Provavelmente durante este tempo mudar-se-ão os generais, e
os pintores da Europa terão objeto para uma nova galeria de retratos, os escritores tema para
novas brochuras, e os jornalistas matéria vasta para publicações e artigos de fundo. E todo
este movimento literário e artístico promovido por um bárbaro russo, o qual com a ponta do
dedo abalou a Europa e tem todo o mundo suspenso!
É um fenômeno este tão admirável como o que se nota no Teatro Lírico nas noites em
que canta a Casaloni. A sua voz extensa e volumosa, e os enormes ramos de flores enchem o
salão de tal maneira, que não cabe senão um pequeno número de espectadores; o resto, não
achando espaço e não podendo resistir à força de tal voz, é obrigado a retirar-se. Entretanto
os desafetos da cantora dizem que ela não tem entusiastas e adoradores! Tudo porque ainda
não compreenderam aquele fenômeno artístico e musical!
VIII
Rio, 3 de novembro
MÁQUINAS DE COSER
Meu caro colega. – Acho-me seriamente embaraçado da maneira por que descreverei a
visita que fiz ontem à fábrica de coser de M.me Besse, sobre a qual já os nossos leitores
tiveram uma ligeira notícia neste mesmo jornal.
O que sobretudo me incomoda é o título que leva o meu artigo. Os literatos, apenas ao
lerem, entenderão que o negócio respeita aos alfaiates e modistas. Os poetas acharão o
assunto prosaico, e talvez indigno de preocupar os vôos do pensamento. Os comerciantes,
como não se trata de uma sociedade em comandita, é de crer bem pouca atenção dêem a esse
melhoramento da indústria.
Por outro lado, tenho contra mim o belo sexo, que não pode deixar de declarar-se
contra esse maldito invento, que priva os seus dedinhos mimosos de uma prenda tão linda, e
acaba para sempre com todas as graciosas tradições da galanteria antiga.
Aqueles lencinhos embainhados, penhor de um amante fiel, e aquelas camisinhas de
cambraia destinadas a um primeiro filho, primores de arte e de paciência, primeiras delícias
da maternidade, tudo isto vai desaparecer.
As mãozinhas delicadas da amante, ou da mãe extremosa, trêmulas de felicidade e
emoção, não se ocuparão mais com aquele doce trabalho, fruto de longas vigílias, povoadas
de sonhos e de imagens risonhas. Que coração sensível pode suportar friamente semelhante
profanação do sentimento?...
Declarando-se as senhoras contra nós, quase que podemos contar com uma conspiração
geral, porque é coisa sabida que desde o princípio do mundo os homens gastam a metade de
seu tempo a dizer mal das mulheres, e a outra metade a imitar o mal que elas fazem.
Por conseguinte, refletindo bem, só nos restam para leitores alguns homens graves e
sisudos, e que não se deixam dominar pela influência dos belos olhos e dos sorrisos
provocadores. Mas como é possível distrair estes espíritos preocupados com altas questões do
Estado de faze-los descer das sumidades da ciência e da política a uma simples questão de
costura?
Parece-lhe isto talvez uma coisa muito difícil; entretanto tenho para mim que não há
nada mais natural. A história, essa grande mestra de verdades, nos apresenta inúmeros
exemplos do grande apreço que sempre mereceu dos povos da antiguidade, não só a arte de
coser, como as outras que lhe são acessórias.
Eu podia comemorar o fato de Hércules fiando aos pés de Onfale, e mostrar o
importante papel que representou na antiguidade, a teia de Penépole, que mereceu ser cantada
por Homero. Quanto à agulha de Cleópatra, esse lindo obelisco de mármore, é a prova mais
formal de que os Egípcios votavam tanta admiração à arte da costura, que elevaram aquele
monumento à sua rainha, naturalmente porque ela excedeu-se nos trabalhos desse gênero.
As tradições de todos os povos conservam ainda hoje o nome dos inventores da arte de
vestir os homens. Entre os gregos foi Minerva, entre os lídios Aracne, no Egito Isis, e no Peru
Manacela, mulher de Manco Capa.
Os chineses atribuem essa invenção ao Imperador Ias; e na Alemanha, conta a legenda
que a fada Ave, tendo um amante muito friorento, compadeceu-se dele, e inventou o tecido
para muito friorento, compadeceu-se dele, e inventou o tecido para vesti-lo. Naquele tempo
feliz ainda eram as amantes que pagavam os gastos da moda; hoje, porém, este artigo tem
sofrido uma modificação bem sensível. As fadas desapareceram, e por isso os homens vão
cuidando em multiplicar as máquinas.
Só estes fatos bastariam para mostrar que importância tiveram em todos os tempos e
entre todos os povos as artes que servem para preparar o traje do homem. Além disto, porém a
tradição religiosa conta que já no Paraíso, Eva criara, com as folhas da figueira, diversas
modas, que infelizmente caíram em desuso.
Já não falo de muitas rainhas, como Berta, que foram mestras e professoras na arte de
coser e fiar; e nem das sábias pragmáticas dos Reis de Portugal a respeito do vestuário, as
quais mostram o cuidado que sempre mereceu daqueles monarcas, e especialmente do grande
Ministro Marquês de Pombal, a importante questão dos trajes.
Hoje mesmo, apesar do rifão antigo, todo o mundo entende que o hábito faz o monge; e
se não vista alguém uma calça velha e uma casaca de cotovelos roídos, embora seja o homem
mais relacionado do Rio de Janeiro, passará por toda a cidade incógnito e invisível, como se
tivesse no dedo o anel de Giges.
Assim, pois, é justamente para os espíritos graves, dados aos estudos profundos e às
questões de interesse público, que resolvi descrever a visita à fábrica de coser de M.me Besse,
certo de que não perderei o meu tempo, e concorrerei quanto em mim estiver para que se
favoreça este melhoramento da indústria, que pode prestar grandes benefícios, fornecendo não
só à população desta côrte, mas também a alguns estabelecimentos nacionais.
A fábrica está situada à Rua do Rosário, n.º 74. Não é uma posição tão aristocrática
como a das modistas da Rua do Ouvidor; porém tem a vantagem de ser no centro da cidade; e,
portanto, as senhoras do tom podem facilmente e sem derrogar aos estilos da alta fashion
fazer a sua visita a M.me Besse, que as receberá com graça e a amabilidade que a distingue.
Era na ocasião de uma dessas visitas que eu desejaria achar-me lá para observar o
desapontamento das minhas amáveis leitoras (se é que as tenho, visto que estou escrevendo
para os homens pensadores). Dizem que o espírito da indústria tem despoetizado todas as
artes, e que as máquinas vão reduzindo o mais belo trabalho a um movimento monótono e
regular, que destrói todas as emoções, e transforma o homem num autômato escravo de outro
autômato.
Podem dizer o que quiserem; eu também pensava o mesmo antes de ver aquelas lindas
maquinazinhas que trabalham com tanta rapidez, e até com tanta graça. Figurai-vos umas
banquinhas de costura fingindo charão, ligeiras e cômodas, podendo colocar-se na posição
que mais agradar, e sobre esta mesa uma pequena armação de aço, e podeis fazer uma idéia
aproximada da vista da máquina. Um pezinho o mais mimoso do mundo, um pezinho de
Cendrillon, como conheço alguns, basta para fazer mover sem esforço todo este delicado
maquinismo.
E digam-me ainda que as máquinas despoetizam a arte! Até agora, se tínhamos a
ventura de ser admitidos no santuário de algum gabinete de moça, e de passarmos algumas
horas e conversar e a vê-la coser, só podíamos gozar dos graciosos movimentos das mãos;
porém não se nos concedia o supremo prazer de entrever sob a orla do vestido um pezinho
encantador, calçado por alguma botinazinha azul; um pezinho de mulher bonita, que é tudo
quanto há de mais poético neste mundo.
Enquanto este pezinho travesso, que imaginareis, como eu, pertencer a quem melhor
vos aprouver, faz mover rapidamente a máquina, as duas mãozinhas, não menos ligeiras,
fazem passar pela agulha uma ourela de seda ou de cambraia, ao longo da qual vai-se
estendendo com incrível velocidade uma linha de pontos que acaba necessariamente por um
ponto de admiração (!).
Está entendendo que o ponto de admiração é feito pelos vossos olhos, e não pela
máquina, que infelizmente não entende nada de gramática, senão podia-nos bem servir para
elucidar as famosas questões do gênero do cólera e da ortografia da palavra asseio. Questões
estas muito importantes, como todos sabem, porque, sem que elas se decidam, nem os
médicos podem acertar no curativo da moléstia, nem o Sr. Ministro do Império pode publicar
o seu regulamento da limpeza da cidade.
Voltando, porém, à nossa máquina, posso assegurar-lhes que a rapidez é tal, que nem o
mais cabula dos estudantes de São Paulo ou de medicina, nem um poeta e romancista a fazer
reticências, são capazes de ganha-la a dar pontos. Se a deixarem ir à sua vontade, faz uma
ninharia de trezentos por minuto; mas, se a zangarem, vai aos seiscentos; e então, ao contrário
do que desejava um nosso espirituoso folhetinista contemporâneo, o Sr. Zaluar, pode-se dizer
que quando começa a fazer ponto, nunca faz ponto.
Mau! Já me andam os calemburs às voltas! É preciso continuar; mas, antes de passar
adiante, sempre aconselharei a certos credores infatigáveis, a certos escritores cuja verve é
inesgotável, que vão examinar aquelas máquinas a ver se aprendem delas a arte de fazer
ponto. É uma coisa muito conveniente ao nosso bem estar, e será mais um melhoramento que
deveremos a M.me Besse.
Aos Estados Unidos cabe a invenção das máquinas de coser, que hoje se têm
multiplicado naquele país de uma maneira prodigiosa, principalmente depois dos últimos
aperfeiçoamentos que se lhe têm feito. M.me Besse possui atualmente na sua fábrica seis
destas máquinas, e tem ainda na alfândega doze, que pretende despachar logo que o seu
estabelecimento tomar o incremento que é de esperar.
M.me Besse corta perfeitamente qualquer obra de homem ou de senhora; e, logo que for
honrada com a confiança das moças elegantes, é de crer que se torne a modista do tom,
embora não tenha para isto a patente de francesa, e não more na Rua do Ouvidor.
Além disto, como ela possui máquinas de diversas qualidades, umas que fazem a
costura a mais fina, outras próprias para coser fazenda grossa e ordinária, podem também
muitos estabelecimentos desta corte lucrar com a sua fábrica um trabalho, não só mais rápido
e mais bem acabado como mais módico no preço.
Presentemente a fábrica já tem muito que fazer; mas, quando se possui seis máquinas, e
por conseguinte se dá três mil e seiscentos pontos por minuto, é preciso que se tenha muito
pano para mangas.
Sou, meu caro colega, etc.
IX
Rio, 5 de novembro
Lacrimae rerum...
A religião, essa sublime epopéia do coração humano, tem um símbolo para cada
sentimento, uma imagem para todos os acidentes da nossa existência.
É aos pés do altar que o homem vê abrir-se para ele a fonte de todas as supremas
venturas deste mundo – a família; e, quando o sopro da desgraça vai desfolhando uma a uma
as flores da vida, é ainda aos pés do altar que achamos o consolo para as grandes dores, a
esperança nos maiores infortúnios.
É que nesta breve romaria que fazemos pelo mundo, a religião nos acompanha como
esses guias mudos do deserto, apontando-nos umas vezes o nada de onde partimos, outras a
eternidade para onde caminhamos, e mostrando-nos a espaços com um aceno a linha negra
que prognostica o simoun, ou os rastos dos animais que anunciam o oásis no meio das vastas
sáfaras de areia.
Quantas vezes no seio das alegrias e dos prazeres, quando nossos olhos vêem tudo cor-
de-rosa, quando o ar que respiramos parece vir perfumado dos bafejos da ventura, não
sentimos de chofre o coração apertar-se como tomado por um doloroso pressentimento, e a
alma confranger-se numa angústia pungente?
O deslumbramento passa rápido como o pensamento que o produziu. Mas dir-se-ia que
o coração, comprimindo-se, como que vertera na taça do prazer uma gota de fel, e que entre o
rumor da festa e os sons alegres da música, viera ferir-nos os ouvidos um eco surdo das
lamentações de Jô: Memento quia pulvis est!...
Também às vezes a fortuna nos embala docemente, e a ambição nos empresta suas asas
de ouro, ao passo que a glória envolve-nos com a sua auréola brilhante. Então o homem
caminha com os olhos fitos na sua estrela, e com a cabeça alta passa sem perceber as misérias
do mundo. Sublimi feriam sidera vértice.
Mas lá vem um dia, uma hora, um instante em que o corpo verga com o peso de tanta
grandeza, e a cabeça acurva-se para a terra. Os olhos que mediam o espaço vacilam; a vista
que se dilatava pelos horizontes e ousava sondar os arcanos do futuro quebra-se de encontro a
uma lousa, a um fosso, onde a pá do coveiro traçou num estreito quadrado e com um pouco de
terra revolvida o emblema daquela sentença do Eclesiástico: Vanitas vanitatum et omnia
vanitas!
Se, porém a religião é severa nos seus conselhos, se durante os dias de paz e de
ventura fortifica o homem por meio da tristeza, na dor ao contrário é de uma bondade
inefável.
Nem uma fibra palpita no corpo humano, nem uma pulsação abala o coração, nem um
soluço arqueja num peito quebrado pelo sofrimento, que não ache nela um eco, uma voz que
lhe responda.
Nesse grande livro da fé e da esperança, neste sublime diálogo entre Deus e o homem,
todas as lágrimas têm uma palavra, todos os gemidos têm uma frase, todas as dores uma
prece, todos os infortúnios uma história.
A vida humana se resume na religião; nela se acha a essência de todos os grandes
sentimentos do homem e de todas as grandes coisas do mundo.
Tem a severidade e o respeito que inspira a paternidade, e ao mesmo tempo todos os
zelos da maternidade. Aconselha como um pai, quando fala pelos lábios do sacerdote; é a
mãe que se multiplica para seus filhos, quando abriga no seu seio todos os infelizes.
Mas, quando se folheia este livro da vida, e que se chega à última página – à morte –
quando a alma, em face do nada sente-se tomada desta grande e assombrosa ameaça do
completo aniquilamento, é que se sente quanto há de consolador na religião.
Entre as sombras da dúvida, entre o vago do infinito, a eternidade surge para nossa
alma como uma dessas estrelas furtivas que brilham entre o Cris negro da tempestade, e que
guiam o nauta perdido na vasta amplidão dos mares.
Se queres ler a legenda desta crença sublime de todos os povos e de todos os tempos,
ide no dia 2 de novembro, dia que a igreja destinou à comemoração dos finados, fazer uma
visita aos nossos cemitérios.
Haveis de sentir calar-vos dentro d’alma um eflúvio consolador, quando virdes toda
aquela piedosa romaria que percorre as aléias formadas pelos túmulos, relendo entre o pranto
as letras de um epitáfio singelo, e espargindo sobre a lousa alguma s flores misturadas de
lágrimas e de preces.
Este aspecto de uma multidão forte e cheia de vida prostrada ante as cinzas de alguns
mortos não exprime alguma coisa de misterioso, alguma coisa de incompreensível, que
decerto se prende a esse religioso culto dos túmulos sempre venerado por todos os povos?
Para que o homem venha assim cada ano avivar uma dor quase extinta, e ver refletir-se
na lousa da campa os transes acerbos de uma triste provança já acalmada pelo correr dos
tempos, é necessário a força irresistível da verdade revelada pelos impulsos do coração.
Sem isto, não é possível compreender-se o respeito que votamos aos mortos, nem essa
melancólica poesia da saudade que inspira a religião dos túmulos.
Se nestas campas que há anos se abriram para receber um corpo houvesse apenas um
pouco de terra e alguns vermes, o homem que se prostasse em face delas não cometeria uma
profanação? Ajoelhando à beira da lousa e sangrando um culto ao pó, não rebaixaríamos a
dignidade de um ser moral, escravizando a razão à matéria, a vida ao nada? Se outra coisa
mais forte do que a recordação não nos impelisse a estes espetáculos de luto e de tristeza, não
daríamos uma mesquinha idéia da natureza humana?
É verdade; mas os restos dos mortos encerram de envolta com as recordações deste
mundo as esperanças de outra vida. É por isso que no meio das preces, e das lágrimas e flores
que vem depor ao pé da campa a mão amiga, a cruz singela se ergue como o símbolo da fé e
da religião. Os nossos cemitérios, criados há bem pouco tempo, ainda não apresentam este
aspecto grave e imponente que ressumbra ordinariamente no campo dos mortos
Ainda não há aí essas longas e sombrias alamedas de árvores, essas bancadas de relva
onde se destaca uma lousa branca, nem esses ciprestes e chorões plantados à beira de uma
sepultura simbolizando no seu aspecto triste e melancólico a oração que se eleva ao céu, ou
as lágrimas que se desfiam a tombar sobre a terra.
A nudez do campo quase despido de árvores, o desabrigo das lousas sobre cujas pedras
brancas o sol bate constantemente, punge o coração, e como que torna acre e acerba aquela
mágoa da saudade, que a religião repassa de tanta doçura e de tanto alívio. Naquelas quadras
descampadas a morte não tem sombra, a dor não tem ecos e a religião não tem mistérios.
Entretanto este ano, cumpre dizer em honra do espírito religioso da nossa população,
empregaram-se todos os esforços para fazer desaparecer aquele aspecto de nudez, e a romaria
foi talvez mais numerosa do que nos anos anteriores.
O cemitério de São João Batista sobretudo estava preparado da melhor maneira
possível; e, além do arranjo devido aos esforços do administrador, podia-se admirar alguns
monumentos funerários de uma singeleza e de um gosto perfeito.
Sinto que não me seja possível copiar aqui algumas inscrições, cheias dessa
simplicidade e dessa unção que respira uma dor verdadeiramente sentida; mas vós que lá
fostes deveis tê-las lido, embora uma mão desconhecida não houvesse aí gravado aquele
epitáfio antigo: Sta viator!
II
Não sei que poeta disse que a vida é um contraste. Pindaro chamou-a o sonho de uma
sombra, e Byron comparou-a a uma estrela, que ora desliza docemente entre o azul do céu,
ora vacila entre as nuvens escuras da borrasca.
Para mim, que não sou poeta, e que por conseguinte não aspiro à metafísica do
sentimento e das imagens, se tivesse de comparar a vida a alguma coisa, seria a um buquê, do
qual cada flor simbolizaria um ano, um dia ou uma hora da nossa vida.
Assim umas flores morrem ceifadas pelo ferro ou pisadas ao chão, outras murcham
lentamente ao tépido contato de um seio acetinado. Umas são desprezadas e secas por
lágrimas de despeito, ou depositadas numa campa como pia oferenda, outras passam de uma
mão à outra mão amiga, e vem embelezar-nos alguns momentos de cisma.
De qualquer modo que se compare a vida, o que é certo é que a vida, o que é certo é
que a semana que findou foi uma pequena miniatura do grande quadro da existência humana.
O dia 2 de novembro forma a sombra da tela; os claros foram lançados aqui e ali, uns
mais brilhantes, outros mais desvanecidos pelo acaso, que é um grande pintor de quadros
históricos.
A segunda-feira foi um dia de decepção, porque não só faltou-nos o benefício da
Charton, como o espetáculo anunciado em substituição, que não teve lugar, segundo dizem,
por moléstia do Gentili.
Em compensação tivemos na terça um baile do Cassino. Caso a comparação de Byron
sobre a vida humana seja exata, creio que nesta noite, se para alguns as horas correram
deliciosamente, para outros nem o céu esteve azul, nem luziu a estrela (de Byron, está
entendido). Provavelmente as nuvens encobriram-na.
Para outros que preferem a comparação do poeta grego, a vida foi durante essas horas
não o sonho de uma sombra, mas a sombra de um nome ou de uma letra.
Estão já os leitores curiosos por saber que nome e que letra era esta que me
incomodava tão seriamente, a ponto de fazer-me sonhar com ela no meio de um baile. O
nome não lhes direi, mas a letra é um – C.
Este – C – memorável, com que se escreve aceio, e que eu apesar do amor que lhe
consagro tive a desgraçada lembrança de substituir por dois – SS – valeu-me um quinau em
ortografia dado pelo colega do Velho Brasil, que não deixa passar camarão pela malha.
Esquecia-me, porém, dizer que podem saltar este artigo, que não vale a pena de ser
lido. Como é um claro do quadro da semana, acho razoável que o passem em claro.
Asseguro-lhes que nada perderão com isto, porque neste artigo não se trata de coisa
séria e grande. Prometi uma vez vestir o folhetim de casaca preta e gravata branca, e tiveram
logo a impiedade de chamá-lo monstro! Portanto agora, quando me vier a idéia trajar mais
curialmente o meu folhetim, há de ser de casaca parda com botões amarelos e calças de
ganga, como costuma sair na semana e especialmente no domingo um colega contemporâneo.
III
Estamos quase no fim do quadro. – Faz uma bela noite, a lua passeia solitária pelo céu,
refletindo-se nas água serenas de um lago, e reflete sua pálida claridade sobre as lousas de um
cemitério. Algumas ruínas, o silêncio da noite, a sombra das árvores completam a vista.
Dois vultos, um amante infeliz e uma moça em desespero – um condenado e uma louca
– ocupam o meio da cena. Cantam um dueto, desenlace de uma história triste; se a música se
pudesse perceber entre os aplausos ruidosos que enchem o salão, ouviríeis o belo dueto dos
Puritanos, magnífico trecho de música de Bellini, cantado pela Charton, que nesta fazia o seu
benefício.
Todos esperavam ansiosos esta festa musical dada pela cantora predileta do público, e
às oito horas a creme dos dilettanti desta corte enchia o salão com as suas pessoas, e com
uma quantidade enorme de flores e versos, que oportunamente surgiram de dentro dos bolsos
e dos lenços, e inundaram o teatro.
Ergueu-se o pano, e começou o coro da alvorada. De repente mudou-se a vista, e a
platéia estremeceu com uma salva tríplice de aplausos quase unânimes, que anunciaram a
entrada da cantora.
Vinha trajada de azul, da mais bela cor que a natureza criou para cobrir as coisas lindas
deste mundo, - as montanhas, o céu, o mar, e enfim as moças bonitinhas e alvas como o lírio,
que não podem deixar de compreender que o azul foi feito para moldurar o branco.
A Charton disse admiravelmente a ária do segundo ato, e, apesar de todos os
contratempos que sobrevieram, teve o poder de fazer da noite de seu benefício um completo
triunfo.
Algumas cenas desagradáveis tiveram lugar esta noite; porém a imprudência que as
motivou foi suficiente,mente castigada, não só pela manifestação pública, como pela energia
da polícia, que conseguiu reprimir muitos abusos. À sua atividade devemos ter-se evitado um
fato, que calamos por vergonhoso, e que talvez produzisse conseqüências bem tristes pela
exacerbação a que tinham sido levados os ânimos.
Ao terminar o espetáculo, a orquestra do teatro, executando várias músicas, conduziu
triunfalmente à sua casa a Charton, que seguiu a pé no meio de um concurso de mais de
quatrocentos dilettanti, entre os quais se contavam pessoas muito decentes, que o entusiasmo
impelira a dar essa subida prova de diletantismo.
Eu, apesar de muito entusiasmado, retirei-me prosaicamente de carro,
envergonhadíssimo de que a música não tivesse o poder de obrigar-me a andar mais de uma
légua a pé.
X
Rio, 12 de novembro
Desta vez não há razão de queixa. O paquete de Southampton trouxe-nos uma boa
coleção de notícias a respeito da guerra do Oriente. A curiosidade pública, suspensa há muito
tempo, pôde finalmente saciar-se com alguns episódios interessantes, como o de uma batalha
em campo raso, o da passagem de um rio, o da morte de um general e da fugida de um
príncipe à unha de cavalo.
Passada a primeira impressão. Cada um tratou de comentar as notícias a seu modo, de
maneira que já ninguém se entende, e não há remédio senão apelar para o vapor seguinte a
fim de sabermos a verdadeira solução do negócio.
A tomada do rio Alma sobretudo abriu um campo vasto a essa guerra de ditos
espirituosos e de epigramas, em que se acham seriamente empenhados os russos e turcos desta
cidade.
Uns entendem que, à vista das notícias, é fora de dúvida que Mesckintoff deixara
tomarem-lhe Alma, embora a muito custo escapasse com o corpo salvo das mãos dos
franceses e ingleses. Entretanto, as próprias notícias dadas pelos jornais, ninguém pode
duvidar que quem perdeu a alma não foi o príncipe russo, mas sim o General Saint-Arnaud.
No dia da chegada do paquete, um espirituoso redator de uma das folhas diárias da
corte dizia, ao ler a descrição da batalha, que o êxito da guerra estava conhecido, e que a
Rússia nada podia fazer desde que Nicolau perdera Alma. Ao contrário – retrucou-lhe o seu
colega – agora é que os ingleses e franceses estão em apuros, porque os russos, depois da
batalha, ficaram desalmados e não há nada que lhes resista.
Muita gente, que sabe como os franceses são fortes nos trocadilhos e jogos de palavras,
persuade-se que talvez todo este barulho da batalha de Alma não passe de algum calembur,
que eles nos querem impingir. Não vou tão longe nas minhas suposições; porém, quando teio
as duas participações de Lord Raglan e de Saint-Arnaud, não posso deixar de lembrar-me
daquela antiga anedota dos dois compadres da aldeia, que descobriram o modo de se elogiar a
si mesmos sem falar à modéstia.
Em toda essa batalha só há a sentir uma coisa; e é que os aliados fizessem poucos
prisioneiros, e não pudessem ajuntar uma boa coleção de príncipes russos, que tivessem
nomes de oito sílabas com a terminação em off, que é de rigor. Se isto acontecesse, seria uma
felicidade para o gênero humano; porque os tais boiardos passariam à França, espalhar-se-iam
pela Europa e talvez chegassem ao mercado do Brasil, onde imediatamente se havia de
manifestar uma grande procura deles para noivos. Se viessem alguns da Hircânia, e uma meia
dúzia de magias da Hungria, também não seria mau, para assim haver mais onde escolher
conforme o gosto de cada um..
Enquanto, porém não lhe é possível mandar-nos esse gênero de que tanto necessitamos,
a Europa vai nos enviando algumas cantoras exímias (é o termo do rigor), para nos distrair as
noites de uma maneira agradável. Chegou ultimamente uma, que, se a reputação corresponder
ao nome, terá de apagar de todo no espírito público as recordações que deixou a Stoltz, se não
como cantora, ao menos como excelente trágica.
Criar-se á provavelmente um terceiro partido que se intitulará Raquelista, e então o
teatro tornar-se-á interessantíssimo. Aplausos de um lado, pateada do outro, bravos, gritos,
estalinhos, caixas de rapé a ranger, tudo isto formará uma orquestra magnífica, e realçará a
voz das cantoras de uma maneira admirável. Isso pelo que toca ao ouvido; quanto à vista,
tomando a diretoria o bom acordo de reduzir a iluminação brilhante do teatro, as nuvens de
poeira, que se levantam da platéia, criarão o demi-jour necessário à ilusão ótica.
Que progresso! Possuiremos um Teatro Lírico, no qual não se ouvirá música e quase
nada se enxergará! Só quem não tiver uso de freqüentar teatros é que poderá negar as grandes
vantagens que resultam de tão engenhosa invenção.
Enquanto os empresários europeus se matam e se esforçam por contratar boas cantoras,
ensaiar as melhores óperas, e adquirir pintores cenógrafos para satisfazer o público e dar-lhe
espetáculos que agradem, nós descobriremos o meio de poupar todo este trabalho inútil e
dispendioso.
Para isto bastam duas ou três cantoras com os seus competentes partidos, e, se houver
também uma dançarina como a Baderna, melhor será. Com estes elementos conseguir-se-á
por noite umas quatro pateadas e algumas salvas de palmas; a noite tornar-se á animada, e o
gosto pela música italiana se irá popularizando cada vez mais.
Decerto, aquelas noites monótonas, em que levávamos a ouvir a Stoltz, comovidos e
atentos aos seus menores movimentos, descobrindo um estudo da arte, uma inspiração do
talento no seu gesto o mais simples, ou nas entonações graves de sua bela voz; essas noites
frias e calmas, em que depois de longas horas de êxtases, a alma afinal transbordava de
emoções e arrancava no fim da representação aplausos espontâneos; essas noites não valem os
espetáculos animados, como temos agora, cheios de fervor e entusiasmo, e em que nos
possuímos tanto do encanto da música, que todo o corpo se agita para dar a mais solene
manifestação de amor à arte.
Um dilettante é hoje no Rio de Janeiro o homem que se acha nas melhores condições
higiênicas e que deve menos temer a invasão do cólera, porque ninguém o ganha em
exercício. A cabeça bate o compasso mais regularmente do que a baqueta do Barbieri; as
mãos dão-se reciprocamente uma sova de bolos, como não há exemplo que tenha dado o mais
carrasco dos mestres de latim de todo o orbe católico. Dos pés não falemos; são capazes de
macadamizar numa noite a rua mais larga da cidade.
Ajunte-se a isto os bravos, os foras, os espirros, os espreguiçamentos (novo gênero de
pateada), e de vez em quando um passeio lírico de uma légua fora da cidade, e ver-se-á que
dora em diante, quando os médicos quiserem curar alguma moléstia que exija exercício, em
vez de mandarem o doente para a serra ou para os arrabaldes, lhe aconselharão que se aliste
nalgum dos partidos, chartonista ou casalonista, e vá ao teatro.
Um espírito observador, recorrendo a certos dados estatísticos, conseguiu também
descobrir que o homem mais útil desta corte é o dilettante. Cumpre-me, porém, notar que,
quando falamos em dilettante, não compreendemos o homem apaixonado de música, que
prefere ouvir uma cantora, sem por isso doestar a outra. Dilettante é um sujeito que não tem
nenhuma destas condições, que vê a cantora, mas não ouve a música que ela canta; que grita
bravo justamente quando a prima-dona desafina, e dá palmas quando todos estão atentos para
ouvir uma bela nota.
São muito capazes de levantar alguma questão gramatical sobre a minha definição,
tachando-a de paradoxo, ou demonstrando por meio da etimologia da palavra que estou em
erro. Mas isto pouco abalo me dá; os gramáticos que discutam, fazem o seu ofício, contanto
que não se arvorem em alfaiates ou comecem atalhar carapuças.
Voltando, porém, a nossas observações, é fato provado que o dilettante é o homem que
mais concorre para a utilidade pública. Em primeiro lugar, o extraordinário consumo que ele
faz de flores não pode deixar de dar grande desenvolvimento à horticultura, e de auxiliar a
fundação de um estabelecimento deste gênero, como já se tentou infrutiferamente nesta corte
antes do dilettantismo ter chegado ao seu apogeu.
Os sapateiros e luveiros ganham também com o teatro, porque não há calçado nem
luvas que resistam ao entusiasmo das palmas e das pateadas. Na ocasião dos benefícios, as
floristas e os joalheiros têm muito que fazer; e os jornais enchem-se de artigos que para os
leitores têm o título de publicações a pedido, e para o guarda-livros da casa o de publicações
a dinheiro.
Além de tudo isto, além dos estalinhos, dos versos avulsos, das fitas para os buquês, é
preciso não esquecer a carceragem que de vez em quando algum vai deixar na cadeia, onde se
resigna a passar a noite, fazendo um sacrifício louvável pelo seu extremo amor à arte.
Isso sem falar das outras vantagens que já apresentamos, como de fazer que não se
ouça a música e não se veja coisa alguma. De maneira que, assim, toda a ópera é boa e bem
representada; e, estando o teatro escuro com a poeira, não há risco que as mocinhas troquem
olhares malignos para as cadeiras. Só este último fato é de um alcance imenso; é uma garantia
de moralidade pública!
Se a diretoria soubesse apreciar esses bons resultados, em vez de transferir
constantemente o espetáculo por moléstias deste ou daquele, em vez de nos dar uma só
representação por semana, regularizaria os espetáculos, e repetiria o Trovador cinqüenta vezes
para que os moleques da rua aprendessem a assobiar de princípio a fim toda esta sublime
composição de Verdi, a qual daqui a alguns meses aparecerá correta e aumentada numa
porção de valsas, contradanças e modinhas.
Outra coisa, a que a diretoria não tem dado muita atenção, é ao estado do edifício e à
decência deste salão, onde se reúne a flor da sociedade desta corte. Agora que se trata com
tanta eficácia do asseio público, parece-nos que era ocasião que o asseio chegasse até o
interior do teatro, e fizesse desaparecer essa pintura mesquinha, essas paredes sujas, e esse pó
que cobre as cadeiras e que reduz as abas de nossas casacas à triste condição de espanador. A
julgar pela poeira que se levanta quando aparece a Charton ou a Casaloni, creio que há no
soalho do teatro terra para encher algumas carroças.
Se faltam à diretoria meios de remover essa terra, pode requisitá-los da administração
da limpeza pública, que por certo não se recusará, à vista da atividade que tem mostrado
ultimamente nos trabalhos que lhe foram incumbidos.
Com efeito, embora em começo, o serviço já tem conseguido apresentar bons
resultados; e basta percorrer as ruas desta cidade, para reconhecer os sinais de uma vigilância
ativa, que vai pouco a pouco substituindo o desleixo e a incúria que ali reinava entre a lama e
os charcos.
O Sr. Ministro do Império tomou, nesta questão da limpeza, o verdadeiro partido de
um bom administrador e o expediente de um homem de ação. Enquanto a discussão se ateava,
tratou de realizar a sua idéia, e criar com os fatos argumentos irresistíveis, argumentos que
calam imediatamente no espírito público. Os escrúpulos cessaram, apenas as nossas ruas
começaram a mostrar o zelo da autoridade; e creio que, removendo a lama e o cisco das ruas,
se removerá igualmente qualquer oposição extemporânea a uma medida de tanta utilidade.
Já podemos ter esperanças de ver nossa bela cidade reivindicar o seu nome poético de
princesa do vale, e despertar de manhã com toda a louçania para aspirar as brisas do mar e
sorrir ao sol que transmonta o cimo das serras. Talvez daqui a alguns meses seja possível
gozar a desoras o prazer de passar à la belle étoile, durante uma dessas lindas noites de luar
como só as há na nossa terra; ou percorrer sem os dissabores dagora a rua aristocrática, a rua
do Ouvidor, admirando as novidades chegadas da Europa, e as mimosas galantarias francesas,
que são o encanto dos olhos e o desencanto de certas algibeiras.
Esses passeios, que hoje já vão caindo um pouco em desuso, ainda se tornarão mais
agradáveis com algumas novidades interessantes que se preparam naquela rua, e que lhe darão
muito mais realce, excitando as senhoras elegantes e os gentlemen da moda a concorrer a esse
rendez-vous da boa companhia.
O Desmarais está acabando de preparar a sua antiga casa com uma elegância e um
apuro, que corresponde às antigas tradições que lhe ficaram dos tempos em que aí se reunia a
boa roda dos moços desta corte, e os deputados que depois da sessão vinham decidir dos
futuros destinos do país. Ali tinham eles ocasião de estudar os grandes progressos da
agricultura, fumando o seu charuto Regalia, e de apreciar os melhoramentos da indústria pelo
efeito dos cosméticos, pela preparação das diversas águas de tirar rugas, e pela perfeição das
cabeleiras e chinós.
Como o Desmarais, a Notre-Dame de Paris abrirá brevemente as portas do seu novo
salão, ornado com luxo e um bom gosto admirável. As moirées, os veludos e as casimiras,
todos os estofos finos e luxuosos, e destinados aos corpinhos sedutores das nossas lindezas,
terão uma moldura digna deles, entre magníficas armações de pau-cetim; e o pezinho mignon
que transpuser os umbrais desse templo da moda pousará sobre macios tapetes, que não lhe
deixarão nem sequer sentir que pisam sobre o chão.
Assim, pois, quando os pais e os maridos passarem de longe, e virem este belo salão
com toda a sua elegância, resplandecendo com o reflexo dos espelhos, com o brilho das luzes,
apressarão o passo, e, se tiverem lido o Dante, lembrar-se-ão imediatamente da célebre
inscrição:
Lasciate ogni esperanza, voi che entrate;
Ma guarda, e passa!
De todos esses progressos da Rua do Ouvidor o mais interessante, porém, pelo lado da
novidade, é a Galeria Geolas, que deve nos dar uma idéia das célebres passagens
envidraçadas de Paris. A Galeria Geolas vai da Rua do Ouvidor à Rua dos Ourives; tem uma
extensão suficiente; apesar de um pouco estreita, está bem arranjada.
Os repartimentos formam um pequeno quadrado envidraçado, e já estão quase todos
tomados. Na locação desses armazéns seria muito conveniente, não só aos seus interesses,
como aos do público, que o proprietário procurasse a maior variedade possível de indústrias, a
fim de que a passagem oferecesse aos compradores toda a comodidade.
Os moços de boa companhia que se reúnem ordinariamente num ponto qualquer da
Rua do Ouvidor deviam tomar um daqueles repartimentos e formar como que um pequeno
salão, que se tornaria o rendez-vous habitual do círculo dos flâneurs. Enquanto não
pudéssemos ter um Clube, a passagem iria satisfazendo esta necessidade tão geralmente
sentida.
Se ainda não estais satisfeito, meu amável leitor, com todas estas novidades, vou dar-
vos uma, que suponho vos causará tanto prazer como me causa a mim; e é que estou fatigado
de escrever, e por conseguinte termino aqui.
XI
Rio, 19 de novembro
Se a mitologia dos povos antigos tivesse dado formas de mulher, de fada ou ninfa, às
semanas, como o fez com as horas, não me veria às vezes em tão sérios embaraços para
escrever esta revista.
Em lugar de estar a cogitar idéias, a parafusar novidades, e a lembrar-me de fatos e
coisas passadas, pediria emprestado a algum dos tipos da grande galeria feminina as feições e
os traços para desenhar o meu original.
Assim, quando me viesse uma semana alegre e risonha, mas muito inconstante, com
uns dias cheios de nuvens, e outros límpidos e brilhantes, iluminados pelos raios esplêndidos
do sol, uma semana elegante de teatros e bailes, imaginaria alguma fada de formas graciosas,
de olhos grandes, com uma certa altivez misturada de uma dose sofrível de loureirismo.
Vestiria a minha fada de branco com algumas fitas cor-de-rosa, pedir-lhe-ia que me
contasse com toda a graça a travessura do seu espírito os segredos de suas horas e de seus
instantes
Ao contrário, se fosse uma semana bem calma e bem tranqüila, em que os dias
corressem puros e serenos, em que fizesse umas belas noites de luar bem suaves e bem
calmas, de céu azul e de estrelas cintilantes, lembrar-me-ia de alguma moreninha da minha
terra, de faces cor de jambo, ojos adormidillos, como dizem os espanhóis.
Então escreveria uma poesia, um poema, um romance ou um idílio singelo, e livrava-
me assim de meter-me em certas questões graves, e importantes que ocupam a atualidade.
Faria como o poeta; e limitar-me-ia às pequenas coisas que me tivessem interessado. Nugae,
quarum pars parva fuit.
É verdade que, quando me acertasse cair uma semana como esta passada, onde iria eu
procurar um tipo, um modelo que a caracterizasse perfeitamente? Lembro-me de uma mulher,
que descreveu Byron, a qual, com algumas modificações, talvez me pudesse bem servir para o
caso.
Seu único aspecto (da mulher) valia um discurso acadêmico; cada um de seus olhos era
um sermão; na sua fronte estava estampada uma dissertação gramatical. Enfim, era uma
aritmética ambulante. Dir-se-ia uma correspondência ou alguma velha polêmica que se
houvesse despegado do seu competente jornal, para andar pelo mundo a discutir e argumentar.
Com efeito, só este tipo imitado de d. Juan poderia dar uma ligeira idéia da semana
passada, a qual num formulário de botica podia bem traduzir-se pela seguinte receita: uma
dose de sol, duas de chuva e três de maçada. Admirável receita para curar a população desta
corte da febre de novidades que tem produzido a guerra do Oriente.
Os antigos, porém, que fizeram tanta coisa boa, esqueceram-se dessa invenção de
personificar a semana, e por conseguinte não há remédio, senão deixar as comparações e
voltar ao positivo da crônica, desfiando fato por fato, dia por dia.
Aposto que já estais a rir deste meu projeto, perguntando com os vossos botões que
fatos são estes que descobri na semana passada, que acontecimentos se deram nestes dias, que
valham a pena, não já escrever simplesmente, mas contar.
Ides ver. Em primeiro lugar, contar-vos-ei que a semana teve sete dias e sete noites, tal
e qual como as outras. Destes sete dias muitos foram de chuva, e alguns estiveram tão belos,
tão frescos, tão puros, que sentia-se a gente renascer com o sol que vivificava a natureza. As
noites foram quase todas de inverno e de teatro.
No Provisório estreou a nova cantora, completando-se assim o número das três deusas
que devem disputar o pomo de ouro, o qual também foi pomo da discórdia. O público
dilettante está por conseguinte arvorado em Paris; e os poetas já se prepararam para cantar a
nova Ilíada e as causas terríveis de tão funesta guerra. Et teterrimas belli causas
Em São Pedro de Alcântara o aparecimento de João Caetano produziu uma noite de
entusiasmo e um novo triunfo para o artista distinto, único representante da arte dramática no
Brasil.
Infelizmente as circunstâncias precárias do nosso teatro, ou outras causas que
ignoramos, não têm dado lugar a que João Caetano forme uma escola sua, e trate de elevar a
sua arte, que no nosso país ainda se acha completamente na infância.É a este fim que deve
presentemente dedicar-se o ator brasileiro. Sua alma já deve estar saciada destes triunfos e
dessas ovações pessoais, que são apenas a manifestação de um fato que todos reconhecem.
Como ator, já fez muito para sua glória individual; é preciso que agora como artista e como
brasileiro trabalhe para o futuro de sua arte e para o engrandecimento de seu país.
Se João Caetano compreender quanto. É nobre e digna de seu talento esta grande
missão, que outros, antes de mim, já lhe apontaram; se, corrigindo pelo estudo alguns
pequenos defeitos, fundar uma escola dramática que conserve os exemplos e as boas lições do
seu talento e a sua experiência, verá abrir-se para ele uma nova época.
O governo não se negará certamente a auxiliar uma obra tão útil para o nosso
desenvolvimento moral; e, em vez de vãs ostentações, de coroas e de versos que se procuram
engrandecer unicamente pelo assunto, terá o que lhe tem faltado até agora, o apoio e a
animação da imprensa desta corte.
Uma das coisas que têm obstado a fundação de um teatro nacional é o receio da
inutilidade a que será condenado este edifício, com o qual decerto se deve despender avultada
soma. O governo não só conhece a falta de artistas, como sente a dificuldade de cria-los, não
havendo elementos dispostos para esse fim.
Não temos uma companhia regular, nem esperanças de possuí-la brevemente. A única
cena onde se representa em nossa língua ocupa-se com vaudevilles e comédias traduzidas do
francês, nas quais nem o sentido nem a pronúncia é nacional
Deste modo ficamos reduzidos unicamente ao teatro italiano, para onde somos
obrigados, se não preferimos ficar em casa, a dirigirmo-nos todas as noites de representação,
quer cante a Casaloni, quer encante a Charton, quer descantem as coristas. Tudo é muito bom,
visto que não há melhor.
Já algumas vezes temos censurado a diretoria do teatro por certas coisas que nos parece
se podem melhorar sem grandes sacrifícios. Hoje cumpre-nos fazer-lhe uma justiça, e até um
elogio, que ela merece sem dúvida alguma, pela resolução que nos consta ter tomado de
reparar o edifício e ilumina-lo a gás.
A polícia também tem-se esmerado em fazer cessar as cenas tumultuárias e
desagradáveis que se iam tornando tão freqüentes naquele teatro, e que, se continuassem,
acabariam por afugentar dele os apaixonados da música de batuque.
Não é, porém, unicamente no teatro que a polícia tem dado provas de atividade.
Efetuou-se esta semana a prisão de um moedeiro falso, que se preparava a montar uma fábrica
dessa indústria lucrativa.
O crime de moeda falsa é um dos mais severamente punidos em todos os países,
porque ameaça a fortuna do Estado e a dos particulares. Entretanto não acho razão no
legislador em tr punido unicamente o falsificador de moeda, deixando impunes muitos outros
falsificadores bem perigosos para a nossa felicidade e bem-estar.
Todos os dias lemos nos jornais anúncios de dentistas, de cabeleireiros e de modistas,
que apregoam postiços de todas as qualidades, sem que a lei se inquiete com semelhantes
coisas.
Entretanto imagine-se a posição desgraçada de um homem que, tendo-se casado, leva
para casa uma mulher toda falsificada. E que de repente, em vez de um corpinho elegante e
mimoso, e de um rostinho encantador, apresenta-lhe o desagradável aspecto de um cabide de
vestidos, onde toda a casta de falsificadores pendurou um produto de sua indústria.
Quando chegar o momento da decomposição deste todo mecânico – quando a
cabeleira, o olho de vidro, os dentes de porcelana, o peito de algodão, as anquinhas se forem
arrumando sobre o toilette – quem poderá avaliar a tristíssima posição dessa infeliz vítima dos
progressos da indústria humana!
Nem ao menos as leis lhe concedem o direito de intentar uma ação de falsidade contra
aqueles que o lograram, abusando de sua confiança e boa-fé. É uma injustiça clamorosa que
cumpre reparar.
Um homem qualquer que nos dá a descontar uma letra de uns miseráveis cem mil réis,
falsificada por ele, é condenado a uma porção de anos de cadeia. Entretanto aqueles que
falsificam uma mulher, e que desgraçam uma existência, enriquecem e riem-se à nossa custa.
Deixemos esta importante questão aos espíritos pensadores, aos amigos da
humanidade. Não temos tempo de tratá-la com a profundeza que exige; senão resumiríamos o
quadro de todas as desgraças que produzem não só aquelas falsificações do corpo, mas
também muitas outras, como um olhar falso, um sorriso fingido, ou uma palavra mentida.
Demais, temos ainda de falar de uma outra medida do chefe de polícia a respeito dos
cães, e que interessa extraordinariamente a segurança pública. O que cumpre é zelar a sua
execução para que não se torne morta, e faça cessar o perigo que corremos todos os dias de
encontrarmos a cada momento na rua ou no passeio a morte do hidrófobo.
Afonso Karr levou dois anos a escrever para conseguir que a polícia de Paris adotasse
esta útil medida de segurança pública a que ordinariamente damos tão pouco cuidado, e
muitas vezes mesmo revoltamos por um mal entendido sentimento de humanidade.
Um dos maiores obstáculos que ele encontrou sempre foram certos prejuízos, certos
erros consagrados e que todo o mundo repete, sem refletir, nem compreender o sentido das
palavras que profere.
Assim, desde a antiguidade se diz que o cão é o amigo fiel do homem, o tipo e o
modelo da amizade.
Este consentimento unânime, diz o escritor francês, é uma singular revelação do caráter
do homem. O cão obedece sem reflexões, se submete a todos os caprichos e a todas as
vontades sem distinção; quando o castigam, em vez de se defender, roja-se aos pés de seu
senhor e caricia a mão que o castigou. E é isto o que o homem chama um amigo!
Já se vê que o sentimento não é tão nobre como o parece a princípio. Todas estas vãs
declamações dos poetas sobre esse animal, que dizem representar o símbolo da fidelidade, dão
uma bem mesquinha idéia do coração humano.
Não é pois, o prazer de possuir um autômato, que se move à nossa vontade, que pode
compensar um dos maiores riscos a que estamos sujeitos, e para o qual olhamos
indiferentemente.
XII
Rio, 26 de novembro.
O tempo corre, passam-se os dias, e o ano vai rapidamente chegando a seu termo; mais
algumas semanas e ele cairá na eternidade como um grão de areia na ampulheta das horas.
A comparação não tem nada de novo, é muito antiga; mas por isso mesmo acho-a
excelente para um ano velho e caduco, que está tão próximo a deixar-nos, que os historiadores
já se preparam para disseca-lo e fazer-lhe autópsia.
Assim, esse pouco tempo que nos resta é consagrado ao adeus e às despedidas. Tudo se
despede, e os dias vão correndo de despedida em despedida até que chegue o momento de
dizermos a este ano, como se diz no Barbeiro de Sevilha ao massante D. Basílio: Buona sera,
mio signor.
A primeira despedida foi a do Cassino ba segunda-feira. Pela última vez o baile
aristocrático abriu os seus salões aos convidados. Para o não – se é exato o que nos prometem
– em lugar desta casa antiga e desses repartimentos acanhados, veremos elevar-se nesse
mesmo lugar algum palácio de fadas, que nos dará uma vez por mês, e sem ser preciso irmos
ao Oriente, uma cópia fiel das Mil e uma noites.
Talvez isto faça reviver os belos tempos do Cassino, quando reunia nos seus salões a
fina flor da sociedade desta corte. É verdade que então não se tinha ainda introduzido a moda
elegante das moças não gostarem de baile, provavelmente porque isto é um prazer comum, e
ordinariamente têm quase todas as meninas aos dezoito anos.
Uma mocinha do tom – que se quer distinguir – deve aborrecer o baile, e gostar de
alguma coisa que não seja trivial, como, por exemplo, de rezar, de ler anúncios, e sobretudo
conversar com os diplomatas sobre questões de alta política internacional.
Por isso, naquele tempo o salão do Cassino foi uma espécie de palácio encantado, que a
fada do prazer e da alegria criava por uma noite com um toque de sua varinha mágica; não era
a todos que se revelava as palavras mágicas que serviam de chave à porta misteriosa desse
recinto: Abre-te, Sésamo!
Apesar disto, porém, o último baile não esteve como era de esperar, à vista dos outros
que houve este ano. Assim devia ser: era um baile de despedida, e os antigos freqüentadores
não podiam deixar de sentir o desejo de dizer um último adeus a estas salas, a estas paredes,
que foram testemunhas de tantos momentos deliciosos, cuja lembrança ainda o tempo apagou.
Outros, que ainda não têm tão remotas reminiscências, despediam-se da sociedade
brilhante que se achava reunida aquela noite, e que daqui a alguns dias se irá dispersando
como as folhas de uma árvore, que voam à discrição e aos dos ventos.
A força do verão já se vai fazendo sentir; e aqueles que não estão presos a vida da
cidade estão já tratando de fugir desse clima ardente, e de procurar algures um refrigério aos
calores da estação.
Petrópolis – a alva e graciosa Petrópolis, com suas brumas matinais, com suas casinhas
alemãs, com seus jardins, seus canais, suas ruas agrestes – lá nos envia de longe um amável
convite aos seus passeios poéticos, à vida folgazã que se passa nos seus hotéis, à missa dos
domingos na capelinha da freguesia, e a tantos outros passatempos campestres, que se gozam
durante esses dias em que aí vivemos como aves de arribação, prontas a bater as asas ao
primeiro sorriso da primavera.
Quanta cabecinha loura ou morena já não se está recordando do verão passado e
refazendo na mente os gozos desses dias alegres e descuidosos! Quanta imaginação não
começou já a fazer esta pitoresca viagem, e não vai singrando pelas águas límpidas e azuis da
nossa linda baía, a contemplar o formoso panorama que desenham as ribeiras do mar sobre a
areia da praia e os recortes das montanhas nas fímbrias escarlates do horizonte!
Além de Petrópolis, muito ale, lá estão as serras, as matas ainda virgens, as florestas
sombrias de nossa terra, as árvores seculares, os lagos, e as correntes d’água que atravessam
os lagos e as planícies.
Aí se eleva a espaços pelas abas das montanhas, ou pelas margens de algum rio, a
fazenda do agricultor, onde se vive a verdadeira vida do campo, onde as horas correm isentas
de cuidados e de tribulações, no doce remanso de uma existência simples e tranqüila.
Como Petrópolis, como a Tijuca, como todos os arrabaldes da cidade, a serra também
nos vai roubar uma a uma as mais belas flores da nossa cidade, as mais preciosas jóias dos
nossos salões, as mais lindas estrelas do nosso céu. Uma bela noite, quando levantardes os
olhos, tereis de vê-las deslizarem-se no horizonte, como esses astros de que fala Virgílio,
deixando apenas nas trevas um longo rasto de luz:
Stellas
Praecipites coelo labi, noctisque per umbram
Flammarum longos a tergo albescere tractus.
No outro dia, quando procurardes por elas, terão completamente desaparecido. Irão
caminho de mar ou de terra, buscar longe da cidade os ares puros que dão vida e saúde, que
fazem voltar às faces empalidecidas, as cores frescas e rosadas.
Quanto a vós, que ficais curtindo as mágoas da ausência, consolai-vos com essa idéia;
e, se durante a ausência encontrardes por acaso nalgum passeio pelos jardins uma linda
florzinha azul, que os jardineiros chamam miosótis, e a que os alemães deram um nome de
vergiss mein nicht, fazei, como Alfredo de Musset, alguma bela poesia à saudade, e mandai-
ma, que eu a publicarei nas Páginas Menores.
Se isto ainda não vos consolar de todo, lede as notícias da guerra do Oriente, que cada
vez se vão tornando mais interessantes. O último vapor trouxe-nos a notícia de que em honra
de Saint-Arnaud se tinha levantado em Constantinopla uma cruz – a primeira depois de
quatrocentos anos. Ora, se é exato que o diabo foge da cruz, como diz um rifão português, é
de crer que a esta hora toda caterva de turcos, principiando pelo sultão, tenham abandonado a
formosa Estambul.
Quanto à tomada de Sebastopol, não se realizou ainda; mas pelo vapor seguinte
teremos por aí infalivelmente esta portentosa notícia, que, a falar a verdade, já vai se
parecendo alguma coisa com os anúncios do nosso Teatro Provisório.
De manhã os jornais avisam aos leitores que à noite haverá espetáculo lírico; à tarde
aparece uma moléstia qualquer, e o espetáculo fica transferido para o dia seguinte. Novo
anúncio de manhã, nova transferência de tarde.
Ora, isto não tem senão uma explicação, e é que os diretores entenderam que, sendo o
teatro provisório, apesar do batismo, precisavam de vez em quando, principalmente neste
tempos de chuva, publicar um anúncio para fazer constar que o edifício ainda existe, e não
veio à terra.
Cumpre, porém, advertir que com isto não me refiro à transferência e ontem, a qual
teve um motivo justo. Com aquele tufão que desabou sobre a cidade, arrancando árvores e
fazendo estragos, qual seria o dilettante capaz de deixar o seu teto hospitaleiro para arrostar
um tempo tão desabrido?
É verdade que a esta mesma hora, quando as rajadas do vento caíam mais forte e com
mais violência, alguns atravessavam as ruas da cidade, e a um e um se iam reunir na sala das
sessões do Instituto Histórico. Pouco depois chegou Sua Majestade, e a sessão se abriu com
sete membros.
Se eu não tivesse lido há tempos que Metternich, ou não sei que outro diplomata, havia
dito que a pontualidade é a política dos reis, quando de hoje em diante me sucedesse ouvir
semelhante palavra, seria capaz de apostar que tinha sido lembrança de algum dos sete
membros do Instituto, que, para fazer honra ao tempo, se entretiveram com a leitura de um
trabalho sobre terremotos.
Achava-me muito disposto a terminar aqui, mas lembro-me que estou na obrigação de
afirmar aos meus leitores que este artigo é escrito por mim mesmo, e não por um pseudônimo
que me descobriram, e que se acha arvorado em redator de um periódico intitulado – O Brasil
Ilustrado.
Quando a princípio me contaram semelhante coisa, quando me disseram que eu ia
redigir um novo periódico literário, duvidei; porém o fato é exato, e, o que mais é lá se acha a
assinatura de um dos nossos literatos, o Sr. Porto alegre, que afirmou não ter assinado
semelhante coisa.
Ora o Brasil, sendo tão ilustrado como se intitula, não pode ignorar certa disposição do
Código Criminal que fala de assinaturas fingidas; por conseguinte, não há dúvida que os
homens que se acham assinados naquela lista a que me refiro são nossos homônimos, os quais
até hoje eram completamente desconhecidos.
Em tudo isto, pois, só temos a lamentar uma coisa, e é que o novo tão ignorados e
obscuros, deixando de parte os verdadeiros Otavianos, Porto Alegres e Torres Homens.
XIII
Rio, 3 de dezembro
Um dos mais belos traços que apresenta a história da humanidade é o culto respeitoso
que votam os grandes povos aos grandes dias de sua pátria. A influência misteriosa que
exerce o passado sobre o futuro tem o que quer que seja de grande e de sublime.
Há um sentimento nobre nessa força irresistível que de ano a ano, de século a século,
num momento determinado, obriga as gerações que se vão sucedendo a irem por sua vez
depositar no livro dos fatos nacionais o testemunho de uma justa veneração pelas suas antigas
tradições, renovando, com o exemplo, a fé e a crença nas instituições do país.
As datas memoráveis figuram na vida das nações como esses marcos que se colocam à
beira do caminho para designar o espaço percorrido, e ao pé dos quais o viandante vem
descansar, refazendo-se das fadigas e cobrando novas forças para continuar a jornada.
Assim, quando o historiador, elevando-se pelo pensamento acima das condições
materiais da existência humana, lança os olhos sobre o quadro da humanidade, pode ver cada
povo, cada nação, percorrendo seu caminho através dos séculos, como o indivíduo que
transpõe dia por dia o curto espaço da vida.
Como o indivíduo, a nação passa por todas as vicissitudes da experiência, vai da
infância à velhice, do mal ao bem, sofre todas as alternativas da fortuna. Como o homem tem
o germe de todos esses nobres sentimentos que vivem no coração, fortifica-os pela união,
engrandece-os pelo entusiasmo e os transmite pela tradição.
Como nós, o povo sente todos os afetos, curte todas as dores, experimenta todos os
estados da vida. Como nós, ama, odeia, chora, ou ri; é um pai ou um filho, um amigo ou um
inimigo; é um menino frágil que precisa ser guiado, um delinqüente a quem se inflinge o
castigo, e muitas vezes um soberano que dita a sua vontade e impõe a lei.
Por isso há vinte e nove anos, no dia de ontem, a nação brasileira vinha aos pés de um
berço saudar o nascimento de um menino com toda a efusão do homem que contempla o seu
primeiro filho. Durante quinze anos serviu-lhe de pai; e em todo esse tempo nem uma só vez
se desmentiu esse amor paternal que a nação votava ao seu Imperador ainda na infância.
Veio o ano de 1840. À infância segui-se a juventude; o berço foi substituído por um
trono. A nação brasileira veio então, não mais como um pai e sim como um depositário fiel,
restituir a coroa e o cetro que lhe foi confiado. A cena ia mudar-se: o amor,que um dia fora
paternal, começava a envolver-se do respeito que inspira o poder e a majestade.
Deixemos ainda correr o tempo; cheguemos ao dia de ontem; vinte e nove anos apenas
nos separam, porém a mudança é completa. Sabeis o que significam essas festividades que
por toda a extensão do país celebram o dia 2 de dezembro? Sabeis que sentimento exprimem
essas manifestações espontâneas da nação, por ocasião do aniversário do seu monarca?
É o povo brasileiro que, como um filho reconhecido, veio aos degraus do trono para
beijar a mão ao pai da nação, para agradecer-lhe os benefícios recebidos e pedir-lhe ainda a
direção, a paz, o trabalho, a instrução, a indústria, a colonização, e todos esses germes da
civilização, que o país encerra no seu seio, e que serão um dia fecundados pelo pensamento
criador do seu governo.
A esta grande manifestação do seu povo, o Imperador respondeu agraciando-o na
pessoa daqueles brasileiros cujos serviços entendeu mereciam ser remunerados. Algumas
dessas mercês não são unicamente uma graça, mas uma antiga dívida que S.M. pagou em
nome da nação a alguns velhos servidores do nosso país. Entre estes há especialmente alguns
nomes que, para fazer-se o seu elogio aos brasileiros, basta despi-los do seu título e repeti-los.
Havia cinco anos que não se realizava esse poético costume das monarquias, de fazer a
distribuição das graças nos dias aniversários de algum acontecimento feliz. Sempre uma
contrariedade qualquer vinha obstar aquele ato. Este ano, porém, as circunstâncias favoráveis
de uma atualidade calma e serena permitiram.que a munificência imperial pudesse ao mesmo
tempo pagar as dívidas da nação e auxiliar a realização do pensamento de união e concórdia,
que é o programa de governo do Sr. D Pedro II e o seu voto o mais ardente como Brasileiro e
como soberano.
Este ano já a tolerância tinha passado a esponja por sobre todos estes nomes de guabiru
e de praieiro, de luzia e de saquarema, de exaltado e conservador, aos quais outrora os ódios
políticos fizeram representar na luta encarniçada dos partidos o papel de guelfos e gibelinos.
S.M. por conseguinte podia lançar os olhos pela união brasileira, e ver unicamente cidadãos
que se distinguiam pelo seu mérito e pelos seus serviços, sem que uma necessidade dolorosa
do seu governo viesse, como nos anos anteriores, batiza-los de ministeriais, de descontentes,
ou de oposicionistas. O preceito constitucional começou enfim a ser para os brasileiros uma
verdade benéfica, precursora de novos melhoramentos.
Além desses fatos, que se prendem necessariamente ao dia 3 de dezembro, tiveram
ontem lugar alguns extraordinários, que foram reservados para este dia, para assim receberem
maior realce e se realizarem sob os auspícios felizes de uma data memorável para o Brasil.
Às dez horas do dia a Câmara Municipal desta corte inaugurava na sala de suas
sessões, em presença de um grande concurso, o novo retrato de S.M. O salão está pintado com
todo o apuro. O teto representa um quadro alegórico da indústria e do comércio, trazendo a
abundância ao Brasil; aos lados estão os bustos de D. João VI e de D. Pedro I, do conde de
Bobadela, de D. Luís de Vasconcelos, de Estácio de Sá e de José Bonifácio.
Todo o trabalho de pintura, executado por R, d’Agostini e Júlio Lechevrel, debaixo da
direção dos Srs. Porto Alegre e Costa Ferreira, é digno de atenção pelo bem acabado e pelo
risco do desenho; merece com efeito ser examinado pelas pessoas que sabem apreciar essas
obras de arte, ainda bem raras em nosso país.
Depois desta solenidade teve lugar na Academia das Belas Artes, por volta do meio-
dia, a inauguração da Pinacoteca Imperial pelo Sr. Ministro do Império. A medalha da
inscrição gravada na casa da moeda, com o busto de S.M. numa face e o nome do fundador na
outra, é um trabalho que mostra os progressos que vamos fazendo neste ramo de arte.
A fundação da Pinacoteca Imperial, destinada à exposição das obras dos artistas
nacionais, vai dar um salutar impulso ao desenvolvimento da pintura, da escultura e da
estatuária no nosso país. É com as suas grandes exposições anuais, com os seus prêmios de
honra, que a França, promovendo uma nobre emulação entre os artistas e criando o bom gosto
na população, tem conseguido elevar a arte a um grau de perfeição e desenvolvimento qu
atualmente nada tem que desejar à Itália, a terra das obras primas, a pátria dos grandes
pintores, dos grandes estatuários, dos grandes arquitetos.
O dia que começara tão artisticamente devia acabar da mesma maneira, e de fato
acabou com a representação do Roberto do Diabo no Teatro Lírico. Apesar de estarmos
conversando hoje, creio que compreendeis bem a razão por que não vos conto alguma coisa
dessa representação que se deu ontem: são coisas da imprensa.
Contudo, como estamos no teatro, suponde que houve na cena uma mutação rápida, e
que vos achais de repente num salão iluminado, no meio de música, de perfume, de flores, de
espelhos, de moças, e de velhas também. Dança-se... Adivinhai o quê?
Não é nem quadrilha diplomática, nem a valsa estonteada, nem a schottish com os
requebros, ou a polca com os seus pulinhos. É uma coisa que tem um pouco de tudo isto, é
que me faz lembrar o meu bom tempo de colégio, porque há uma espécie de marcha que se
executa ao som de palmas, tal e qual como nas classes. Chama-se esta dança Ril da Virgínia,
terra donde eu sabia que vinha bom fumo, donde não me consta que nunca se despachassem
danças na alfândega.
O caso é que, pela alfândega ou por contrabando, dança-se hoje no Rio de Janeiro o Ril
da Virgínia, que os velhos bailarinos aborrecem de morte, pela razão muito simples de não
admitir canelas de cinqüenta anos passados. Os moços, porém, adoram-no; e isto também por
uma razão muito simples: porque cada um, embora tire seu par, nem por isso deixa de danças
com todas as moças, e de ser ao mesmo tempo par de todos os pares dos outros.
De maneira que agora já não há risco de se ir tarde para o baile, e não encontrar o par
que se deseja; nem de andar a catar pelo meio, e não encontrar o par que se deseja; nem de
andar a catar pelo meio da casa moças bonitas e espirituosas. Outra vantagem ainda: como a
dança é uma roda-viva, estamos dispensados de estar ai a inventar motivos de conversa, e de
levarmos uma boa meia hora a esgrimir-nos contra um sim ou um não, que se encastelam
nalguma boquinha arrebitada, donde não há força tira-los.
Ao menos se o sim fosse constante, eu começava logo por pedir alguma coisa que me
conviesse. Mas qual! O sim e o não se revezam como duas sentinelas sempre alerta e prontas
a impor o respeito à menor infração da disciplina. Por conseguinte, o melhor é tomar-se o
expediente de que uso – fazer-lhes a continência, e passar de largo.
Mas onde já ando eu? Comecei num salão de baile, e parece-me que estou nalgum
corpo de guarda. Eis aí o risco de escrever ao correr da pena. Se eu tivesse um compasso e
um tira-linhas, não me havia de suceder semelhante coisa. Riscaria primeiramente o meu
papel, escreveria o meu artigo letra por letra, pensando maduramente sobre cada palavra,
refletindo profundamente na colocação dos pontos e vírgulas; depois convocaria um conselho
de sábios, e, discutido o artigo em conclusões magnas, entrega-lo-ia ao compositor, quando se
findassem os nove anos de correção que impõe o preceito da Arte Poética. Então, cheio de
entusiasmo ao contemplar o meu artigo metido entre quatro gravuras de pau, exclamaria como
Sanzio: Anch’io son pittore! Agora já posso aspirar à honra de escrever um artigo ilustrado!
O que é verdade é que já não sei onde deixei a nossa agradável soirée, na qual se
dançava com tanto prazer e animação o Ril da Virgínia, dança que daqui a alguns dias deve
estar com muita razão no galarim da moda. E sobre isto desejo comunicar aos diretores das
sociedades uma observação que fiz a propósito deste dançado. Tenho notado que, depois de
um ril, cada um daqueles turcos transforma-se num cossaco temível; e então não há empadas
nem chocolate que os farte. A respeito de gelo não falemos; seria necessário algum Himalaia
ou Chimborazo feito sorvete. Por isso a moda tem muito razoavelmente destinado a dança
para o fim da noite.]Com tudo isto, ainda não vos disse em que lugar da cidade nos achamos;
mas contentai-vos em saber que estamos num dos nossos lindos arrabaldes, numa excelente
casa de campo. E como já é perto de duas horas e as estrelas começam a fugir com as
claridades precursoras do dia, segui o meu exemplo, dizei adeus a esses salões, a essas horas
de prazer, que tão cedo não voltarão, e ide fazer poeticamente ao vosso travesseiro as íntimas
confidências de algum segredo do coração.
4 de dezembro
O Jornal demorou-se; e portanto assentei de pagar-vos já a dívida em que estou a
respeito da representação do Roberto do Diabo, que teve lugar na noite de sábado.
Eram oito horas quando SS.MM. apareceram na tribuna e receberam as saudações
costumadas ao som do hino nacional. Uma chuva de rosas e de versos caiu sobre a platéia;
houve algumas pessoas que receberam na cabeça seguramente uma resma de papel.
Os camarotes apresentavam neste instante uma vista encantadora. Cada ordem formava
uma espécie de graciosa Coréia de corpinhos sedutores e de lindos rostinhos, entre os quais
aparecia a espaços a cabeça calva e a farda bordada de algum novo visconde, ou barão, ou
comendador.
Muitas vezes é este o mais belo momento de uma noite de teatro em dia de gala. Com
um simples lanço d’olhos corre-se todo esse painel magnífico, desenhado ao mesmo tempo
pela natureza, pela arte e pela moda. Pode ver-se ali um tipo suave, uma bela face sempre
pensativa, um pouco melancólica, como dessas almas puras, filhas do céu, que sentem na terra
as saudades de sua menção divina. Além o rostinho moreno de uma huri de olhar cintilante e
lábio risonho. Deste lado uma imagem de mulher, à qual a natureza deu a mais bela expressão
de beleza altiva, e que recebeu de Deus, em vez de coração, a mania dos caprichos.
Depois de alguns recitativos, de dois sonetos, sobre os quais eu me calo, para seguir o
exemplo do poeta, cantou-se o novo hino do Imperador; e os espectadores, atentos e cheios de
curiosidades, esperavam o momento de ouvir pela primeira vez naquele teatro as harmonias
de Meyerbeer.
Onde quer que te aches agora, sublime maestro, estou certo, que sábado à noite, até por
volta de duas horas, em que o diabo na figura de Bouché sumiu-se pelo tablado, não pudeste
conciliar o sono e levaste a rolar na cama, como se te perseguisse um exército de pulgas e
mosquitos. Esses sobressaltos que naturalmente sentiste, esses ardores de orelhas, esses
pruridos de pele, tudo isto não era nada menos do que as pancadas da banqueta do Barbiere, a
rouquidão do Gentil, a desafinação de não sei quem, e finalmente a tesoura do ensaiador, que
dizem cortou à larga pela tua sublime partitura. Consola-te, pois, meu amigo, são os percalços
do ofício.
Em tudo isto, porém, só te deves queixar daquele que assegurou à diretoria que era
possível meter-se em cena, com os modestos recursos do nosso teatro, uma peça que tu sabes
quanto te custou a montar no Grande Ópera de Paris. Sem cantores, sem orquestra, sem
maquinismo próprio, era fácil prever o que resultaria de semelhante projeto.
E não pára aí: para que a criatura fosse mais completa, ensaiou-se na véspera até as
duas horas da noite, e admitiu-se que o mestre da dança lhe desse a última demão, inventando
um dançado no meio de um torneio, e prolongando infinitamente a cena do cemitério, como
se ainda não fossem suficientes seis horas de maçada.
Nem o hábil pincel do Bragaldi, nem a expressão original da música, às vezes terrível,
às vezes singela e encantadora, puderam destruir a desagradável impressão que produziu nos
dilettanti essa vigília lírica, que durou até à madrugada.
O Gentil, rouco como estava, não pôde fazer valer os seus recursos; o Bouché não
estava em bom dia. A Charton, porém, foi apesar de tudo, para a cena e para os dilettanti, o
bom anjo que protegia Roberto do Diabo; com a diferença, porém, que na cena vence o diabo,
e no ânimo dos dilettanti, não pôde vencer o caiporismo fatal que presidiu à execução da
partitura. O Duque da Normandia foi para o céu, a representação da ópera de Meyerbeer caiu
no inferno.
Talvez muita gente nesta noite estivesse como Roberto na cena, às lutas com dois
sentimentos opostos, tendo à direita o seu bom anjo, à esquerda o seu mau gênio. Queira Deus
que a imagem encantadora de alguma Alice lhes tenha aparecido com seu ingênuo sorriso, e
os salvasse de uma vez para sempre da tentação, guiando-os como sua boa estrela através dos
escolhos da vida, e acenando-lhes de longe com suas asas cor-de-rosa, como o Anjo da
Guarda que figura nas poéticas legendas da nossa religião.
XIV
Rio 10 de dezembro
Farewell! Farewell!... Adeus à corte, aos bailes, aos teatros! Adeus às belas noites do
Rio de Janeiro; aos seus magníficos salões, aos seus brilhantes saraus!Até à volta! Chegou a
época das viagens; é preciso partir.
A cidade vai ficando tão monótona e tão insípida, que já não há prazer em andar por aí
a arruar, vendo sempre as mesmas ruas e as mesmas casas, algumas tristes e abandonadas,
entregues ao gênio protetor dos lares domésticos.
A caminho, pois, meu amável leitor. Tomai o vosso bordão de tourista, o vosso saco de
viagem, o vosso álbum de recordações; esquecei por alguns dias os negócios, esquecei as
obrigações, esquecei tudo e segui-me. Viajaremos de companhia, iremos juntos procurar além
novas impressões, outros cuidados.
Onde iremos? A Cantagalo, à Santa Cruz, à Nova Friburgo, ao Morro Queimado, a
esses lugares onde o clima é doce e saudável, onde as águas são puras e cristalinas? Nada;
vamos a Petrópolis, a terra das flores, a terra dos amores-perfeitos; vamos percorrer a
Alemanha como sobre uma carta geográfica; vamos ver os nevoeiros da serra, os
despenhadeiros das montanhas, e finalmente aquelas graciosas casinhas tão alvas e com suas
janelinhas verdes, que se destacam aqui e ali pela beira do caminho, ou pela margem dos
canais.
A barquinha de vapor corta ao largo resvalando docemente pela flor d’água, mas sem
aquela excessiva velocidade que dá aos objetos um aspecto fantástico. A cidade do Rio de
Janeiro vai fugindo à vista, e com o vago da distância começa a retratar-se no horizonte como
um painel magnífico iluminado pela esplêndida claridade dos raios do sol.
Aqui e ali aponta sobre todo aquele confuso e variado panorama da cidade a torre de
alguma igreja ou a cruz singela de algum campanário, como para advertir ao viajante que do
meio das saudades da pátria, da família, ou de algum ente que se idolatra, o pensamento deve
erguer-se a Deus no momento da partida.
Ali, onde as vagas se desfazem em alvos flocos de espumas, estão as Feiticeiras,
célebres na crônica do mundo elegante, pelo quase naufrágio do Guarani. Quantas feiticeiras
não conheço eu mesmo em terra, que já produziram e são capazes de produzir ainda mais
terríveis naufrágios! Há, porém, entre estas e aquelas, duas pequenas diferenças. A primeira é
que em umas morre-se pela água, nas outras pelo fogo. A segunda diferença é muito mais
curiosa. Nas feiticeiras do mar o Guarani salvou-se por ser um barco novo; nas feiticeiras de
terra são justamente os barcos novos os que correm maior perigo.
Perdoai-me esta observação humorística, meu amável leitor e companheiro de viagem;
prometo-vos que será a última. Abandonemos de uma vez, com os olhos e com o pensamento,
esta cidade que já não tem encantos para nós. Quereis o belo sob outras formas, quereis a
natureza da nossa terra em outros quadros? Lançai os olhos por este vasto estendal das ondas
alisadas ao sopro acariciador da brisa; vede aqueles grupos de pequenas ilhas verdes e
graciosas, que com a carreira da barca parecem que vão fugindo umas atrás das outras; vede
as alvas praias de areia onde a vaga se espreguiça e murmura, ao longe os claros e escuros das
encostas, e o vulto das montanhas que se debuxam no azul do céu.
Mas eis a ponte do desembarque que se alonga pela proa da barca; chegamos a Mauá.
Saltemos, e, como o lugar não tem nada que ver, como as construções da Companhia ainda
estão em princípio e não oferecem nada de curioso, tratemos já de tomar os nossos lugares no
vagão, e preparemo-nos para a nova viagem, tendo o nosso bilhete em mão segundo o
regulamento.
Deu o sinal. Lá vamos levados pelo monstro de fogo que se lança, rugindo como uma
fera, vomitando fumo, devorando o espaço. Alexandre Dumas já o disse; o prazer da
velocidade tem um gozo, uma voluptuosidade inexprimível. A primeira vez, porém, a
novidade, o vago do desconhecido, destroem em parte aquele prazer, e produzem uma espécie
de embriaguez de espírito, que de alguma maneira paralisa o pensamento. Não há idéia fixa,
não há preocupação, por mais forte que seja, que resista a esse choque súbito de tantas
emoções, a esse tumulto confuso das impressões que se sucedem rapidamente, que se
aglomeram, se repelem e se destroem.
Depois de dezenove minutos desse vôo fantástico, desse sonho acordado, despertais
repentinamente aos gritos do cocheiro e aos trancos de um dos incômodos carros da
Companhia, que vos faz imediatamente lembrar dos passeios ao Catete. Resignai-vos como
eu; e, se tendes alguma idéia favorita, alguma imagem suave, que vos ande a sorrir na mente,
abri-lhe a vossa alma, e esquecei as misérias deste mundo. Quando mal pensardes, estareis no
alto da serra.
Salve, louçã e faceira, Petrópolis! Salve, lindos chalés, casinhas campestres,
montanhas, cascatas, canais! Como tudo isto é gracioso e simples; como a existência é doce e
tranqüila nestes lugares aprazíveis e nesta convivência agradável da gente da terra! Que
risonhas que são essas manhãs de cerração, que ao nascer do sol começam a desdobrar o seu
véu branco, com toda a garridice e todo o disfarce de uma andaluza, quando entreabre a sua
mantilha!
E contudo nunca Petrópolis esteve como agora entregue ao abandono e ao desleixo. O
estado das ruas é péssimo; não se cuida da limpeza dos canais, e de outros melhoramentos
urgentes. Ao passo, porém, que isto sucede, consome-se dinheiro em edificar uma capelinha
no antigo hospital, que há muito se trata de remover. Compra-se um terreno para servir de
matadouro público, e consente-se que um particular continue a cortar num açougue,
infectando assim a principal rua da colônia – a Rua do Imperador.
Pelo menos, é isto o que dizem todos os habitantes de Petrópolis, cujo clamor é geral.
Foi preciso que chegasse o tempo da viagem costumada de SS. MM. Para que se tratasse de
melhorar os caminhos, e reparar algumas ruas que se acham em miserável estado e que
oferecem pior trânsito do que a estrada da serra.
Enquanto o diretor da colônia não for obrigado a residir em Petrópolis, embora tenha
boas intenções e grande atividade, não poderá prestar a devida atenção às necessidades do
lugar, nem entregar-se completamente ao estudo dos objetos de sua competência. O governo
devia tomar isto em consideração e regular melhor as obrigações da diretoria, ou então acabar
com ela e substituí-la por outro qualquer meio de administração.
Entretanto, apesar do mau estado das ruas, meu leitor, se já não estais fatigado e não
me abandonastes na viagem, vamos sair a passeio, e dar uma vista de olhos àquilo que nos
parecer mais interessante e mais digno de atenção. Quereis ir ao Palacete, ver o jardim que se
está concluindo? Quereis subir às colônias, e dar um giro a cavalo até a cascata de Itamarati?
Ou preferis arruar sem destino, onde vos levar a fantasia?
Como quiserdes; mas, se estás disposto a seguir o meu conselho, não deixai de fazer
uma visita aos dois colégios Kopke e Calógeras. O primeiro tem a grande vantagem de ser
uma casa construída de propósito para o fim a que foi destinada, e reúne por conseguinte
todas as condições econômicas e higiênicas. Assim, o que se nota logo neste estabelecimento
é o asseio, a limpeza, a claridade dos aposentos, a facilidade com que o ar se renova nos
dormitórios, e finalmente as cores sadias, o vigor, a boa disposição que mostram os colegiais.
A par disto, a regularidade dos trabalhos, a acertada divisão das classes e a vigilância ativa do
diretor, tornam este colégio muito útil para a educação não só dos meninos filhos da corte,
como daqueles que vêm das províncias, e que por conseguinte ainda mais necessitam do clima
saudável de Petrópolis.
No estudo das primeiras letras, o Sr.Kopke adotou o método do ensino repentino com
algumas modificações, e tem tirado deles grandes vantagens. Nos outros ramos, os seus
alunos apresentam igualmente muitos progressos; e quando observamos que, apesar do
adiantamento geral dos alunos, eram justamente que, apesar do adiantamento geral dos
alunos, eram justamente os meninos de menor idade os que respondiam com mais acerto e
maior segurança, confirmamo-nos na idéia de que isto era devido ao sistema de estudo
seguido pelo diretor.
O Colégio Calógeras é um estabelecimento montado em grande escala, mas cujo
edifício não foi construído com a idéia de adapta-lo à instrução primária e secundária. Possui
alguns professores muito hábeis, começando pelo seu diretor e proprietário. Sobre os seus
trabalhos nada posso dizer, porque apenas corri o edifício, e em horas destinadas ao repouso
dos alunos.
Já temos viajado muito; portanto montemos a cavalo, e desçamos a serra com as
primeiras claridades do dia, quando o sol mal desponta entre os cabeços da montanha. Correi
os olhos por essas quebradas da serrania, por essa névoa da manhã docemente esclarecida pela
frouxa luz da aurora, e não tenhais receio que, como Horácio, os cuidados montem na garupa
para seguir-vos: Post equitem sedit atra cura.
Quatro horas de caminho – e eis-nos de novo no Rio de Janeiro, restituídos aos nossos
penates e às obrigações esquecidas durante três dias. Recomecemos a vida interrompida,
voltamos a falar de teatros, de jornais, a criticar, palestrar, estudar a questão das carnes
verdes, e a preparar-nos para a fome que nos ameaça se não tomarmos prontas providências e
se não cuidarmos seriamente deste objeto, procurando quanto antes os meios de evitar a
escassez dos gêneros alimentícios.
Se bem me lembro, o Sr. Marquês de Abrantes iniciou a sessão passada no senado um
projeto a respeito de pescarias, que era em minha opinião um dos grandes recursos a lançar
mão para o futuro. Cumpre que o governo e as câmeras tomem a peito aquele projeto, que
vem satisfazer uma grande necessidade e produzir um benefício que de há muito se devia ter
realizado.
Com estas medidas e outras tendências a favorecer a criação de gados, isentando-a dos
direitos de passagem e de barreiras, é de esperar que o governo consiga prevenir essas faltas
de gêneros alimentícios, que não se deviam dar num país novo, de grandes recursos, e
extraordinariamente produtivo, como é o nosso.
Estes fatos, porém, servem de despertar ainda mais a nossa atenção para a colonização,
para a navegação de grandes rios, principalmente do Amazonas, cujas várzeas imensas estão
aí incultas, e encerram nas suas matas virgens um manancial de riquezas, que convém quanto
antes ser explorado.
Ultimamente, um moço destemido, sem recursos, sem meios, que penetrou por estes
ínvios sertões, e desceu o grande rio desde o Chile até o Pará, escreveu um itinerário de sua
viagem, que provavelmente há de conter observações novas e de muito interesse. Este moço é
o Sr. Dutra. 2.º tenente da nossa armada, e que os leitores já devem conhecer pelo curioso
artigo que publicou sexta-feira no Jornal do Comércio a respeito das origens da língua tupi.
É de crer que o Sr. Dutra publique oportunamente o relatório de sua viagem, e então o
nosso governo não deixará sem remuneração os serviços prestados por ele, durante essa longa
travessia cheia de tantos perigos e de tantos incômodos, que só um homem de gênio
empreendedor se animaria a tenta-la com os mesquinhos recursos pecuniários que tinha à sua
disposição. São serviços deste quilate, quase espontâneos, que é mister gratificar
generosamente, para excitar em nossa mocidade esse espírito de louvável ambição, que é o
móvel das grandes empresas.
Porém, quando ainda convém estimular os nossos oficiais a empreender coisas desta
ordem, de tanta utilidade para o pais, visto que não temos, como têm a França e a Inglaterra
no Oriente, um campo vasto onde se está ilustrando o seu exército e a sua marinha, batendo-se
com toda a galhardia contra o colosso inabalável do Império Russo.
Apesar, porém, de todos os seus esforços, Sebastopol, a sentinela avançada da Rússia,
continua a resistir com firmeza. Os franceses e ingleses, que a princípio olhavam com desdém
para essas massas de granito, cuja bruta resistência contavam vencer pela perícia de suas
armas, viram de repente surgir de dentro das muralhas soldados em vez de homens
indisciplinados, e conheceram no momento preciso que a defesa era digna do ataque.
Com efeito, quando marinheiros franceses, ao ler a ordem do dia do Almirante
Hamelin – A França vos contempla – se arrojaram às muralhas e recusaram deixando mais de
seiscentos mortos e feridos, é que a coisa era impossível, e que a Rússia, embora houvesse
perdido a alma, defendia o seu corpo a todo transe.
Todas estas notícias, e muitos outros detalhes importantes a respeito das operações dos
dois exércitos inimigos, vieram-nos pelo Severn, entrando quinta-feira. O Sr. Conselheiro
Paulo Barbosa, que era esperado neste paquete, chegou dois dias depois num navio
procedente do Havre. Tendo ido à Europa incumbido de uma missão importante pelo nosso
governo, demorou-se para restabelecer a sua saúde gravemente alterada.
Sempre que um cidadão como o Sr. Paulo Barbosa volta à sua pátria, não são
unicamente os seus amigos que têm motivos de felicitar-se, mas sim todo o país, todos
aqueles que conhecem a honradez do seu caráter e a distinção de seu trato e de suas maneiras.
Como deveis estar fatigado da viagem que fizemos, e por conseguinte com muito
pouca disposição para conversar, faço-vos os meus cumprimentos, meu caro leitor, até o
próximo domingo, em que voltarei a fazer-vos a minha visita habitual. Good bye.
XV
Rio, 17 de dezembro
.
Por enquanto, em falta de melhor, falemos do Teatro Lírico, que está hoje na ordem do
dia, justamente pela desordem em que tem andado todas estas noites, depois que o diabo lhe
entrou no corpo.
Todos os jornais têm dito a sua opinião a respeito; todas as opiniões são muito
acertadas; mas parece-me que ainda ninguém chegou à conseqüência necessária deste estado
anormal em que se acha o nosso teatro italiano.
Nas circunstâncias atuais, só há um remédio, e é interromper os espetáculos, pelo
menos durante um mês, para dar tempo a que a nossa companhia de cantores inválidos se
restabeleça e possa novamente entrar em trabalhos.
Consta-nos que a maior parte dos embaraços e dificuldades que a diretoria tem
ultimamente encontrado nasce dos seus próprios empregados. Ora, com o fechamento do
teatro durante um mês, poderão os diretores restabelecer a ordem necessária e destruir essa
soberania do capricho, que até agora era privilégio das primas-donas, mas que já se vai
estendendo às comprimárias, e breve passará às coristas e às comparsas.
Temos um regulamento de teatro, que, se não é perfeito, contém ao menos um bom
número de disposições acertadas, suficientes para impor o respeito a alguns cantores, que por
terem meia dúzia de panegiristas, entendem poder abusar da indulgência do público.
Faça a diretoria cumprir rigorosamente este regulamento, requisite nos casos
necessários a ação da polícia, que se tem mostrado zelosa, e pode ficar certa que ninguém
deixará de aplaudir essa boa resolução, cujos efeitos salutares em pouco tempo se começarão
a fazer sentir.
Que importa que um cantor, punido por uma falta de suas obrigações, seja recebido
com palmas a primeira vez que apareceu na cena, depois do seu ato de insubordinação? Há
sempre nos homens um bom instinto que ilude, e os faz tomar o partido daqueles que julguem
oprimidos, que consideram como vítimas. Isto, porém, não é uma razão para que se deixe de
manter o princípio da autoridade, sem o qual não há ordem nem tranqüilidade possível.
Se todas as infrações do regulamento tivessem sido punidas como essa de que falamos,
ninguém se lembraria de enxergar uma vítima no ator que caíra em falta, nem de protestar
contra o ato dos diretores por uma semelhante manifestação de simpatia.
Tomando a diretoria a posição que lhe convém, e fechando o teatro pelo tempo
necessário para preparar as óperas que tem de levar à cena, poderá em pouco tempo continuar
os espetáculos sem interrupção, e com aquela regularidade que até hoje tem sido impossível
conseguir.
Todos os anos por este tempo a imprensa lembra a idéia de fechar-se o Teatro Lírico
por um ou dois meses, e, apesar disto, ainda não nos compenetrarmos bem desta necessidade;
não queremos reconhecer que, se na Europa a ópera italiana abre-se por uma estação, no
nosso país, com o nosso clima, é quase impossível continuar os espetáculos sem dar aos
artistas algum tempo de repouso e descanso.
Estou certo que este ano sucederá a mesma coisa; que a diretoria não julgará necessária
uma medida sem a qual se passou muito bem os anos anteriores. Mas também este ano
veremos acontecer o mesmo que o verão passado. O teatro continuará aberto por formalidade
e por luxo unicamente, os cantores estarão constantemente doentes; passarão doze dias sem
espetáculo; o calor e o receio das transferências afugentará os espectadores; e por fim, depois
de dois ou três meses de vegetação, a companhia ficará extenuada e incompleta, e, como o
ano passado, seremos obrigados a fechar o teatro justamente quando se acabar o verão, e
quando os espetáculos começarem a ser agradáveis.
Talvez percamos o nosso tempo a falar destas coisas. O teatro lírico, que já tomou as
proporções gigantescas de uma questão de gabinete, hoje apenas serve de tema sediço às
palestras e correspondências de jornais. Entretanto isto não pode continuar assim; já não
podemos passar sem ópera italiana, e por conseguinte mais cedo ou mais tarde se descobrirão
os meios de possuirmos constantemente no nosso teatro uma companhia regular e composta
de artistas de merecimento.
Para isso o governo pode achar um grande auxílio no nosso Conservatório de Música,
dirigido pelo hábil professor o Sr, Francisco Manuel da Silva. O gosto e a aptidão que têm
geralmente as brasileiras para o canto pode concorrer para o futuro do nosso teatro,
fornecendo as empresas de coristas e comprimárias, e facilitando-lhe assim os meios de
contratar na Europa as primeiras partes, pelo preço que pagam os melhores teatros europeus.
Na visita que o Sr. Ministro do Império fez ultimamente a este estabelecimento,
assistiu aos trabalhos da aula destinada ao sexo feminino. Estiveram presentes 34 jovens
alunas, que executaram, entre outras três peças de música sacra, compostas pelo diretor, duas
sobre poesias do Padre Caldas, e uma sobre a letra latina – Ó salutaris hóstia.
O Sr. Ministro do Império conta visitar igualmente a aula dos meninos, e, depois que
tiver assistido a todos os trabalhos do Conservatório, é de crer trate de completá-lo, anexando
às aulas rudimentais, únicas que existem, aulas de aplicação, que poderão daqui a algum
tempo dar-nos ótimos instrumentistas para nossas orquestras.
A escassez dos recursos é a primeira causa do pouco desenvolvimento que tem tido o
Conservatório. Os auxílios concedidos por meio de loterias estão hoje reconhecidos como
pouco eficazes, principalmente correndo elas com longo espaço. Fora preferível que o corpo
legislativo votasse uma dotação anual, com a qual o governo poderia contar para ir
melhorando gradualmente esta instituição.
Hoje ninguém se lembra do Conservatório de Música. Entretanto quem sabe daqui a
alguns anos quantas horas agradáveis não nos dará ele por ocasião dos seus concursos e dos
seus exames anuais! Quem sabe se ainda não terei de contar aos meus leitores a história de
alguma Rosina Stoltz brasileira, educada neste Conservatório, e para quem algum Donizetti
também brasileiro escreverá uma nova Favorita.
Talvez julguem que isto são votos de imaginação: é possível. Como não dar largas à
imaginação, quando a realidade vai tomando proporções quase fantásticas, quando a
civilização faz prodígios, quando no nosso próprio país a inteligência, o talento, as artes, o
comércio, as grandes idéias,tudo pulula, tudo cresce e se desenvolve?
Na ordem dos melhoramentos materiais, sobretudo, cada dia fazemos um passo, e em
cada passo realizamos uma coisa útil para o engrandecimento do país.
Não há muito tempo que S.M. teve a bela idéia de fundar em terras de uma fazenda sua
uma colônia, que recebeu o nome de Petrópolis. O ano passado, à imitação da primeira, se
começou a criar uma nova cidade, à qual se deu o nome de Teresina. Hoje sabemos que uma
terceira colônia se vai formar na Serra dos Órgãos, na fazenda do Marsch; já começou a
divisão dos prazos, pelo mesmo sistema de Petrópolis.
A situação é a mais aprazível e a mais linda que se pode imaginar: é plana, cortada por
um belo rio, e acha-se no alto da serra, num ponto de muita passagem, e por onde talvez tenha
de seguir um dos ramais da estrada de ferro do Vale do Paraíba.
A viagem desta corte é a mais cômoda possível. Vai-se até Sampaio em barca de
vapor; o resto é um agradável passeio de duas léguas e meia, que se pode fazer de carro, por
uma excelente estrada. Reúne, portanto, todas as condições, a comodidade, a rapidez e a
segurança.
Isto no estado atual; porque, logo que se começar a povoar o lugar, logo que os
habitantes desta corte tiverem gozado aquele clima frio e seco, aquele céu sempre azul,
aquelas águas frescas e puras, logo que se estabelecer a concorrência, não faltarão companhias
regulares de ônibus e de carros, que ainda tornarão a ida mais breve e mais cômoda. Então
não será uma viagem, mas um passeio; poder-se-á almoçar na corte e ir lá jantar-se, mas,
jantar-se à hora curial, e não às cinco, como sucede com Petrópolis, por causa da maré.
De maneira que daqui a uns dez ou vinte anos, se as coisas continuarem, em vez de se
passar o domingo em Andaraí, Botafogo, ou no Jardim Botânico, iremos a Petrópolis, a
Teresina, ou a cidade dos Órgãos; depois do almoço, se estivermos aborrecidos, tomaremos a
estrada de ferro e iremos por distração ver correr o Paraíba; de noite voltaremos para o teatro,
ou para o baile, e nos recolheremos tendo andado de léguas o que hoje andamos de braças.
Talvez ainda me tachem isto de sonho e de utopia. Será sonho, não o nego; mas que
melhor se pode fazer neste tempo de repouso e descanso, do que sonhar? O trabalho vai
cessar, as festas aí vêm, cheias de prazeres e de folhas para aqueles que estão alegres e
dispostos a goza-las.
As férias começam. Os colégios se fecham desde que concluem os seus exames, os
quais este ano já têm mostrado mais zelo da parte dos diretores e mais aplicação nos
discípulos. O que se nota apenas é que em cada colégio o menino ressente-se um pouco da
influência de uma ou outra especialidade, conforme a educação dos diretores.
Com as férias, com os dias de festa, nem a exposição da Rua do Ouvidor, verdadeira
exposição, porque deixa a bolsa dos passeantes exposta a um perigo terrível. Este ano
apresenta-se à concorrência uma nova casa brasileira do Sr. C. Lase, que entrou pelos
domínios estrangeiros, mas com um luxo e um brilhantismo que nada tem que invejar às casas
francesas.
Se não preferis, pois, o sossego e a tranqüilidade do campo, tereis durante esses dias
algumas horas bem agradáveis, vendo passar diante daqueles salões,brilhantemente
iluminados, tudo quanto há de elegante e distinto na nossa sociedade.
Tereis ainda o prazer de poder escolher, entre tantas galanterias, uma bem delicada,
bem mimosa, como as mãozinhas a que a destinardes; e em paga recebereis algum olhar,
alguma palavra de agradecimento, que vos fará andar por ai a roer as unha e a sorrir às pedras
das calçadas até o momento em que o cruel e positivo negociante vos traduzir aquele
encantador olhar em linguagem de cifra, e lhe der um valor em moeda corrente.
Tudo isto, e os mais divertimentos que gozardes durante a festa, me referireis a
primeira vez que nos encontrarmos no ano seguinte. Em troca vos contarei a festa do campo,
os dias passados à sombra a conversar com algum amigo, a contemplar a natureza, e a evocar
as lembranças adormecidas de outros dias já passados.
II
Voltemos uma folha ao livro da semana. Um grande pensamento, uma idéia brilhante
foi nela escrita pelo amor da pátria, e pelo amor da ciência.
O Instituto Histórico do Brasil celebrou a sua sessão aniversária sexta-feira no Paço
Imperial. SS.MM., o seu Conselho de Estado, alguns ministros, o corpo diplomático, e quase
todas as ilustrações do país, assistiram a este ato solene, celebrado com as formalidades do
estilo.
Depois da breve alocução do Exmo. Visconde de Sapucaí, o Sr. Dr. Macedo, 1.º
Secretário, leu o seu relatório dos trabalhos do Instituto durante o ano. É um resumo
completo, um pouco longo, como exigia o seu assunto, mas ao qual o seu autor soube, com
rara habilidade, dar uma forma amena, e muitas vezes eloqüente. Depois de mostrar a
incansável solicitude com que S.M. continua a proteger o Instituto, o Sr. Dr. Macedo passou à
enumeração dos trabalhos, e terminou por um belo trecho, notável não só pela boa dicção da
frase, como por uma verdadeira apreciação da atualidade.
XVI
Rio, 24 de dezembro
Estamos na véspera do Natal.
À meia-noite começa esta festa campestre, a mais linda e a mais graciosa da religião
cristã. Vítor Hugo confessa que não há nada tão poético como esta legenda das Mil e Uma
Noites escrita no Evangelho.
Com efeito, tudo é encantador nesta solenidade da igreja, nesses símbolos que
comemoram a poética tradição do nascimento de um menino sobre a palha de uma
manjedoura. A missa do galo à meia noite, os presepes de Belém, as cantigas singelas que
dizem a história desse nascimento humilde e obscuro, tudo isto desperta no espírito uma idéia
ao mesmo tempo risonha e grave.
Não é porém, na cidade que se pode gozar deste idílio suave da nossa religião.
Censurem-me embora de um lirismo exagerado; mas afinal de contas hão de confessar
comigo que no meio do prosaísmo clássico da cidade, entre essas ruas enlameadas, de envolta
com o rumor das seges e das carroças, a festa perde todo o seu encanto, todo esse misterioso
recolhimento que inspira a legenda bíblica.
É no campo, no silêncio das horas mortas, quando as auras apenas suspiram entre as
folhas das árvores, quando a natureza respira o hálito perfumado das flores, que o coração
estremece docemente, ouvindo ao longe o tanger alegre de um sinozinho de aldeia, que vem
quebrar a calada da noite.
Daí a pouco, luz das estrelas, no meio dessa sombra mal esclarecida, distinguem-se os
ranchos de moças, que se encaminham para a igrejinha rindo, gracejando, cochichando,
bisbilhotando, como um bando de passarinhos a chilrear em tarde de outono.
A porta da capelinha está aberta de par em par; e a luz avermelhada dos círios, os
vapores perfumados do incenso, os sons plangentes do órgão, o murmúrio das preces recitadas
à meia voz, enchem todo o corpo do templo. De vez em quando um rumor do campo, o
esvoaçar de alguma andorinha despertada de sobressalto pela claridade, vêm interromper
alegremente a calma e placidez da festa.
Se quereis tomar o meu conselho, minha amável leitora, não ide à missa do galo nas
igrejas da cidade.. Escolhei algumas capelinhas dos arrabaldes, a beira do mar, como a São
Cristóvão, cercada de árvores, como a do Engenho Velho, ou colocada nalguma eminência,
como a igrejinha de Nossa Senhora da Glória, tão linda com as suas arcadas e o seu vasto
terraço.
Ouvi a vossa missa devotamente, isto é, olhando apenas uma meia dúzia de vezes para
os lados, e estou certo que voltareis com a alma cheia das mais suaves e mais risonhas
inspirações. Sentireis que o culto da religião, quando verdadeiro e sincero, é uma fonte rica de
emoções doces, e não traz os dissabores deste outro culto do amor, no qual vós sois algumas
vezes o anjo, e muitas a serpente do paraíso.
Bem entendido, se vos dou este conselho, é persuadido que não aspirais aos foros da
alta fashion, porque neste caso deveis ficar na cidade e ir ouvir missa nalguma igreja bem
quente e bem abafada, para pilhardes uma boa constipação na saída.
A diretoria do Teatro Lírico, que tem o bom gosto de conservar o teatro aberto neste
tempo, não devia deixar de dar algum espetáculo na noite de hoje, a fim de vos preparar por
um banho russiano, para a visita das estufas nas igrejas.
É pena que não se lembrassem de repetir o Roberto do Diabo que acaba justamente às
2 horas, tempo em que cantam os galos.
Tudo neste mundo depende das ocasiões, disse-me um dilettante que vós conheceis: -
Se a diretoria tivesse sabido aproveitar a noite de hoje, o Roberto do Diabo estaria apenas no
purgatório donde naturalmente o conseguiria tirar algum artigo hieroglífico, maçônico ou
brâmine, escrito unicamente para os espíritos sublimes. Então não se veria na dura
necessidade de conservar o teatro aberto, recordando atrasados e obrigando os acionistas e os
assinantes a pagarem as diabruras, não do Roberto, mas de algum São Bartholomeu que não
conhecemos.
Eu não concordo com esta opinião. Julguei a princípio que convinha interromper-se os
espetáculos por um mês, ao menos, porém hoje estou convencido que o teatro presta uma tão
grande utilidade a esta corte, que a polícia devia intervir para que houvesse representação
todas as noites. Se duvidam, vou enumerar-lhes as enormes vantagens econômicas, higiênicas,
políticas e morais que resultam do teatro.
Em primeiro lugar, cura constipações pelo sistema homeopático, alivia o reumatismo
dos velhos, e dá às mocinhas do tom uma cor baça e amarela, do melhor efeito, a qual os
poetas têm convencionado chamar – a palidez romântica. No fim de uma semana ou quinze
dias, uma bela menina, viva e rosada, começa a definhar; desmaiam-lhes as cores, os olhos
tornam-se febricitantes, o corpo toma um ar de lânguida morbidez.
Para o médico, homem positivo, isto é o sintoma funesto de alguma consunção; mas o
poeta, espírito elevado, que tem a pretensão de viver de ar como os camaleões, extasia-se em
face desse rosto macerado pelas vigílias satisfeito por achar uma ocasião de aplicar a sublime
comparação do pálido lírio languidamente reclinado sobre a haste delicada.
No fim de contas, o médico faz um diagnóstico importante; o poeta escreve algumas
centenas de versos no estilo de Byron, ou do Alfredo de Musset. O boticário avia receitas
sobre receitas; e o tipógrafo tira duas edições do volume de poesias. Faz-se uma consulta de
médicos, enquanto os folhetins e as revistas críticas dissecam e fazem a autópsia dos versos
novamente dados à luz. Trava-se a discussão, e no momento justo em que os médicos enchem
de cáusticos e cataplasmas a heroína do romance, o país atônito reconhece que surgiu alfim o
seu Petrarca, seu Dante, o seu Tasso.
Eis aí, o Teatro Provisório concorrendo para o desenvolvimento literário, e fazendo
aprofundar o estudo da medicina. Isto, porém, não é tudo. A diretoria, que empreendeu a
regeneração da nossa ópera lírica, visa também a outros resultados mais reais e positivos.
A Charton é a cantora predileta do público, é o rouxinol das belas noites pintadas por
Bragaldi, é a rosa perfumada em cujo cálice bubul fez o seu ninho gracioso, e onde se reclina
soltando nos ares as ricas melodias de suas notas. Pois bem, a Chaarton continuará a
representar pelo verão, sem ter nem sequer um mês de descanso; bubul cantará todo o estio
como uma cigarra importuna; a flor se fanará exposta ao tempo, sem sombra e sem abrigo.
Um belo dia a Charton ficará com a voz cansada como a Zecchini; e este público
caprichoso e exigente ficará ensinado, e aceitará aí qualquer comprimária que lhe queiram
impingir na qualidade de cantora de cartelo.
Então, como a guerra do Oriente e a exposição de Paris não permitirão novos
engajamentos na Europa, a empresa, livre de reclamações exageradas, poderá fazer
importantes economias, contratando nesta corte algumas cantoras de modinhas para coristas, e
promovendo por antiguidade as coristas e comprimárias e as primas-donas: teremos neste
caso espetáculos baratos, a pataca e a quinhentos réis. O público tomará o seu banho de vapor
pela quinta parte do que paga hoje.
Pouco tempo depois que a diretoria tiver obtido este grande resultado, o público se
convencerá que se a música (do teatro lírico), como disse alguém, é o mais suportável dos
barulhos, o teatro é o mais insuportável dos suadores.
Os espetáculos, pois, serão abandonados, o dilettante começará a ser uma espécie de
mastodonte anti-robertiano, objeto do estudo dos arqueólogos e antiquários, e o barracão terá
um destino muito semelhante ao que tem hoje, e ficará sendo uma dependência do Museu.
Não se pode, portanto, deixar de tributar todos os elogios a quem empreendeu e trata de
executar com tanta habilidade a útil empresa de desacreditar a era italiana e de nos fazer
aborrecer o teatro lírico. Todo o público desta corte deve auxiliar este projeto, por todas as
razões, até mesmo porque é de melhor gosto, e mais elegante, nestas noites de calma ir suar
no Provisório, do que tomar fresco no Passeio Público.
No teatro olha-se para um camarote, procura-se uma feição mimosa e acetinada, umas
faces que são de suave cor-de-rosa, um colo alvo de jaspe, e tem-se o desprazer de ver um
rosto açodado, vermelho, mudando de cores, um seio arfando dificilmente sem aquelas doces
palpitações que lhe dão tanta graça e tanta sedução; vê-se enfim um belo quadro, uma tela
amarrotada cheia de dobras.
Ao contrário, no Passeio Público o quadro realça com a luz do gás, que, ao longe, entre
as árvores, semelha um pouco a claridade da luz; todas as noites, mas especialmente nos
domingos, a concorrência é numerosíssima. Às nove horas a multidão se retira, o passeio
torna-se mais agradável, e começa-se a encontrar-se de espaço a espaço uma ou outra família
conhecida, das que freqüentam ordinariamente os nossos salões.
Não nos enganamos, pois, quando dizíamos há tempo que a iluminação a gás
concorreria muito para a concorrência do Passeio, e daria ao público desta corte um ponto
agradável de reunião. Resta, porém, que se trate de outros melhoramentos, como de reparar
ao menos as grades da rua principal, de ceder-se aos dois pavilhões do terraço para neles se
estabelecerem cafés decentes que possam servir às famílias, e de fazer-se com que haja
música aos domingos, das oito até às dez horas.
Faça-se isto, faça-se alguma coisa mais que or conveniente; e todas as noites em que
houver espetáculo lírico, durante a força do verão, eu terei o prazer de ver os mais
entusiásticos dilettanti sentados nos bancos de pedra do círculo que forma a rua principal do
Passeio, vendo, como eu, passarem os grupos das lindas passeadoras, enquanto apenas um ou
outro melomaníaco, com os cabelos pregados na testa, contemplará heroicamente o
holocausto lírico da voz da Charton, do Bouché e do Gentile, condenados à rouquidão para
assegurar o futuro da ópera italiana, que ficara comprometida nesta corte, se não se cantar nos
meses de dezembro e janeiro.
O natal, o teatro, o passeio me iam fazendo esquecer das questões sérias que este ano
se guardaram para o tempo das festas, justamente para não deixarem nem um dia de férias ao
jornalista. O livro do Sr. De Angelis sobre o Amazonas e ultima,mente o decreto do governo
sobre as sociedades comanditárias vieram agitar a imprensa da corte, e fazê-la sair da rotina
editorial. Sobre a primeira questão deveis ter lido não só a obra do Sr. P. de Angelis, como os
artigos que publicou nesta folha um nosso patrício, conhecido pelo seu talento. Quanto à
segunda, esperai mais alguns dias, e vereis sob que aspecto importante ela vai apresentar-se;
não vos falo mais largamente a respeito, porque deveis saber que os advogados estão de
férias, mais felizes nisso do que os folhetinistas, que não as têm.
Finalmente vou dar-vos uma boa nova. Como a festa é tempo de muita indigestão,
podeis contar já com mais trinta e dois médicos, que no dia 18 deste mês receberam o seu
grau na Academia Militar, em presença de SS. MM. e de um brilhante e numeroso concurso
de pessoas gradas desta corte. O digno diretor da escola recitou um belo discurso e um dos
doutorandos, designado pelos seus colegas, agradeceu em nome deles o grau que acabavam de
receber, fazendo nesta ocasião acertadas considerações sobre o estudo da anatomia e da
fisiologia.
Terminando a sua carreira, vão dar agora o primeiro passo no mundo, e trabalhar para
um futuro que a esperança, companheira inseparável da mocidade, lhes aponta tão risonho e
tão feliz. Deus os fade bem por interesse seu e da humanidade; e possam um dia, repassando
na memória esta primeira página de sua vida, sentirem essas doces recordações do homem
feliz que se revive no seu passado.
XVII
Rio, 31 de dezembro de 1854
Antes de tudo, preciso contar-vos um caso singular que me sucedeu há dois dias.
Tinha acabado de ler os contos de Hoffman, sentei-me à mesa, cortei as minhas tiras de
papel, e ia principiar o meu artigo, quando chegou-me uma visita inesperada.
Se algum dia fordes jornalista, haveis de compreender como é importuno o homem que
vem distrair-vos, justamente no momento em que a primeira idéia, ainda em estado de
embrião começa a formar-se no pensamento e quando a pena impaciente espera o primeiro
sinal para lançar-se sobre o papel.
Haveis de ver que não há nada neste mundo que se lhe compare; nem mesmo o sujeito
que vem interromper-vos precisamente na ocasião em que ides fazer uma declaração de amor,
ou o maçante que vos agarra e vos faz perder a hora do ônibus ou da barca.
Por isso, podeis imaginar com que mau humor, e com que terrível disposição de
espírito, me prepararei para receber a tal visita, que escolhera uma hora tão imprópria, a
menos que não fosse uma mulher bonita, para quem estou persuadido que não se inventaram
os relógios.
A porta abriu-se; e entrou-me um homem já idoso, vestido em trajes de pretendente, de
calça, casaca e colete preto. Havia naquele carão um não sei que, um certo ar de ministro
demitido, de deputado que não foi reeleito, ou de diplomata em disponibilidade.
Trazia debaixo do braço um maço enorme de jornais, de planos de estrada de ferro, de
projetos de navegação fluvial e de regulamentos e leis brasileiras. Quando dei com aquela
papelada, fiquei horrorizado e com a idéia de que o sujeito se lembrasse de a desenrolar.
Enfim o homem chegou-se, fez as duas cortesias do estilo, temperou a garganta, e
dirigiu-me a palavra.
-É ao Sr. Al. que tenho a honra de falar?
-Um se criado.
-Pois, senhor, eu sou o Ano de 1854.
-O quê?
-Eu sou o Ano de 1854.
Desta vez não havia que duvidar; tinha ouvido bem. O tal homem dos papéis ou era um
hóspede que se tinha escapado do Hospício de Pedro II, ou então queria caçoar comigo. Em
qualquer dos casos, não ganhava nada com zangar-me; por conseguinte, tomei o bom partido
de aceitar a minha visita por aquilo que ela se anunciava.
-Muito bem, senhor; respondi-lhe eu, queria ter a bondade de sentar-se, e dizer-me o
que me dá a subida honra de ser visitado pelo Ano de 1854.
-O senhor não ignora que estou breve a concluir a minha carreira política, e a retirar-
me de uma vez dos negócios.
-Não, senhor, não ignoro: depois de amanhã, creio que é dia de São Silvestre, dia em
que todos os membros de sua família costumam abdicar.
-É verdade, replicou-me o sujeito com um suspiro; depois de amanhã terei cessado de
reinar!
-Mas creio que não foi para me dar esta grande novidade que tomou o incômodo de
procurar-me?
-Decerto: o que me trouxe aqui foi especialmente pedir-lhe a sua benevolência.
-Como; a minha benevolência?
-Pois o senhor não é folhetinista?
-Tenho esta honra.
-Ora, os folhetinistas costumam sempre fazer a despedida ao ano que finda, e emitir o
seu juízo a respeito dos seus atos.
-Não me lembrava dessa! Assim...
-Vinha suplicar-lhe toda a indulgência para comigo, visto a boa vontade que sempre
manifestei de bem servir, não só a este país, como a toda a humanidade.
-Meu amigo, a boa vontade só não basta. Os homens estão hoje muito positivos;
exigem fatos.
-Passo a apresentá-los.
-Então vamos a isso: espere, deixe-me preparar o papel para tomar meus apontamentos.
Agora estou às suas ordens.
-Em primeiro lugar, senhor, mencionarei a estrada de Mauá, o primeiro caminho de
ferro que se construiu no Brasil. Isto é uma glória que ninguém me pode roubar; um fato pelo
qual a posteridade me abençoará.
-Concordo, sim, senhor; mas que contas me dá das promessas brilhantes da estrada de
ferro do Vale do Paraíba, que já se devia estar construindo?
-A culpa não é minha; foi herança que recebi e negócio que já vinha um pouco
transtornado. Entretanto, eu organizei a companhia do Juazeiro, e dei começo aos seus
primeiros trabalhos.
-Bem, escrevo cá nos meus apontamentos as estradas de ferro; passemos ao mais.
-O senhor lembra-se que fui eu que primeiro empreguei toda a solicitude no asseio e
limpeza da cidade...
-Basta, basta!... Por aí advirto-lhe que vai mal. A respeito de limpeza e de asseio da
cidade, temos contas a ajustar; o senhor comprometeu-me horrivelmente.
-Eu, senhor! Não é possível!
-Escute-me; quando o senhor começou com as suas azáfamas de asseio das ruas, de
regulamentos, etc., eu julguei que o negócio era sério, fiz-lhe o meu elogio, e defendi-o contra
aqueles que o atacaram; mas hoje vejo que tudo aquilo quase que não passou de palavras, e
que as ruas continuam a ser charcos de lama.
-Mas, senhor...
-Tenha paciência, deixe-me acabar. Há aí uma pretendida rega, que o senhor pôs em
voga, e que só serve de enlamear os passeios todas as tardes: ao meio-dia tudo está seco;
quando ameaça chover, aí temos as carrocinhas a refrescarem as ruas, provavelmente para que
a chuva não as constipe.
-Já vejo que neste ponto o senhor está prevenido contra mim.
-Prevenido, não. O senhor caçoou completamente conosco; não tem desculpas.
-Bem, não insisto mais sobre isso; mas creio que não me poderá negar a iluminação a
gás.
-Ah! a iluminação a gás! Não estou bem certo, mas tenho uma lembrança vaga de que
já é idéia do 53. Entretanto concedo que seja sua. Como se defende o senhor contra as
acusações que se lhe têm feito de nos ter roubado o encanto dos belos luares, e de haver
privado os namorados daquelas noites escuras tão favoráveis a uma conversinha de rótula, ou
a um passeio de Rua do Ouvidor?
-Ora, senhor, esses homens não sabem o que dizem: todo o namorado, toda a mocinha
– é coisa sabida – precisa de um pouco de gás. Quanto à lua, é já tão antiga que era bem
tempo de acabar com ela. Entretanto esses ingratos, que falam de tudo, não se lembram que
lhes fiz um grande benefício, livrando-os da lua.
-E esses eclipses não anunciados na folhinha, a má qualidade do gás, o preço
exorbitante dos combustores, o cálculo excessivo da quantidade consumida! Como se defende
desta e outras censuras graves que lhe têm feito os jornais?
-A falar a verdade, eu carreguei um pouco a mão; mas, além de outras razões, era
preciso não desacreditar o gás, vendendo-o muito barato logo em começo.
-Bela teoria! Mas, como eu não possuo ações da companhia do gás, há de permitir que
tome uma nota nos meus apontamentos: “iluminação à gás, ainda não satisfatória e muito
cara”.
-Porém...
-É negócio decidido: que mais temos?
-A Rua do Cano.
-Isto é, o projeto da Rua do Cano.
-Eu não tenho culpa que o tempo não me chegasse para leva-lo a efeito.
-Mas tem culpa de haver demorado perto de quatro meses a incorporação da
companhia; durante este tempo, se o senhor não se andasse divertido com questões de
prerrogativas municipais, podia ter ao menos dado começo àquela obra importante.
-De maneira que o senhor não me concede nem a Rua do Cano?
-Concedo-lhe o projeto, e nada mais: a idéia creio que foi de 53.
-Pois bem, passemos agora a uma outra ordem de coisas. Fui eu que iniciei na Câmara
dos Deputados diversos projetos importantes; que efetuei a reforma da instrução pública e
reorganizei a Academia das Belas-Artes. Parece-me que esses fatos são títulos à estima
pública.
-Certamente, sou o primeiro a confessar; é verdade que eu tenho minhas dúvidas sobre
alguns desses melhoramentos; mas isto são coisas que eu tratarei de deslindar com o seu
sucessor, que amanhã deve-se mandar o seu bilhete de faire part.
-É preciso não esquecer as condecorações do dia dois...
-O quê? O senhor toma-me por algum oficial da secretaria do Império?
-Como! O senhor mesmo já não me elogiou por ter tido a idéia deste fato?
-Está enganado; elogiei-o por ter cumprido o legado dos cinco anos passados; e, de
mais, isto é uma coisa que pode dar glória a um dia como o 2 de dezembro, mas nunca a um
ano como o senhor.
-Finalmente esta cidade não pode deixar de agradecer-me o não ter querido imitar
aquele malvado 1850.
-Parece sepultis, meu caro.
-Perdão, senhor: não quero falar mal de ninguém; mas, à vista daquele ano, acho que se
deve levar-me em conta a ausência da febre amarela e de outra qualquer epidemia.
-Ora, é boa! Nisso não fez o senhor mais do que cumprir o seu dever.
-Entretanto...
-Espere... espere... lembra-me agora; e aquele grande medo que o senhor nos meteu
com o cólera!
-Ora, senhor! Retorquiu-me o sujeito com um risozinho malicioso!
-Explique-se.
-Aqui em segredo; aquilo foi um negócio com os médicos.
-Não se zangue, senhor; lembre-se do que eu fiz pelos advogados com a questão das
sociedades comanditárias; do que fiz pelos jornalistas, à quem presenteei com uma boa
quantidade de pufs; lembre-se, finalmente, que esse mesmo receio do cólera deu-lhe matéria
para um folhetim em ocasião em que o senhor estava bem apertado.
-Bem; o dito por não dito. A respeito da salubridade pública pode ficar descansado.
-Agradeço infinitamente a V. S.
-Não se apresse tanto; talvez no fim tenha muito que agradecer-me. Até aqui tem o
senhor alegado os seus direitos; agora há de permitir-me que capitule as minhas queixas.
Trate, portanto, de defender-se, bem.
-Farei o que puder.
Havia algum tempo que me parecia que o tal sujeito ia emagrecendo de uma maneira
espantosa, e tornando-se delgado como um varapau; mas, como era alta a noite, atribuí isto à
alucinação da vista, efeito talvez da fadiga e dos raios amortecidos da luz, que mal esclarecia
o vasto aposento. Não fiz, portanto, muito caso disto, e tratei de continuar a minha singular
conversação.
-Meu caro senhor, sinto dizer-lhe que o senhor, embora me desse alguns momentos de
prazer, contudo fez-me muitos males, e um principalmente que eu não lhe posso por maneira
alguma perdoar.
-Qual, senhor?
-O ter-me feito mais velho um ano.
O homem ficou fulminado. Eu continuei:
-Roubou-me uma boa parte daquelas ilusões dos primeiros anos da mocidade;
desfolhou-me algumas dessas flores que nascem nos seios d’alma, orvalhadas com as
primeiras lágrimas do coração, e que perfumam os sonhos mais belos desta vida.
Cada dia, cada hora, cada momento que passa, rouba-nos um pouco dessa poesia
sublime, que embeleza os nossos prazeres e consola as nossas dores. Lá vem tempo em que a
alma perde as suas asas de ouro, asas que Deus lhe deu para voar ao céu.
O que há neste mundo que valha os nossos sonhos cor-de-rosa, as nossas noites de
plácida contemplação, os idílios suaves de nossa imaginação a conversar com alguma estrela
solitária que brilha no céu, semelhante a essas amizades santas.
Qui se cachent parfois em nos heures d’azur,
Et reviennent à nous em entendant nos plaintes?
Quando todas essas flores murcham, que resta para encher o vácuo que fica em nossa
alma? Nada: o tempo foge rapidamente, e apenas deixa uma ruga na face, alguns cabelos
brancos na cabeça, e um número de mais à soma dos nossos dias.
-Não, Com os anos aí vem os pensamentos sérios, as grandes coisas, a glória, a
ambição, a política, as honras, os estudos graves. Confesse que isto vale mais do que todas
estas frivolidades que preocupam o espírito da mocidade, e com as quais se gasta o tempo
inutilmente.
Chama a isso frivolidades? O que é então que há neste mundo de sério e de real? A
glória, porventura? É interessante; trata-se de bagatela o amor, as verdadeiras afeições, as
mais belas expansões de nossa alma, zomba-se do homem que segue por toda parte em
vestidinho de uma certa cor, que se mataria por um sorriso, e que guardaria preciosamente
uma flor murcha que caísse de um buquê.
Entretanto vós, homem sério e grave, que calculas refletidamente, que do alto da vossa
importância lançais um olhar de desprezo para essas futilidades do mundo, que fazeis vós?
Sacrificais a vida, a preguiça, o prazer, como diz Alfonse Karr, para um dia atar à gola
da casaca uma fita de uma certa cor. Enquanto nós suplicamos um sorriso de uma bela
mulher, vós daríeis um dedo da mão pelo sorriso do ministro ou do conselheiro de Estado.
Desprezais a moda; é uma coisa ridícula, mas sonhais noite e dia com a farda bordada.
Se nós esquecemos tudo para, em um momento de expansão, colher numa linda boquinha
rosada duas palavras que nos abrem o céu, vós renegais os amigos, prostituís a consciência
unicamente para ter o prazer de ouvir (qu glória!) um passante dizer-vos – Sr.Barão.
Oh! se tudo é ilusão e quimera neste mundo, meu Deus, deixai-me os lindos sonhos da
mocidade, deixai-me as visões poéticas de meus vinte anos, as minhas horas de cismar,
deixai-me todas estas futilidades, e reservai para outros as coisas sérias, calmas e refletidas.
Mas isto é um vão desejo. Daqui mais a alguns anos tudo terá passado, e também entraremos,
como os outros, na luta dos homens graves e sisudos, e, como eles, lançaremos um olhar de
desdém para essas páginas douradas da nossa vida. Apenas, nas horas da solidão, nos virá
encantar a doce recordação desses belos dias em que tínhamos, como diz Lamartine:
Um flot calme, um vent dans as voile;
Toujours sur as tête une étoile,
Une espérance devant lui.
Não sei se dizia, ou se unicamente pensava todas estas coisas. Tinha-me esquecido do
meu hóspede.
Deu meia-noite. Senti um estalar de juntas. Voltei os olhos para o sujeito. À última
pancada do relógio, um outro homem se destacou do primeiro e desapareceu.
Obstupui, steteruntque comae, et vox faucibus hoesit. Fiquei pasmo. Decididamente
passava-se naquele momento alguma coisa de fantástico e de sobrenatural.
Entretanto o sujeito, calmo, mas repentinamente emagrecido, olhava-me com um
semblante tranqüilo, um pouco melancólico.Compreendeu o meu espanto, e respondeu à
pergunta muda que lhe fazia o meu olhar espantado:
-É o dia 29 que acabou, e que se foi embora. Só me restam agora dois dias de vida.
Esta resposta ainda mais me atordoou. Mas afinal, como o meu companheiro esperava
pacientemente a continuação da conversa, tomei uma resolução; acendi o meu charuto na vela
que estava quase a apagar-se, e fui por diante, disposto a não me admirar de mais coisa
alguma.
Palestramos muito tempo. Dissertamos sobre a guerra do Oriente, sobre a Europa, e
mais largamente sobre os futuros destinos do Brasil. Contou-me algumas crônicas
escandalosas, que presenciou, referiu-me muita anedota engraçada e muita história galante.
Viemos a falar do teatro; e ele confessou-me francamente que, a princípio, tentou deita-
lo a baixo com o negócio das tesouras, e mesmo com algumas chuvas e com a grande
ventania do mês passado. Que infelizmente não o conseguiu; e por isso assentou de torna-lo a
coisa mais ruim e a mais desenxabida, para ver se assim se resolvem cuidar da ópera lírica, e a
construir um edifício digno desta corte.
Por fim, já pela madrugada, comecei a fechar os olhos insensivelmente, e não sei o que
mais se passou.
Agora, meu leitor, se vos destes ao trabalho de ler o que ai ficou escrito, talvez desejeis
saber a explicação disto. É muito simples. Tinha, como vos disse, acabado de ler alguns
contos de Hoffman. Suponde que, como eu, folheais uma daquelas páginas, e segui a regra da
antiga sabedoria – Nihil admirari.
XVIII
Rio, 8 de janeiro de 1855.
Et une annèe entière a replié ses ailes
Dans l’ombre d’une seule nuit!
(Lamartine)
Ainda vos lembrais do ano passado? Ainda não esquecestes a última noite de 1854?
Era uma noite de luar, mas turva e carregada. O céu cobria-se de nuvens. A natureza
estava calma e sossegada. As horas corriam silenciosamente.
Deu meia-noite. Um ano terminava, um ano começava. Mas nem um sinal, nem um
vestígio atestava essa grande revolução do tempo que se acabava de consumar.
Tudo continuava tranqüilo. A noite seguia o seu curso ordinário, e a lua deslizava
solitária por entre as nuvens cinzentas e carregadas que alastravam o céu.
Que importava, com efeito, que essa hora que soava marcasse o termo de um ano? Que
importava que a fraca inteligência do homem procure limitar a obra de Deus?
O tempo corre eternamente; os dias se sucedem como os meses, como os anos e os
lustros. Um século que acaba, uma idade que finda, um mundo que desaparece, é sempre a
rápida transição de um segundo, é apenas um instante que passa.
Todos nós sabemos isso; todos nós vamos correr o tempo com indiferença; e entretanto
o coração nos palpita com emoção quando ouvimos soar esta hora fatídica da meia-noite, que
marca o fim e o começo de um ano.
É quase impossível reprimir nesse instante solene um movimento involuntário, que nos
faz volver um olhar saudoso ao passado e procurar no fundo d’alma algum vago
pressentimento, alguma promessa risonha, que nasce subitamente como o novo ano que
começa.
Na vida de alguns homens esse rápido instante é o cântico de um belo poema.
Recordações dos dias que passaram, saudades de uma quadra feliz, culto respeitoso a algumas
reminiscências sagradas, aspirações de glória e de ambição, fé em Deus, esperança no futuro,
todas estas grandes coisas lhes perpassam confusamente na fantasia, brilham rapidamente, e
se extinguem como esses fogos brilhantes que sulcam as trevas nas noites calmas e serenas.
Para aqueles que ainda se deixam involuntariamente dominar pela poética e graciosa
ficção do ano-bom, este dia é um oráculo cheio de presságios e de vaticínios. Quanto desejo
querido, quanto voto ardente, não vem afagar no fundo desses corações aquela primeira
aurora do ano! Neste dia pensa-se naquilo que mais se ama no mundo, janta-se no seio da
família, visita-se os amigos e troca-se mutuamente as boas entradas de ano, os presentes de
amizade, as étrennes.
E assim no meio de tudo isto, no meio desses cuidados e desses prazeres, dos receios e
das esperanças novamente criadas, esquecemos a verdadeira e talvez única realidade deste
dia. Um ano que passa – um outro ano que vem, e com ele a idade e a velhice..
Bem entendido, não falo aqui de certa gente, que desejaria que um ano fosse um
minuto, e que passasse como uma hora de tédio, ou um dia de convalescença. Parece incrível,
porém não é menos verdadeiro.
Logo em primeiro lugar temos o pretendente à senatoria, que se acha na idade crítica
dos trinta e nove anos. Vem depois o órfão que espera os vinte para requerer suplemento de
idade, e empolgar a herança paterna. Finalmente a menina que desterra as malditas calças e o
vestido curto, e entra no rol das moças em estado de casar; e o estudantinho de latim, que
todos os dias procura no queixo as promessas de um buço rebelde, e que suspira pelo dia em
que se emancipará do colégio e conquistará a santa liberdade da academia e o direito de fumar
o seu charutinho.
É preciso não esquecer o sujeito que tem os seus cinqüenta e nove anos, e que deseja os
sessenta para ver-se livre da guarda nacional e do recrutamento; nem também o empregado
público que suspira pelo último ano para a jubilação, e o juiz de direito que está a completar o
tempo de ser promovido à primeira entrância.
Para esses o novo ano é sempre alegre e feliz; é o ano da salvação. Mas para nós, que
não estamos nesse caso, que nos prometerá este ano, que nasceu no meio da chuva como um
sapo, tendo por madrinha a lua cheia ?
Será isto, mau agouro, como entendem as velhas, ou será ao contrário um presságio de
abundância e fertilidade, que nos livrará da carestia dos gêneros e não nos deixará mais à
mercê das usuras de alguns marchantes?
Creio antes esta última versão. Já não me fascinam essas promessas brilhantes que
nunca se realizam. Embora turvo e carrancudo, o ano novo para mim se anuncia cheio de
futuro e de propriedade para o meu país.
Ninguém sabe que encantadores mistérios, que risonhos segredos ocultas no teu seio.
Ninguém sabe quanto primor, quanta graça, quanto mimo de beleza, tuas asas de ouro
esparzirão sobre alguma cabecinha virgem que ainda brinca com os sonhos da infância!
Vêm, novo ano! Vem como o hábil artista do tempo dar os últimos toques a alguma
bela estátua moldada pela natureza, e arredondar a curva graciosa, as ondulações suaves de
umas formas encantadoras!
Vem, como o sopro de Deus, como o fogo do céu, desabrochar uma rosa ainda em
bastão; perfumar a florzinha delicada que apenas começa a abrir os seios às auras da vida, e
tecer de fios de ouro os dias de uma existência pura e tranqüila!
Vem igualmente dar um pouco de juízo a muita cabecinha louca que aí anda às voltas
por este mundo, tirando o juízo a quem o tem! Vem fértil de maridos, de bailes, de teatros, de
modas, de casamentos. Traze-nos da Europa algumas boas cantoras; e não te esqueças de
substituir a anarquia que hoje reina no teatro por uma ópera digna de ti e da boa sociedade
desta corte. Para isto já tens o projeto de uma nova companhia lírica no Teatro de S. Pedro
Alcântara, o qual podes realizar perfeitamente.
Quando tiveres feito todas estas coisas, meu caro, tem paciência, toma a vassoura e a
carrocinha, e trata de varrer e de limpar as ruas da cidade, no que farás um grande serviço.
Estimarei que removas ao menos a lama de algumas ruas, porque então ser-me-á possível
especializar as outras, e defender-me assim da censura que me fizeram nesta folha e no Jornal
do Comércio por ter falado geralmente; como se a culpa fosse minha, de não poder achar uma
exceção à falta de asseio!
Acho escusado dizer-te que dispensamos o calor de oitenta graus, as febres de qualquer
cor que sejam, as guerras por mais interessantes que te pareçam. Quando muito, para
quebrares a monotonia do tempo, ficas com o direito salvo de elevares a temperatura até o
ponto de desejar-se o sorvete e os gelados; e de produzir algumas intermitentes, para que os
médicos não esqueçam de todo a ciência. Em vez de guerras do Oriente, podes fazer aparecer
alguns processos monstros, daqueles que passam a quarta geração, e que os advogados
ingleses dão de dote às suas filhas.
Se quiseres este programa essencialmente conciliador podes contar comigo. Escrever-
te-ei as mais pomposas efemérides de que haja notícia no mundo; e em dezembro far-te-ei um
epitáfio, digo, um retrospecto, que ocupará as colunas do Correio Mercantil durante oito dias
consecutivos.
E para começar vou já cuidando em traçar a história desta primeira semana que começa
pelas étrennes e acaba pelas cantilenas dos Reis. A chuva, as tardes de trovoadas, o tempo
enfarruscado, entristeceram quase todos estes dias.
Na sexta-feira, porém, uma bela noite de luz, fresca e agradável, parecia convidar as
alegres procissões que lembram a antiga tradição dos três reis magos, vindos do Oriente
guiados por uma estrela para adorar o Menino Jesus.
Hoje, como todos os antigos costumes, esta festa vai caindo em desuso. Já quase não se
vêem nesta corte aquelas romarias folgazãs, aqueles grupos de pastorinhas, aquelas cantigas
singelas que vinham quebrar o silêncio das horas mortas.
A noite de Reis atualmente é apenas a noite das ceias lautas, dos banquetes
esplêndidos; de maneira que, a julgar da tradição pelas festas de agora, dir-se-ia que os reis
magos eram três formidáveis comilões, que vieram do Oriente unicamente para tomarem um
fartão de peixe, de ostras, de maionese e gelatinas.
Em todas as épocas o homem teve a balda de desfazer no presente e de encarecer o
passado. “No nosso tempo era outra coisa” dizem os velhos desde o princípio do mundo.
Entretanto, seja pelo que for, seja que aquilo que passou exerça sobre a nossa imaginação um
prestígio poderoso, o que é verdade é que nossos pais sabiam divertir-se melhor do que nós.
Outrora todas as festas tinham o seu quê de original, o seu cunho particular que as
distinguia uma da outra. O Natal era a festa do campo; tinha a sua missa do galo à meia-noite,
as suas alegres noitadas ao relento, os seus presepes toscos, mas encantadores. Logo depois
vinham os Reis com as suas cantigas, as suas romarias noturnas, as suas coletas para o jantar
do dia seguinte. São João tinha as suas fogueiras, os seus horóscopos à meia-noite. Ao
Espírito Santo armavam-se as barraquinhas, e faziam-se leilões de frutos e de aves.
Presentemente todas as festas se parecem. Um baile, uma ceia, e tudo feito. Desde o
princípio ao fim do ano vai-se ao baile ou ao teatro. Isto ainda seria suportável, se
procurassem conformar esta espécie de divertimento à estação que reinasse.
Agora, Poe exemplo, que entramos na força do verão, como não seriam agradáveis
alguns bailes campestres, onde se dançasse à fresca, entre as árvores, nalgum pavilhão
elegante levantado no meio de jardins? As moças trajariam seus lisonjeiros vestidinhos
brancos próprios da estação; os cavaleiros usariam de um toilette de verão. Nada de
rigorismos diplomáticos e de penteados sobrecarregados de enormes jardineiras.
Há nesta corte uma Sociedade Campestre que se podia incumbir de realizar esta idéia;
porém infelizmente parece que ela vai marchando rapidamente para sua completa extinção.
De campestre só tem o título; no mais é uma sociedade como as outras, com a diferença que
dá as suas partidas num pavilhão muito sujo, muito velho e de muito mau gosto.
Houve a lembrança o ano passado de reabilita-la, e para isso comprou-se um terreno
para uma casa; distribuíram-se as ações pelos sócios, e recebeu-se a primeira prestação.
Planejou-se, calculou-se, e por fim não se fez nada, na forma do costume. O terreno está a
vender, e os sócios que esperem pelas calendas gregas para serem reembolsados do seu
dinheiro.
Entretanto parece-me que a sociedade ainda tem muitos elementos que se podem
aproveitar; e que, se alguém procurasse dar-lhe um salutar impulso, poderíamos vir a ter uma
reunião bem agradável. Então a sociedade devia limitar as suas partidas campestres aos seis
meses de verão, e deixar os outros seis meses para os bailes aristocráticos do Cassino e para
os saraus brilhantes que costumam aparecer naquela quadra do ano.
Temos conversado tanto e sobre tantas coisas, que deixo ainda muita idéia bonita que
aí fica com as outras no fundo do tinteiro, esperando a sua vez de se entenderem sobre o
papel. Para as idéias é este um dia de baile; a pena faz-lhes o toilette, como uma criada grave;
e, depois de bem vestidinhas e bem elegantes, largam-se pelo mundo a namorar, a torto e a
direito, a fazer epigramas e a dizer graças, a bolir este e com aquele, até que um dia ninguém
faz mais caso delas.
Antes, porém, de deixar-vos, minha gentil leitora, quero dar-vos as minhas étrennes,
embora não vos lembrásseis de mandar-me as festas. O meu cadeau é uma notícia, que creio
haveis de apreciar tanto quanto ela merece. Com o novo ano vai continuar (ou já continuou) a
ser publicado um lindo jornal italiano e português, do hábil professor Galleano Ravara. Já
prevejo com que prazer acolhereis a fride, que, como uma boa mensageira, irá falar-vos a
doce e rica linguagem do Tasso, do Dante e de Petrarca, e recordar-vos aquelas palavras de
Romeu e Julieta, quando ouviam cantar o rouxinol e a cotovia ao raiar da alvorada.
Por enquanto contentai-vos com estas doces recordações que vos avivarão saudades da
Stoltz e das belas noites do nosso teatro italiano. Dizem, porém, que daqui a algum tempo
tereis mais do que simples reminiscência: prometem-vos uma cena lírica, onde verdadeiros
artistas executarão as obras-primas dos maestros antigos e modernos. Cumprir-se-ão tão belas
promessas?
Como sabeis, formou-se nesta corte uma associação para montar no Teatro de S. Pedro
de Alcântara uma companhia italiana de primeira força. Já foram publicadas nesta folha as
bases da nova sociedade que intenta levar a efeito aquele projeto.
No estado em que se acha a nossa cena lírica, semelhante idéia é um grande benefício.
A nova empresa vem promover uma salutar emulação entre os dois teatros, e destruir o
monopólio que até agora tem existido, com grave prejuízo do público.
Além deste melhoramento, que resulta do simples fato da concordância, a organização
de uma sociedade deste gênero pode trazer muitas vantagens importantes. Os bons
espetáculos, o exemplo e a lição de artistas de mérito, hão de necessariamente desenvolver
entre nós o verdadeiro estudo da música italiana, e aproveitar muito aos talentos nacionais que
aparecerem.
Se a nova sociedade realizar as suas idéias, se, em vez de amostras líricas, nos der
verdadeiras óperas, ainda continuará a admitir-se a absoluta necessidade de uma subvenção do
governo? Ainda haverá empresa desinteressada que receba 120 contos de réis do tesouro para
carregar com um déficit enorme?
Estes exemplos de filantropia desaparecerão infelizmente; porém o governo
economizará por ano uma centena de contos, que poderá destinar à construção de um teatro
nacional ou de uma pequena ópera, feita pelo modelo dos melhores teatros da Itália e da
Alemanha.
A nova empresa tem de lutar com imensas dificuldades; mas se conseguir vence-las, o
teatro de S. Pedro de Alcântara virá a ter as suas belas noites, e reunirá no seu pequeno salão
a fina flor da sociedade desta corte.
Que importa que estas noites custem mais caro?
Todos conhecerão que este aumento de preço é puramente nominal, uma noite em que,
além de uma brilhante reunião se tem o prazer de ouvir a verdadeira música de Rossini, de
Verdi e de Bellini, de Donizetti e de Meyerbeer, vale mais do que quatro ou cinco noites de
ensaios no Provisório, onde algumas vezes se canta para os bancos e para os camarotes
vazios.
Entretanto cumpre que a sociedade, desprezando os funestos precedentes do nosso
teatro, guarde toda a lealdade nos seus empenhos com o público, e se esforce por manter
aquela ordem e regularidade tão necessária à comodidade dos espectadores e aos próprios
interesses da sociedade.
Assim, os espetáculos devem ter dias certos e determinados na semana, e começarem a
horas precisas, nunca excedendo de meia-noite.
Seria muito útil que se estabelecesse também o costume de interromper os espetáculos
durante os dois ou três meses da força do verão. Esta interrupção, cuja vantagem ainda não se
compreendeu entre nós, facilita à empresa o estudo e preparo de novas óperas, e dá-lhe tempo
de contratar novos artistas na Europa.
Realizando a nova sociedade estas condições, pode contar da nossa parte com um
apoio fraco, mas leal. Ao contrário, se não corresponder às suas brilhantes promessas não se
poderá livrar de uma grave censura; e os nomes que nela se acham empenhados terão de
responder ao público e à imprensa pelos males que possam ocasionar ao nosso teatro.
XIX
Rio, 14 de janeiro
As sociedades em comandita, eis a questão do dia. O abecedário inteiro tem saído a
campo; e cada letra é um novo campeão que desce à liça do combate.
Todas as armas têm sido tomadas. A lógica, o estudo profundo do objeto, a dialética de
uma argumentação vigorosa, ressaltam nos primeiros artigos, publicados no Jornal do
Comércio e assinados por duas iniciais, que, como todos sabem, denunciam uma das nossas
capacidades, um dos espíritos mais bem organizados em matéria de jurisprudência.
Abrangendo a questão num ponto de vista largo e profundo, aqueles artigos
desenvolveram a questão comanditária desde a sua verdadeira base até as últimas
conseqüências do decreto de 13 de dezembro de 1850.
Há poucos dias um dos advogados mais distintos do nosso foro nos dizia, a respeito
destes artigos, que poderiam ter sido escritos por ele: Não é um artigo de jornal, é um tratado.
No Correio Mercantil a questão tomou outra face; mas foi habilmente tratada. A pena
que defendeu o ano passado o projeto de reforma judiciária, que se discutia na câmara, veio
de novo à imprensa para sustentar o decreto do governo, com os conhecimentos, com o estilo
claro e fluente de que já havia dado provas.
Infelizmente, porém a questão não se manteve na altura a que a tinham elevado os dois
ilustres membros da magistratura e da classe dos advogados.
Insinuações pessoais, alusões injustas e deslocadas, vieram tomar o lugar de
argumentos, e responder àquilo que o direito, a justiça e os princípios de razão haviam
estabelecido no desenvolvimento da questão.
Por ora a discussão tem sido unicamente entre as consoantes; as vogais conservam-se
neutras, e esperam talvez o resultado da luta para emitirem, com verdadeiro conhecimento de
causa, uma opinião conscienciosa.
Se os espíritos graves se preocupam com esta questão interessante, com as últimas
notícias do Oriente, e com o resultado provável da nossa Guerra do Paraguai, os outros
pensam no carnaval, que o seu cortejo de folias e extravagâncias.
O carnaval!... Enquanto ele está longe, enquanto ele não vem transtornar o juízo com
os seus momos grotescos e suas voluptuosas bacantes, aproveitemos a ocasião, e falemos
sério a seu respeito.
Creio que são inteiramente infundados alguns receios que há de vermos reviver ainda
este ano o jogo grosseiro e indecente de entrudo, que por muito tempo fez as delícias de certa
gente. Além das boas disposições do público desta corte, devemos contar que a polícia
desenvolverá toda a vigilância e atividade.
Depois que o Sr. Desembargador Siqueira, entre tantos outros benefícios que nos fez,
conseguiu extinguir esse antigo costume português, a polícia carrega com uma
responsabilidade muito maior do que nos anos anteriores. Outrora era um uso arraigado com o
tempo, e por conseguinte difícil de extirpar; hoje seria um abuso, que só a negligência poderia
deixar que se renovasse.
Muitas coisas se preparam ente ano para os três dias de carnaval. Uma sociedade criada
o ano passado, e que conta já perto de oitenta sócios, todos pessoas de boa companhia, deve
fazer no domingo a sua grande promenade pelas ruas da cidade.
A riqueza e luxo dos trajes, uma banda de música, as flores, o aspecto original desses
grupos alegres, hão de tornar interessante esse passeio dos máscaras, o primeiro que se
realizará nesta corte com toda a ordem e regularidade.
Quando se concluir a obra da Rua do Cano, poderemos então imitar, ainda mesmo de
longe, as belas tardes do Corso em Roma.
Entretanto a sociedade teve já este ano uma boa lembrança. Na tarde de segunda-feira,
em vez do passeio pelas ruas da cidade, os máscaras se reunirão no Passeio Público, e ai
passarão a tarde, como se passa uma tarde de carnaval na Itália, distribuindo flores, confete, e
intrigando os conhecidos e amigos.
Naturalmente, logo que a autoridade competente souber disto, ordenará que a banda de
música que costuma tocar ao domingo guarde-se para a segunda, e que em vez de uma, sejam
duas ou três.
Confesso que esta idéia me sorri. Uma espécie de baile mascarado, às últimas horas do
dia, à fresca da tarde, num belo e vasto terraço, com todo o desafogo, deve ser encantador.
O que resta é que as nossas patrícias, todas mimosas e aristocráticas como são, não se
deixam levar de velhos prejuízos, e continuem a temer a simples vista de uma máscara como
de uma coisa perigosa.
Todos os membros da sociedade são pessoas delicadas e do mais fino trato; e por
conseguinte podem ter certeza que quaisquer palavras, qualquer galantaria, não serão capazes
de ofender nem sequer uma suscetibilidade.
Assim, pois, cessem estes escrúpulos. Quando vos oferecem com tanta amabilidade
uma bela ocasião de gozar de algumas horas de prazer, não está bem da vossa parte uma
recusa e um completo desdém. Ao contrário, mostrai que lhe dais algum apreço, porque isto
nos animará a fazer uma outra coisa que ainda está em muito segredo, mas que eu vos conto
em confidenza, com a condição de que ficará entre nós unicamente.
Lembram-se alguns amigos, a conversar a respeito do carnaval, que era possível dar-se
um baile de máscaras no qual vós pudésseis tomar parte, e não ser simples espectadores, como
nos teatros.
Querem ver que já estais a fazer algum muxoxo de desdém, e a pensar que todos os
anos se fala nisto e que nunca se chega a efetuar. Paciência! Tanto se há de falar que um dia a
coisa se há de realizar. Mais vale tarde do que nunca.
Entretanto suponde que a diretoria do Cassino toma a peito esta idéia, e que com os
mesmos sócios do Cassino, e com algumas outras pessoas aprovadas por ela, forma uma nova
sociedade filial para dar todos os anos um baile mascarado, começando por este carnaval.
Feito isto, ainda duvidareis do bom êxito da nossa lembrança? Estou certo que não.
Vós conheceis os diretores do Cassino, e vos lembrais dos bailes magníficos que nos tem
dado o seu amável presidente. Assim, pois, a dificuldade está em convence-lo. Pedi-lhe; e não
se me dá de apostar que é coisa feita.
Como já deveis estar aborrecida da prosa chã e rasteira deste artigo, dou-vos uns lindos
versinhos que li num álbum um destes dias. Se os quereis achar ainda mais bonitos do que
eles realmente são, suponde que vos foram dedicados.
XX
Rio,21 de janeiro
Sexta-feira, era tarde da noite. Pensava, não me lembra a que propósito.
Se há coisa que dê asas ao pensamento, que solte o vôo à fantasia, é uma dessas mudas
contemplações pelo silêncio da noite, quando num momento de tédio o espírito se revolta
contra as misérias do presente, e procura além no futuro, ou nos tempos que passaram, um
novo elemento de força e de atividade.
A imaginação se lança no espaço, percorre mundos desconhecidos, atravessa o tempo e
a distância, e vai muitas vezes acordar os ecos do passado, revolver as cinzas das gerações
extintas, ou contemplar as ruínas de uma cidade opulenta, de um vasto império abatido.
A história se desenha então como um grande monumento. Ao volver-lhe as páginas,
volvem-se os séculos. Os anos correm por minutos. As raças que desapareceram da face da
terra se levantam do pó, e passam como sombras fugitivas. Cada folha do grande livro, é o
berço de um povo, ou o túmulo de uma religião, um episódio na vida da humanidade.
Era tarde da noite.
Ao redor tudo estava tranqüilo. A cidade dormia; o silêncio pairava nos ares. Apenas
algumas luzes suspensas na frente de uma ou outra casa, e perdidas no clarão do gás, faziam
reviver do esquecimento uma grande recordação da nossa história.
Havia apenas vinte dias que começara o novo ano; e esses dias, que agora corriam tão
calmos e tranqüilos, há mais de três séculos passavam e repassavam sobre esta cidade
adormecida, deixando-lhe sempre uma data memorável, escrevendo-lhe o período mais
brilhante dos seus anais.
O tempo, por uma coincidência notável, parece ter confiado ao mês de janeiro os
maiores acontecimentos, os destinos mesmos desta grande cidade que dele recebeu o seu
nome, que com ele surgiu do seio dos mares aos olhos dos navegantes portugueses, e neles
recebeu o primeiro influxo da civilização e ergueu-se das entranhas da terra para um dia
talvez vir a ser a rainha da América.
E todas essas recordações se traçavam no meu espírito vivas e brilhantes. As sombras
se animavam, os mortos se erguiam, o passado renascia.
Aquela massa negra da cidade que se destacava no meio da escuridão da noite
levantava-se aos meus olhos como um pedestal gigantesco, onde de momento a momento
vinha colocar-se uma grande figura de nossa história, que se desenhava no fundo luminoso de
um quadro fantástico.
Era uma visão como o sonho de Byron, como a cena da gruta no Mackbeth de
Shakespeare.
Vi ao longe os mares que se alisavam , as montanhas que se erguiam, as florestas
virgens que se balouçavam ao sopro da aragem, sob um céu límpido e sereno.
Tudo estava deserto. A obra de Deus não tinha sido tocada pela mão dos homens.
Apenas a piroga do índio cortava as ondas, e a cabana selvagem suspendia-se na escarpa da
montanha.
A bela virgem da Guanabara dormia ainda no seio desta natureza rica e majestosa,
como uma fada encantada por algum condão das lendas de nossos pais.
A aurora de um novo ano – de 1531 – surgia dentre as águas, e começava a iluminar
esta terra inculta. Algumas velas brancas singravam ao longe sobre o vasto estendal dos
mares.
Passou um momento. A figura de Martim Afonso destacou-se em relevo no fundo desta
cena brilhante, e tudo desapareceu como um sonho que era.
Mas um novo quadro se desenhou no meu espírito.
No meio de um povo em lágrimas, ergue-se o vulto imponente de um fidalgo
português. Sua vida lia-se no dístico gravado sob o pedestal em letras de ouro:
Arte regit populos, bello proecepta ministrat;
Mavortem cernit milite, pace Numam
Ergueu-se. Era o Conde de Bobadela. Contemplou um instante esta cidade que havia
governado vinte e nove anos e cinco meses, esta cidade que tinha aformoseado e
engrandecido. Depois deitou-se no seu túmulo e passou. Um grande préstito fúnebre o seguiu.
Novo quadro ainda se desenhou no meu espírito.
Vi um combate naval.. Vi o assalto de uma fortaleza – de Villegaignon. A fumaça
envolve os combatentes; ronca a artilharia; a de flecha voa com o pelouro; a piroga do
selvagem lança-se no ataque..
Um cavalheiro desconhecido atira-se ao mais forte da peleja e anima os combatentes
portugueses. Seu corpo é invulnerável, suas palavras excitam o entusiasmo e a coragem. Dir-
se-ia que uma auréola cinge a sua cabeça.
Mais longe o general português expira, e seus soldados redobram de esforço e de valor
para vingar a sua morte, e para ganhar enfim uma vitória tão valentemente disputada pelos
franceses.
Terminou o combate. Aquele soldado, que com a ponta de sua espada, ainda tinta do
sangue do inimigo, traça sobre o campo da batalha a planta de uma nova cidade – é Estácio de
Sá, o fundador do Rio de Janeiro.
A pequena colônia começou a estender-se pelas ribeiras da baía, e cresceu no meio
desta terra cheia de força e de vigor. De simples governo passou a vice-reinado; depois à
capital de um reino unido; e por fim tornou-se a corte de um grande Império.
Mas que vulto é este que assoma no meio do entusiasmo e da exaltação patriótica do
povo agradecido? Não tem ainda a coroa, nem o manto; mas há nele o tipo de um grande
imperador, de um herói.
É D. Pedro I, que, em resposta à representação do senado, da câmara e do povo da
cidade, profere essa palavra memorável, que decidiu do futuro do Brasil, e que, firmando as
primeiras bases da nossa independência política, concorreu igualmente para elevar o Rio de
Janeiro a capital do novo Império.
Contemplei por muito tempo, tomado de santo respeito, esse tipo simpático de um
monarca cavalheiro, que deixou na nossa história os mais brilhantes traços de sua vida.
Lançando os olhos sobre esta cidade, que ele tanto amara seu rosto expandiu-se. Viu o
comércio e a indústria florescerem, criando esses grandes capitais que alimentam as empresas
úteis para o país. Viu o amor e a dedicação nos degraus daquele trono em que se sentara. Viu
por toda a parte a paz e a prosperidade.
Volveu ainda um último olhar, e sumiu-se de novo nas sombras do passado.
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O que acabais de ler é uma página perdida, é uma folha arrancada a um livro
desconhecido, que talvez daqui a algum tempo vos passará pelos olhos, se não tiver o destino
de tantos outros, que, antes de nascidos, vão morrer entre as chamas.
A história do Rio de Janeiro tem algumas páginas, como essa, tão belas, tão poéticas
que às vezes dá tentações de arranca-las das velhas crônicas, onde jazem esquecidas para
orna-las com algumas flores deste tempo.
Hoje não aparecem mais desses fatos brilhantes de coragem e heroísmo. A época
mudou: aos feitos de armas sucederam as conquistas da civilização e da indústria. O comércio
se desenvolve; o espírito de empresa, servindo-se dos grandes capitais e das pequenas
fortunas, promove o engrandecimento do pais, e prepara um futuro cheio de riqueza e de
prosperidade.
Ide à Praça. Vereis que agitação, que atividade espantosa preside às transações
mercantis, às operações de crédito, e sobretudo às negociações sobre os fundos de diversas
empresas. Todo o mundo quer ações de companhias; quem as tem vende-as, quem não as tem
compra-as. As cotações variam a cada momento, e sempre apresentando uma nova alta no
preço.
Não se conversa mais sobre outra coisa. Os agiotas farejam a criação de uma
companhia; os especuladores estudam profundamente a idéia de alguma empresa gigantesca.
Enfim, hoje já não se pensa em casamento rico, nem em sinecuras; assinam-se ações, vendem-
se antes das prestações e ganha-se dinheiro por ter tido o trabalho de escrever o seu nome.
Este espírito da empresa e esta atividade comercial prometem sem dúvida alguma
grandes resultados para o país; porém é necessário que o governo saiba dirigi-lo e aplica-lo
convenientemente; do contrário, em vez de benefícios, teremos de sofrer males incalculáveis.
É preciso não conceder autorização para incorporação de companhias que não revertam
em bem do país, que não tenham todas as condições de bom êxito. Não procedendo desta
maneira, se falseará o espírito da lei e a natureza das sociedades anônimas, e se perderá
indubitavelmente o concurso deste poderoso elemento de riqueza e de engrandecimento.
Companhias que, como algumas que já existem, não forem criadas no pensamento de
uma necessidade pública, ou de uma grande vantagem do país, não só esgotarão os capitais
que podem servir para outras obras de maior alcance, como desacreditarão o espírito de
empresa, desde que, como é natural, os seus lucros não corresponderem às esperanças do
comércio.
Cumpre também – já falamos em companhias – que o governo trate de examinar se
algumas empresas privilegiadas que existem nesta corte, principalmente navegação do
costeio, têm satisfeito as condições de sua incorporação. Fala-se em tantos abusos, em tantas
negligências, que é provável haver um fundo de verdade nas exagerações que costumam
envolver certas censuras.
E sobre isto me parece que é tempo de quebrar-se esse círculo de ferro do exclusivismo
e do monopólio, que tanto mal começa a fazer à nossa navegação de costeio. O privilégio é
um agente aproveitável nos países novos; mas convém que seja empregado com muita
reserva, e unicamente no período em que a indústria que se quer proteger ainda não tem o
desenvolvimento necessário.
Atualmente que nos nossos estaleiros e na Ponta da Areia, já se constroem tantos
vapores próprios para a navegação do interior, qual é a vantagem que resulta das empresas
privilegiadas? Não é isto matar a concorrência, e impedir que uma indústria útil se desenvolva
e se aperfeiçoe?
Repetimos. O governo deve examinar escrupulosamente este objeto; e não só abster-se
de conceder incorporações de companhias privilegiadas desta natureza, como desautorizar, na
forma do código comercial, a existência daquelas que não tiveram cumprido as condições da
sua organização.
É porque desejamos unicamente o bem do país que tememos esses desvios no espírito
de empresa que se está desenvolvendo tão poderosamente no Império, e sobretudo na praça do
Rio de Janeiro.
Entretanto há algumas companhias, como por exemplo a da Rua do Cano, que se
incorporou ultimamente com o nome de Reformadora, a qual deve merecer do governo toda a
proteção, por isso que para o futuro ela pode vir a realizar grandes melhoramentos urbanos, e
criar um sistema de arquitetura de casa muito necessário ao aformoseamento da cidade e à
higiene pública.
É inconveniente, porém, a demora que tem havido no regulamento da companhia,
principalmente aparecendo na praça algumas apreensões (que julgo infundadas) a respeito de
condições rigorosas que se supõe seriam impostas à sociedade. O objeto me parece
maduramente estudado, esclarecido por uma luminosa discussão nas câmaras e pelos planos e
dados estatísticos coligidos na municipalidade pelo Dr. Haddock Lobo. Não enxergamos,
pois, uma razão plausível para essa tardança do regulamento, aliás tão prejudicial ao público e
aos proprietários da Rua do Cano.
Depois da empresa Reformadora, organizou-se a companhia de colonização agrícola
do Rio Novo, com um capital de quinhentos contos de réis, representado por 2.500 ações. Foi
o Major Caetano Dias da Silva, fazendeiro na Província do Espírito Santo, Município de
Itapemirim, quem teve a idéia da criação desta sociedade.
A importância do seu objeto, a inteligência e a longa prática do seu diretor, junta à
fertilidade, a um clima salubre e à facilidade de comunicações com as grandes praças de
comércio, asseguram a esta companhia grandes vantagens, que reverterão todas em proveito
do país, e particularmente da Província do Espírito Santo.
A colonização para um novo e de vasto território, como o nosso, é a primeira condição
de riqueza e de engrandecimento. O estrangeiro que procura o nosso país não nos traz
unicamente braços e forças para o trabalho material; não é somente um número de mais que
se aumenta ao recenseamento da população.
É uma inteligência prática que melhora a indústria do país e um grande elemento de
atividade que desenvolve as forças produtivas da terra; é finalmente uma nova seiva que
vigora, uma nova raça que vem identificar-se com a raça antiga aperfeiçoando-se uma pela
outra. O nosso governo tem compreendido o grande alcance da colonização, e, o que é mais,
tem-se empenhado em promove-la eficazmente.
Depois que o Sr. Conselheiro Euzébio de Queirós travou a última luta contra o tráfico,
e conseguiu esmagar essa hidra de Lerna, cujas cabeças renascem do seu próprio sangue, o
nosso governo tratou de aproveitar o favorável ensejo que lhe oferecia a crise proveniente da
deficiência dos braços para a agricultura.
Começou-se então a olhar com mais atenção para as nossas pequenas colônias do Sul;
e animou-se a Sociedade Hamburgo, à qual devemos neste ponto grandes serviços pela
exatidão com que tem cumprido as suas obrigações e pelo zelo com que constantemente na
Alemanha defende a nossa causa, contra os ridículos inventos de alguns detratores.
Consta-nos agora que o nosso governo acaba de tomar suas medidas, que são da maior
importância, para o futuro da colonização.
A 1.ª é a autorização mandada ao nosso ministro em Londres a fim de promover a
emigração de Chins para o Brasil segundo as bases e instruções que já lhe foram remetidas.
Os bons resultados que se têm conseguido desta emigração nas colônias inglesas nalguns
lugares da América Meridional nos deve dar boas esperanças para a nossa cultura do chá e do
café.
A outra deliberação do governo que nos consta, que se deduz de alguns atos
ultimamente praticados – é a da subvenção de 30$000 concedida por cada colono maior de
dez anos e menor de 45, honesto e lavrador, sendo estabelecidos em colônias ou fazendas
pertencentes a empresas agrícolas. O governo reservou-se muito prudentemente em que
convém conceder o favor.
Esta medida inesquecivelmente é um poderoso auxílio para as companhias agrícolas,
ao mesmo tempo que corta certas empresas mercantis muito prejudiciais, e que previne, de
alguma maneira, a introdução de colonos que não tenham boa moral e uma vida honesta.
Depois destas rápidas observações, creio que se pode dizer com toda a franqueza de
uma opinião sincera que o governo cumpriu o seu dever e faz mais do que se podia exigir dos
poucos recursos de que dispõe.
Estamos, porém, em tempo de tratar, não de pequenas colônias, mas de uma
colonização em vasta escala, de uma emigração regular que todos os anos venha aumentar a
nossa população.
O governo, pois, que chame a atenção do corpo legislativo sobre este assunto e que
inicie um projeto de lei, no qual se adotem as medidas tomadas pelos Estados Unidos para
promover a emigração. Eu lembraria neste caso a conveniência de limitar os favores
concedidos unicamente àquelas nações cuja população desejaríamos chamar ao nosso país.
Não temos nada a invejar à América Inglesa em recursos naturais, em fertilidade do
solo, em elementos de riqueza. O nosso clima é mais salubre; desde o sul ao norte temos no
alto das nossas serras uma temperatura quase européia. . Como país ainda inculto, oferecemos
muito maior interesse ao colono agrícola que quiser explorar a terra.
Por que razão, pois, não havemos de ter a mesma emigração?
Porque temos ciúme do estrangeiro, porque guardamos como um avaro este título de
cidadão brasileiro, e o consideramos como uma espécie de quinhão hereditário que se
amesquinha à proporção que se divide. É por isso que vemos no estrangeiro um intruso, um
herdeiro bastardo, que nos quer disputar a herança paterna, isto é, os empregos, os cargos
eleitorais e as sinecuras.
Sacrifiquemos esses prejuízos ao interesse público, e pensemos ao contrário, que é
levando por toda parte este título de cidadão brasileiro, que é recebendo na nossa comunhão
todos os irmãos que nos estendem a mão, que um dia faremos aquele nome grande e
poderoso, respeitado da Europa e do mundo.
Voltai! Voltai depressa esta folha, minha mimosa leitora! São coisas sérias que não vos
interessam. Não lestes?... Ah! fizestes bem!
Com efeito, que vos importa a vós estas espécies de companhias, se tendes as vossas à
noite, junto do piano, a ensaiar com alguma amiga um belo trecho da música, a cantar alguma
ária, algum dueto de Trovador? Que vos importa nestes momentos saber o que vai algures, se
as ações baixam, ou se uma pobre cabeça atordoada de pensar já não pode de tanto que lhe
corre a pena?
Era melhor que tivesse tomado a boa resolução de ir fazer um giro pelo Passeio
Público.
A aceitação dessas de outras idéias que temos lembrado nos anima ainda a dizer
alguma coisa sobre os melhoramentos do Passeio Público, principalmente quando o Sr.
Ministro do Império, como homem de bom gosto que é, se tem mostrado tão desejoso de
embelezar este lugar e torna-lo um agradável ponto de reunião.
Para isso a primeira coisa a fazer é o asseio e a limpeza. As árvores ainda estão muito
maltratadas; os dois tanques naturais sobre os quais se elevam as duas agulhas de pedra estão
tão bem fingidos que são naturais de mais; pelo menos, têm lodo e limo como qualquer
charneca de pântano. A arte deve imitar a natureza, mas nem tanto. Há também uma palhoça a
um dos lados do passeio, que, a não estar ali como coisa exótica, não lhe compreendo a
utilidade. Não digo que a deitem abaixo como uma parasita; mas é bom cuidar em faze-la
seguir o destino das coisas velhas e feias.
Outro dia me disseram que o Sr. Conselheiro Pedreira tencionava renovar as grades das
alamedas, e substituir o muro exterior por gradeados de ferro, para o que já se havia feito o
orçamento.
A primeira idéia é muito acertada; todos sentem a necessidade, e nós mesmos já a
lembramos. Quanto à segunda, não acreditamos. É impossível que o Sr. Ministro do Império
tenha tido esta lembrança. Para que servem nos jardins as grades exteriores? Para descobrir a
beleza das alamedas e abrir um lanço de vista agradável.
No Passeio Público, porém, servirão para mostrar árvores velhas, ruas estragadas, e
finalmente o tal Nestor das casinhas velhas de que já falamos. Tratemos, pois, primeiro do
interior.
Assim parece-nos que seria muito agradável e muito fácil, fazer correr veios de água
límpida ao longo das alamedas, e construir-se nos quadros alguns repuxos e jets d’’eau...
Ai! lá me caiu a palavra do bico da pena. Nada; vamos tratar de nacionalizar a língua;
um correspondente do Correiro Mercantil de segunda-feira reclama de nós este importante
serviço.
Mas que quer dizer nacionalizar a língua portuguesa? Será mistura-la com o tupi? Ou
será dizer em português aquilo que é intraduzível, e que tem um cunho particular nas línguas
estrangeiras?
Há de ser isso. Mãos à obra. Daqui em diante, em vez de se dizer passei num coupé, se
dirá andei num cortado. Um homem incumbirá a algum sujeito que lhe compre entradas, e ele
lhe trará bilhetes de teatro em vez de étrennes. E assim tudo o mais.
Quanto a termos de teatro, fica proibido o uso das palavrinhas italianas, porque enfim é
preciso nacionalizar a língua.
E é bom que os dilettanti (perdão – amantes de música) fiquem desde já prevenidos
disto, porque breve, parece que vamos ter uma excelente companhia.
A nova empresa de que vos falei há quinze dias organizou-se e nomeou a sua diretoria.
Pelo Maria 2.ª, partem para a Europa duas pessoas encarregadas de contratar os artistas
necessários, entre os quais virão quatro primeiras partes, escolhidas no que houver de mais
notável na Europa. Levam ordem de oferecer honorários dignos das melhores reputações
européias.
A empresa pode já contar com 2:500$000 por noite, de assinaturas tomadas até hoje; e
espera aumentar esta soma. A primeira estação de quarenta récitas começará a 12 de julho
deste ano e terminará a 12 de dezembro de 1856.
Basta. Vamos agora desfolhar algumas flores, e derramar uma lágrima de saudade
sobre a lousa de um grande poeta.
Enquanto seus irmãos na inspiração e na poesia vão acordar os ecos da morte com um
cântico sentido, seja-me permitido a mim, humilde prosador, misturar um goivo às flores
perfumadas da saudade, e derramar uma lágrima sobre o fogo sagrado.
A beira desse túmulo, onde o poeta dos grandes amores, das paixões ardentes, o poeta
do coração, talvez que venha pender uma cabeça pálida, e que os ecos da tarde murmurem às
brisas que passarem, aquela endeixa repassada de tanta mágoa:
Correi sobre estas flores desbotadas,
Lágrimas tristes minhas, orvalhai-as,
Que a aridez do sepulcro as tem queimado.
Mas erguei os olhos! Nesses versos que aí vedes é um irmão que fala. Silêncio, pois!
Deixemos ao poeta dizer as saudades da poesia. Lede a bela poesia do Sr. Andrada Machado
sobre a morte de Garrett.
À MORTE DO INSIGNE POETA PORTUGUES
VISCONDE DE ALMEIDA GARRETT
Morrer! Porqu’extinguir-se assim tão rápida
A centelha vivaz que alumiava
Por entre os véus da noite a turba varia?
Morrer! E além perder-se fenecida
A fronte poderosa que abrigava
A vontade de Deus! – Nem mais seus olhos
Lerão nos astros a marcada rota
Que o mundo há de seguir.
De Lísia a musa – joelho em terra – pára
Junto da campa que entre a noite alveja!
Treme-lhe o corpo, como sacudido
Por ventania rija, e os olhos turvos
Em vão se esforçam por verter um pranto –
Consolo que lhe adoce a dor cruenta.
E as lágrimas enxutas se derramam
Por sobre a face em convulsivos traços
Do sangue coagulado que nas veias
De súbito estancou.
Que maldição, Senhor, açoita o século!
A morte hedionda, entrechocando os ossos,
Tripudia de júbilo, espreitando
A vítima infeliz. Seu peito cavo
Anseia de alegria. Os que mais alto
Erguem a fronte refulgindo glórias.
-Decrépita manceba – ela escolhe;
E tenta remoçar o amor adusto,
Chupando o sangue que mais puro gira
Em coração de homem.
E assim de um só ímpeto se apaga
Uma vida que rútila brilhara,
Seus raios desferindo a acalentaram
Com seu almo calor as mós do povo!
E assim resvala na solidão perdida
A voz que descantara em lira d’oiro,
Com coração pungido de amarguras,
A cruenta desgraça do poeta
Que morreu com a pátria.
Oh! Que sina tão negra a do poeta!
Escolhido da dor, perlustra a vida,
Rasgando o seio que a desgraça oprime,
A derramar nos cantos inspirados
Essa de vida seiva tão possante
Que pródigo oferece às multidões.
E por trôco o sofrer angustiado
Do maldito de Deus que vaga incerto
No caminhar contínuo.
Nenhum consolo sobre a terra ao pobre!
E quando era sentado sobre o marco,
Pendida à frente a descantar às auras
A dulia inefável de seu seio,
A morte lhe interrompe o canto suave,
Que ele vai terminar na eternidade
Junto ao trono de Deus.
Que plácido repouse nas alturas –
No remanso da paz – entre os arcanjos,
Que em seus braços o acolhem pressuroso!
E unindo sua lira em nota amena
Às harpas divinais, ufano entoe
Os hinos do Senhor.
Feliz, despiu a túnica poenta;
E, se prostrado jaz na loiza frígida
Estanguido seu corpo pela morte,
Eternos viverão seus divos cantos,
Que não há esquecer obras que o gênio
Com seu sopro inspirou.
Antônio Carlos Ribeiro de Andrada Machado
XXI
Rio, 25 de fevereiro
Foi-se o carnaval. Passou como um turbilhão, como sabá de feiticeiras, ou como um
golpe infernal.
Nesses três dias de frenesi e delírio a razão fugiu espavorida, e a loucura, qual novo
Masaniello, empunhou o cetro da realeza.
Ninguém escapou ao prestígio fascinador desse demônio irresistível: cabeças louras,
grisalhas, encanecidas, tudo cedeu à tentação.
Entre as amplas dobras do dominó se disfarçava tanto o corpinho gentil de uma moça,
travessa, como o porte grave de algum velho titular, que o espírito remoçava.
Dizem até que a política – essa dama sisuda e pretensiosa – se envolveu um momento
nas intrigas do carnaval, e descreveu no salão uma parábola que ninguém talvez percebeu.
Deixemos, porém, dormir no fundo do nosso tinteiro esses altos mistérios que se
escapam à pena do folhetinista. Já não estamos no carnaval, tempo de livre pensamento –
tempo em que se pode tudo dizer – em que é de bom gosto intrigar os amigos e as pessoas que
se estimam.
Agora que as máscaras caíram, que desapareceu o disfarce, os amigos se encontram,
trocam um afetuoso aperto de mão e riem-se dos dissabores que causaram mutuamente uns
aos outros.
O nosso colega do Jornal do Comércio, que se disfarçou com três iniciais que lhe não
pertenciam, compreende bem essas imunidades do carnaval.
Hoje, que o reconhecemos, não é preciso explicações: ele tem razões de sobra para
acreditar que sinceramente estimamos o seu valioso auxílio na realização de uma idéia de
grande utilidade para o país.
Nunca desejamos o monopólio; ao contrário, teríamos motivos de nos felicitar, se
víssemos geralmente adotada pela imprensa do nosso país uma tentativa, um ensaio de
publicação, cuja falta era por todos sentida.
Quando deixamos cair do bico da pena um ligeiro remoque à publicação do colega, não
era que temêssemos uma imitação;não era porque receássemos uma emulação proveitosa
entre os dois mais importantes órgãos da imprensa da corte.
Esta luta, mantida com toda a lisura e toda lealdade, nós a desejamos em bem do pais,
embora nos faltem os recursos para sustenta-la com vantagem. É dela, é do calor da discussão,
do choque das idéias, que têm nascido e que hão de nascer todos os progressos do jornalismo
brasileiro.
O que nós receávamos era a reprodução de uma dessas lutas mesquinhas, indignas de
nós ambos, e das quais a história da nossa imprensa apresenta tão tristes exemplos. Era um
desses manejos impróprios de jornalistas, e aos quais o mecanismo complicado da nossa
administração tanto favorece. Era enfim uma representação dessa ridícula farça de
publicidade tão em voga nas nossas secretarias, nas quais se dão por favor as cópias dos atos
oficiais ao jornal que quer fazer um favor publicando-as.
Temíamos uma luta desta natureza, porque não estamos ainda afeitos à chicana;
porque, do momento em que ela se tornasse necessária, seríamos forçados a abandonar uma
idéia, pela qual trabalhamos com todo o amor que nos inspira a nossa profissão.
É tempo, porém, de voltarmos ao carnaval, que preocupou os espíritos durante toda a
semana, e deu matéria larga às conversas dos últimos dias.
Entre todos os festejos que tiveram lugar este ano cabe o primeiro lugar à sociedade
Congresso das Sumidades Carnavalescas, que desempenhou perfeitamente o seu programa, e
excedeu mesmo a expectativa geral.
No domingo fez esta sociedade o seu projetado passeio pelas ruas da cidade com a
melhor ordem; foi geralmente recebida, nos lugares por onde passou, com flores e buquês
lançados pelas mãozinhas mimosas das nossas patrícias, que se debruçavam graciosamente
nas janelas para descobrirem entre a máscara um rosto conhecido, ou para ouvirem algum dito
espirituoso atirado de passagem.
Todos os máscaras trajavam com riqueza e elegância. Alguns excitavam a atenção pela
originalidade do costume; outros pela graça e pelo bom gosto do vestuário.
Nostradamus – uma das mais felizes idéias deste carnaval – com o seu longo
telescópio examinava as estrelas, mas eram estrelas da terra. Um Merveilleux dandinava-se na
sua carruagem, repetindo a cada momento o seu c’est admirable! quando a coisa mais incrível
deste mundo é a existência de um semelhante tipo da revolução francesa.
Luis XIII, livre do Cardeal de Richelieu, tinha ao lado uma Bayadère, e parecia não dar
fé do seu rival Lord Buckingham, que o seguia a cavalo no meio de um bando de cavaleiros
ricamente vestidos.
Esquecia-me dizer que ao lado do Merveilleux ia um Titi de marinha, que atirava
concetti em vez de confetti. Era o mais fácil de conhecer, porque a máscara dizia o que ele
seria se as moças que o olhavam fossem cordeirinhos.
Em uma das carruagens iam de companhia Temistovles, Soulouque, Benevenuto
Cellini, Gonzalo Gonzáles, quatro personagens que nunca pensaram se encontrar neste
mundo, e fazerem tão boa amizade.
Se fosse possível que Temístocles e Benevenuto Cellini passassem esta tarde por uma
das ruas por onde seguiu o préstito, estou persuadido que o artista florentino criaria uma nova
Hebe mais linda que a da Canova; e que o general antigo rasgaria da história a página
brilhante da batalha de Salamina por um só desses sorrisos fugitivos que brincam um
momento numa boquinha mimosa que eu vi, e que apenas roçam os lábios como um sopro da
aragem quando afaga o seio de uma rosa que se desfolha.
Quanto a Van Dick – que seguia-se logo após – este quebraria o seu pincel de mestre,
desesperado por não achar na sua paleta essas cores suaves e acetinadas, essas linhas puras,
esses toques sublimes que o gênio compreende, mas que não pode imitar.
Eram tantos os máscaras e os trajes ricos que se apresentaram, que me é impossível
lembrar de todos; talvez que aqueles que agora esqueço sejam os mais geralmente lembrados;
e, portanto, está feita a compensação.
Como foi este o primeiro ensaio da sociedade, de propósito evitamos fazer antes
algumas observações a respeito do seu programa, com receio de ocasionar, ainda que
involuntariamente, dificuldades e embaraços à realização de suas idéias. Hoje, porém, essas
reflexões são necessárias, a fim que não se dêem para o futuro os inconvenientes que houve
este ano.
O entrudo está completamente extinto; e o gosto pelos passeios de máscaras tomou este
ano um grande desenvolvimento. Além do Congresso, muitos outros grupos interessantes
percorreram diversas ruas, e reuniram-se no Passeio Público, que durante os três dias esteve
literalmente apinhado.
Entretanto, como os grupos seguiam diversas direções, não foi possível gozar-se bem
do divertimento; não se sabia mesmo qual seria o lugar, as ruas, donde melhor se poderia
aprecia-lo.
A fim de evitar esse dissabor, a polícia deve no ano seguinte designar com antecipação
o círculo que podem percorrer os máscaras, escolhendo de preferência as ruas mais largas e
espaçosas, e fazendo-as preparar convenientemente para facilidade do trânsito.
Desta maneira toda a população concorrerá para aqueles pontos determinados: as
famílias procurarão as casas do seu conhecimento: os leões arruarão pelos passeios; e o
divertimento, concentrando-se, tomará mais calor e animação.
Tomem-se estas medidas, preparem-se as ruas com todo esmero, e não me admirarei
nada se no carnaval seguinte aparecerem pelas janelas e sacadas grupos de moças disfarçadas,
intrigando também por sua vez os máscaras que passarem, e que ficarão desapontados não
podendo conhecer através de um loup preto o rostinho que os obrigou a todas estas loucuras.
Se o Sr. Desembargador chefe de polícia entender que deve tomar essas providências,
achamos conveniente que trate quanto antes de publicar um regulamento neste sentido,
designando as ruas por onde podem circular os máscaras, e estabelecendo as medidas
necessárias para a boa ordem e para a manutenção da tranqüilidade pública.
Estas últimas medidas são fáceis de prescrever, quando se tem um povo sossegado e
pacífico, respeitador das leis e da autoridade, como é o desta corte. Nestes três dias que
passaram, o divertimento e a animação foi geral; e entretanto numa população de mais de
trezentas mil almas não tivemos um só desastre a lamentar. Exemplos como estes são bem
raros, e fazem honra à população desta cidade.
Na terça-feira sobretudo houve no Passeio Público uma concorrência extraordinária.
Grande parte das Sumidades Carnavalescas aí se achava; e a curiosidade pública não se
cansava de vê-los, a eles e a muitos outros máscaras que também tinham concorrido ao
rendez-vous geral deste dia.
Às oito horas da noite o Teatro de São Pedro abriu os seus salões, nos quais por volta
de meia-noite passeavam, saltavam, gritavam ou conversavam perto de cinco mil pessoas; era
um pandemônio, uma coisa sobrenatural, uma alucinação fantástica, no meio da qual se viam
passar figuras de todas as cores, de todos os feitios e de todos os tamanhos.
Mui8tas vezes julgareis estar nos jardins do profeta, vendo brilhar entre a máscara os
olhos negros de uma huri, ou sentindo o perfume delicioso que se exalava de um corpinho de
lutin que fugia ligeiramente.
Foi numa dessas vezes que, ao voltar-me, esbarrei face a face com Lorde Raglan, que
acabava de chegar da Criméia e que deu-me algumas balas, não das que costuma dar aos
russos; eram de estalo. Conversamos muito tempo; e o nobre deixou-me para voltar de novo à
Criméia, onde naturalmente não deram pela sua escapula.
À meia-noite em ponto serviu-se no salão da quarta ordem uma bela ceia, que o
Congresso ofereceu aos seus convidados e sócios. A mesa estava brilhantemente preparada; e
no meio das luzes, das flores, das moças que a cercavam, e dos elegantes trajes de fantasia dos
sócios, apresentava um aspecto magnífico, um quadro fascinador.
Bem queria vos dizer todas as loucuras deste último baile até as derradeiras arcadas do
galope infernal; mas na quarta-feira de cinzas esqueci tudo, como manda a religião. Por isso
ficais privados de muita crônica interessante, de muito segredo que soube naquela noite, mas
que já não me lembro.
XXII
Rio,4 de março
A notícia da tomada de Sebastopol, a abertura das academias, a representação da Linda
de Chamounix, duas procissões de quaresma, e a chuvinha aborrecida de todas as tardes, são
os fatos mais importantes da semana.
Resta saber, entre tanta coisa interessante, por qual delas começaremos.
Pela notícia da Criméia, ou antes da Bahia – não. Estou pouco disposto hoje a fazer
conjeturas e suposições sobre a probabilidade deste dato.
Pelas procissões – ainda menos. A chuva declarou-lhes guerra este ano; e os anjinhos,
com receio do tempo, encolheram as asas, e não desceram do céu onde habitam.
Ora, para mim, procissões sem anjinhos é coisa que se não pode ver. Os outros
pensarão o contrário: estão no seu direito: cada um é livre de ter mau gosto.
Deixando, pois, de parte as procissões, não há remédio senão irmo-nos sentar nalguma
das cadeiras do Teatro Lírico, e passar três ou quatro horas bem agradáveis a ver a Linda de
Chamounix, ou qualquer outra linda mesmo aqui da nossa bela terra.
O primeiro ato é uma música simples e encantadora, que traduz as impressões da vida
tranqüila da ladeia, e que termina com o belo dueto do baixo e da barítono, e com a despedida
de LINDA.
Esperemos, porém, pelo segundo ato; deixemos passar algumas cenas cômicas;
cheguemos ao momento terrível em que a palavra de maldição expira nos lábios paternais.
LINDA, a pobrezinha inocente, a menina iludida, que se ajoelhara para implorar o perdão,
ergue-se louca.
Vede como lutam naquele espírito desvairado as recordações alegres de um belo
tempo, com a lembrança tremenda da maldição paterna, e com a ameaça terrível da cólera
celeste.
De repente esta voz suave e harmoniosa, cuja doçura todos nós conhecemos, estala
num grito de dor, numa agonia atroz; mas bo fundo da alma brilha um raio de luz, uma idéia
risonha, uma reminiscência de gozos passados; e, quando pensais que aquela angústia chega
ao seu último paroxismo, lá se desprende dos lábios, de envolta com um sorriso, uma melodia
graciosa, umas notas feiticeiras, que vêm brincar docemente com o vosso ouvido arrebatado.
Vem afinal o terceiro ato, o desenlace feliz desta história simples da vida de uma moça.
A filha torna ao lar paterno; e a graça de Deus faz voltar a alegria, a paz e o sossego ao
coração de toda esta pobre gente, que experimentara por algum tempo todas as provanças da
fortuna. O final é magnífico, como vos dirá com toda a sua graça costumada o folhetim lírico
de terça-feira.
Eis o que é para mim a representação da Linda Chamounix; uma noite de emoções
deliciosas, e mais positivamente, uma ou duas páginas de revista em uma semana, sobre a
qual sou obrigado a confessar que não há muito de tratar.
Além de ser tempo de quaresma, tempo de provações, de jejum, de expiação de
pecados, ainda em cima aí vêm todos os dias uma chuvinha miúda, umas nuvens cinzentas e
carregadas tirar-nos o belo azul do céu, os raios do sol, e as lindas noites de luar que a
folhinha nos tinha prometido.
Quem não está disposto a ser regado pelas águas do céu como as ruas desta heróica
cidade, ou como as flores dos jardins, passa o dia inteiro a resolver a importante questão, se
deve sair ou ficar em casa. Afinal vem uma estiada, decide-se, veste-se, e chega-se à porta,
justamente quando começa de novo a chover. Não há remédio senão despir-se e resignar-se a
desfiar as horas e os momentos sozinho, e a conversar com os seus botões.
Ora, se há tempo em que a solidão seja insuportável, é este de agora, em que não se
fala, não se trata, nem se pensa senão em companhia. Janta-se em companhia dos amigos,
passa-se a noite em boa companhia, e ganha-se dinheiro em companhia.
Nada hoje se faz senão por companhia. A iluminação a gás, as estradas, os açougues, o
asseio público, a construção de ruas,tudo pe promovido por este poderoso espírito de
associação que agita atualmente a praça do Rio de Janeiro.
Se encontrardes por aí algum sujeitinho de chapéu rapado, de laço de gravata à
bandida, roendo as unhas, ou coçando a ponta da orelha, não penseis que é um poeta ou um
romancista à cata de uma rima ou de um desfecho para seu último romance. Nada! o tempo
destas bagatelas já passou. Podeis apostar que o tal sujeitinho rumina o projeto de uma
empresa gigantesca, e calcula na ponta dos dedos o ganho provável de uma companhia
qualquer.
E assim tudo o mais. Vê-se hoje pelos salões, pelas ruas a cada canto, certos
indivíduos a segredarem, a trocarem palavras ininteligíveis e a falar à mezza você uma
linguagem incompreensível, cabalística. Um homem pouco experiente tomá-los-ia por
carbonários ou membros de alguma sociedade invisível de alguma confraria secreta. Qual!
são finórios que farejam a criação de uma companhia, e que tratam de se arranjarem para não
ficarem sós, isto é, sem dinheiro.
Até a nova empresa lírica, que se criou nesta corte há coisa de dois meses, assentou de
organizar uma companhia para a construção de um novo teatro apropriado à cantoria, e conta-
nos que já pediu ao governo a competente autorização.
Com a facilidade que há atualmente em conceder-se semelhante favor, parece-nos que
o governo não deixará de autorizar a incorporação de uma companhia para fim tão útil e tão
vantajoso para esta corte.
Somente lembraríamos a necessidade de exigirem-se para a construção do edifício
condições de grandeza e capacidade proporcional à população desta corte. O Teatro lírico que
possuímos presentemente não pode durar muito; e, se outro não o substituir, breve teremos de
nos vermos reduzidos ao acanhado salão de S. Pedro de Alcântara.
Assim como neste, podia o governo aproveitar em muitos outros objetos de serviço
público o espírito de empresa e associação que tão rapidamente se desenvolveu no nosso
comércio.
Porque, em vez de esperar que os interesses individuais especulem sobre a utilidade
pública, não promove ele mesmo a criação das companhias que entender convenientes para o
pais?
A limpeza pública, as postas, os correios urbanos, e muitos outros objetos de interesse
vital, exigem essa solicitude da administração.
Uma coisa, por exemplo, de que ainda não vimos o governo se ocupar seriamente é da
carestia progressiva dos gêneros alimentícios, tanto nacionais como estrangeiros. O trigo está
por um preço exorbitante, segundo dizem. O pão diminui, e diminui no século de progresso
em que tudo vai em aumento, em que as menores coisas tomam proporções gigantescas.
Quanto ao pão de rala, célebre em outros tempos, este desapareceu do mercado: pertence hoje
à história.
Os ministros, os grandes, os ricos, não sabem disto; mas o pobre o sente, o pobre que,
no meio de toda essa agitação monetária, de todo esse jogo de capitais avultados, vê as
grandes fortunas crescerem e formarem-se, absorvendo os seus pequenos recursos, e elevando
o preço dos gêneros de primeira necessidade a uma taxa quase fabulosa.
Se os capitais são para o país um poderoso agente de progresso e desenvolvimento,
cumpre-nos não esquecer que em todos os países é na classe pobre que se encontram as
grandes inteligências, as grandes almas e os grandes espíritos.
A Providência parece tê-los lançado no mundo sem recursos para prova-los e fortalecê-
los com essa luta constante da fortuna, na qual, ou morrem sacrificados como mártires, ou se
elevam às sumidades da hierarquia social para comunicarem ao país a atividade do seu
espírito e as forças de sua inteligência.
Tão desprezível, tão digna de compaixão, como parece esta classe aos ricos enfatuados
que rodam no seu cupê, a ela pertence o futuro; nela está a alma, a força, a inteligência, a
esperança do país.
Quereis saber o que são e o que valem esses cresos modernos, ou esses capitais
amontoados, essas somas de dinheiro de que o rico tanto blasona e tanto se desvanece? Uma
matéria brutal, uma alavanca inerte a que um dia algum homem sem fortuna, mas cheio de
ambição e de talento vem dar o impulso de sua atividade, e fazer trabalhar para um grande
fim.
Esta classe, pois, merece do governo alguma atenção; o que hoje é apenas carestia e
vexame, se tornará em alguns anos miséria e penúria. É preciso, ao passo que o país
engrandece, prevenirmos a formação dessa classe de proletários, dessa pobreza, que é a chaga
e ao mesmo tempo a vergonha das sociedades européias. Apliquem-se os nossos espíritos
econômicos a este estudo digno de uma grande inteligência e de um grande povo.
Porque a Europa ainda não conseguiu chegar à solução deste grande problema social,
não é razão para desanimarmos. Somos um país novo; o progresso espantoso da atualidade
deve ter reservado alguma coisa para nós; o mundo velho eleva a indústria a um
desenvolvimento admirável; talvez que os segredos da ciência tenham de nos ser revelados na
marcha da nossa própria sociedade.
O que é verdade é que não devemos deixar de concorrer com as nossas forças para
essa obra filantrópica da extinção da pobreza proletária. E isto, não porque receemos tão cedo
a existência deste cancro social, mas porque semelhante estudo deve-se guiar nos meios de
prevenir os vexames e misérias por que pode passar a classe pobre no nosso país.
Agora é que percebo que este folhetim vai muito grave demais; porém lembro-me
também que não devo distrais as minhas leitoras do seu exame de consciência para a próxima
confissão da quaresma.
Que interessante coisa não deve ser o exame de consciência de uma menina pura e
inocente, quando à noite, entre as alvas cortinas de seu leito, com os olhos fitos numa
imagem, perscruta os refolhos mais profundos de sua alma à cata de um pecadinho que lhe faz
enrubescer as faces cor de...
Arrependi-me! Não digo a cor. Reflitam e adivinhem se quiserem. Tenham ao menos
algum trabalho em lerem, assim como eu tenho em escrever.
Mas, voltando ao nosso exame de consciência, estou certo que, se algum dos anjos que
cercam o trono de Nossa Senhora pudesse descer do céu nesse momento, viria beijar aquele
rostinho adormecido, e dizer-lhe em sonho que os anjos não pecam.
XXIII
Rio, 18 de março
A semana que passou foi a dos aniversários felizes.
Domingo festejaram-se os anos da nossa Princesa, que trocou a bela terra do Brasil
pelo poético céu da Itália.
Quarta-feira teve lugar a solenidade do aniversário da nossa Imperatriz, que deixou as
lindas ribeiras de Nápoles pela majestosa baía do Rio de Janeiro.
Assim, logo após da saudade, veio uma lembrança prazenteira. Se perdermos por
algum tempo uma flor graciosa da nossa coroa imperial, ganhamos para sempre um anjo de
bondade, um exemplo das belas virtudes.
E isto me faz lembrar do quanto somos devedores àquela boa terra de Itália, que nos
confiou com tanto prazer a filha de seus reis, e acolheu com tanto amor a irmã do nosso
monarca.
Sem falar dos artistas que daí nos têm vindo, e das belas noites de teatro que devemos à
sua escola e aos seus gênios musicais, lembremo-nos que é lá, nessa terra clássica das artes e
do belo, que muitos brasileiros se têm ilustrado e adquirido os conhecimentos que atualmente
são aproveitados em bem do país.
Foi ainda no meio dessas ruínas seculares de tantas gerações que passaram, no solo
onde viveu o povo rei, na terra em que nasceu Virgílio, que um poeta brasileiro foi beber as
últimas inspirações do seu poema nacional, como que para imprimir-lhe esse cunho de
grandeza e de sublimidade que o tempo tem deixado na história daquele povo.
Tudo isto deve o Brasil à Itália; porém mais que lhe devesse o pagaria com o amor e a
dedicação que consagra à sua Imperatriz, e da qual ainda quarta-feira deu uma prova bem
solene.
Todo este dia foi votado às graças. De manhã apareceu a lista daqueles cujos serviços
a munificência imperial, julgou dever remunerar. Logo depois vieram as graças daqueles que,
não vendo seus nomes contemplados, motejavam dos outros e especialmente dos ministros. Á
noite tiveram os dilettanti as graças do D. Pascoale, que é de crer fossem engraçadas.
Estive alheio inteiramente a tudo isto; mas uma coisa me deu que pensar seriamente.
Acho o direito de agraciar uma das mais belas instituições da monarquia; compreendo que os
homens possam ser crismados em barões, condes e marqueses; mas há uma coisa a que
decididamente não me ajeito, e é como se poderá fazer um sujeito feio, desengraçado e sem
elegância, um gentil-homem.
Está bem entendido que isto se refere a nenhum dos últimos agraciados, que são
perfeitos cavalheiros, servidores antigos, e que todos mereciam o favor do monarca. É uma
simples hipótese que por ora não tem aplicação, e que o espírito e bom-senso imperial
repelem para não haver ocasião de se parodiar o dito de D. Pedro I a respeito do cavaleiro.
Um sujeito, contando-me ontem os festejos do dia quatorze, disse-me: “Houve graças,
des-graças, e sem-graças. As graças os jornais publicaram; as des-graças sabem os que
ficaram logrados; e as sem-graças foram as daqueles que esperavam uma coisa e tiveram
outra”.
Até que ponto isto é exato não sei; apenas me lembro que já os nossos antigos diziam
que não podia haver graça sem sal; razão esta porque naturalmente se inventaram os
emolumentos, que algumas vezes são bem salgados.
Já é tempo de passar adiante e acabar por hoje com as graças, tanto mais quando já me
saí mal por ter tido o arrojo de dizer que o país devia dar justiça de graça.
Como me escapou semelhante blasfêmia? Pois num tempo em que tudo se compra e se
vende, em que até se trafica com o pensamento e com a consciência, é possível fazer-se coisa
alguma gratuita?
Tudo tem um preço. A honra, a probidade, o dever, a reputação essas coisas sagradas
que Deus confiou ao coração humano, têm a sua cotação. Porque a justiça sairá da regra geral,
e deixará de receber a sua espórtula?
Já se vê que foi um absurdo em caí. Não há coisa mais razoável e mais sábia, como
disse um correspondente do Jornal do Comércio, do que obrigar-se as partes a pagarem aos
magistrados e oficiais de justiça, visto que estes empregados são instituídos para utilidade
pública.
Ora, os ministros de estado, os presidentes de província, os militares, todos os
funcionários públicos enfim são criados para utilidade pública; por conseguinte, em vez de
ordenado, dêem-se-lhes custas. O ministro ganhará dois mil réis por cada nomeação,
privilégio, ou graça que conceder; dez tostões por cada aviso ou portaria, etc..
Não vêem como simplifica-se de repente todo este mecanismo administrativo, que a
França e a Prússia – nações ignorantes e atrasadas – tanto têm estudado, e tanto se esforçam
para regularizar? Deixará de haver tesouro, repartição de fazenda e leis de orçamento, e
sistema de impostos, e receita e despesa pública. Tudo isto é burla. Quem precisar do
empregado que o pague; o governo o nomeia, o país o tolera, e nisto já fazem muito.
Quem diria que a ciência administrativa, tão desenvolvida na Europa, tinha de ser
completamente aperfeiçoada por um gênio brasileiro que oculta modestamente o seu nome
com receio de assombrar o mundo?
Que força de dialética, que lógica de aço! Os franceses têm as epices; logo nós
devemos conservar as custas. Pobre genuense! Que eras tu à vista deste portento?
E eu animei-me a tocar na arca santa, no sagrado paládio, no regimento das custas?
Uma obra elaborada pelas sumidades pretorianas pode ser discutida aí por qualquer moço que
ainda não tem, e nem quer ter, o cHarlatanismo necessário para se fazer alguma coisa?
Fechem-se as câmaras; mandem-se os senadores e deputados passear à Europa em
missão especial ou geral; acabe-se de uma vez com a imprensa e com a tribuna. Não percamos
o tempo, que é precioso. O ministro fará as leis, e, tendo-as feito, não haverá que retrucar,
magister dixit.
Santo regime! Quando te veremos em inteiro vigor, para felicidade do país, para
sossego e a paz do governo? Então a marcha da administração se aperfeiçoará. Os ministros
serão os únicos que terão o direito de saber alguma coisa; e, depois deles, só os que estiverem
dispostos a defende-los cegamente, sem critério e sem consciência.
Os outros, aqueles que julgam do seu dever expor francamente uma opinião contrária,
mas que nada tem de ofensiva ao caráter do ministro, aqueles que entendem que a censura leal
é a prova mais evidente da sinceridade de uma aliança de idéias e de princípios, estes serão
classificados no rol dos ignorantes, porque não receberam de algum gênio engarrafado o
placet da ciência e do estudo.
Assim, pois, o dito por não dito. O regimento das custas é uma obra perfeita, tão
perfeita, que, sendo publicado a cinco deste mês, no dia oito, isto é, três dias depois, o
presidente da relação se viu obrigado a oficiar três vezes ao ministro da justiça sobre a
inteligência de algumas de suas disposições.
A razão disto não é a que muita gente supõe, não é o sentido dúbio e confuso das
palavras empregadas. Qual! os homens são imperfeitos; e por isso não podem compreender
toda a sabedoria daquele novo mandamento do monte Sinai, daquela lei das Doze Tábuas.
Querem ver outra perfeição do regimento de custas, que é muito sublime para ser
compreendida por inteligência como a nossa?
Diz o art.169 que o porteiro dos auditórios perceberá meio por cento sobre o valor dos
objetos arrematados. Suponhamos que o mínimo das arrematações civis e comerciais feitas
nesta corte seja dois mil contos, o que é um cálculo muito restrito. Temos uma percentagem
de dez contos de réis, que por três porteiros dá só por si um ordenado três vezes superior ao
que tem qualquer juiz municipal, qualquer deputado, qualquer juiz de direito ou oficial de
secretaria.
Pode-se duvidar da sabedoria de semelhante disposição?
É possível ainda negar a conveniência, a necessidade das custas, que produzem tantas
vantagens práticas?
Lede o Art. 61, e comparai-o com o Art. 167. O presidente da relação tem por cada
sentença que transitar pela chancelaria o mesmo que seu porteiro, isto é 300 rs. Como é belo
para a justiça e para o prestígio da magistratura este exemplo de igualdade, que manda que o
chanceler e o seu porteiro – os dois elos quase extremos da hierarquia judiciária – se toquem e
estendam a mão para receber seis ou oito moedas de cobre!
Que emblemas, que símbolos inventados pelos povos da antiguidade valem semelhante
lição? Que invenção moderna pode substituir a harmonia e a uniformidade desta sublime
instituição das custas, que alguns vindouros querem que se reforme?
A princípio, quando comecei a escrever sobre o regimento tinha a idéia de que se
deviam acabar com as custas, os emolumentos, e dar-lhes o caráter de uma contribuição
percebida, como qualquer imposto, pela repartição competente. Assim, sobre as causas se
cobraria, em vez de dízimos de chancelaria, uma percentagem que se julgasse acertada, e que
a parte pagaria no ato de levantar o dinheiro da execução; e com isto remunerasse o Estado os
seus empregados de justiça.
Hoje já nem me lembro de tal coisa. Era uma extravagância, que me passou, apenas
pude apreciar as inúmeras belezas que formigam no regimento das causas.
E por hoje basta de tanta maçada; não achais, meu benévolo leitor? Deixemos em paz a
justiça, que irá tranqüilamente fazendo seu negociozinho aos duzentos e trezentos réis, e
vamos falar de outras coisas, tristes e alegres, por que esta é a ordem do mundo.
Já deveis saber que o Sr. Conselheiro Eusébio de Queirós foi acometido, na noite de
segunda-feira, de uma moléstia grave, da qual felizmente já se acha melhor. S. Ex.ª tem sido
visitado por seus numerosos amigos, que deram ainda mais uma prova de grande
consideração que votam ao distinto estadista brasileiro.
Desejamos de coração o pronto restabelecimento de S. Ex.ª tanto mais quando também
acabamos de curtir à beira de um leito de dor todos os transes cruéis de sofrimento e de
angústia.
São páginas negras do livro da nossa vida, que devemos voltar com paciência e
resignação, para chegar às folhas brancas e douradas, às imagens risonhas de dias mais felizes
e mais tranqüilos. A dor, disse Lamartine, remoça o homem, dá-lhe nova força, novo vigor.
Tu fais l’homme, ô douleur!
Parece que, depois de uma crise de sofrimento, a alma se apura, adquire um tato
finíssimo, capaz de sentir as mais delicadas impressões, uma sensibilidade esquisita para os
menores prazeres.
A enfermidade tem um quer que seja das viagens.
É uma viagem um pouco perigosa, muito incômoda, e que, em lugar de ser feita em um
vapor ou em um vagão, o é sobre um leito ou sobre uma enxerga. Às vezes naufraga-se, salta-
se com explosão do vapor; mas, se chegamos ao porto, se saltamos em terra, tudo nos parece
novo, tudo nos sorri, tudo é cor-de-rosa e perfumado. A água é uma bebida do céu, o pão é um
manjar dos deuses, o dia é uma festa de reis, o sono é uma voluptuosidade do paraíso,
sibaritismo do sultão.
Talvez seja por esta semelhança que se dá a coincidência de cair no mesmo tempo a
quadra das moléstias e das viagens. Tudo parte, tudo vai mar em fora, ver novos climas,
correr terras, para ter na volta o que contar.
Queixam-se por aí que tudo vai para a exposição. De Paris, menos os nossos produtos.
Quem sabe? Talvez que a par da Estrela do Sul apareçam na exposição muitos outros
produtos brasileiros, muitas raridades dignas de menção.
Os novos viajantes vão achar em Paris uma verdadeira epidemia bailante. Tem havido
para mais de 500 bailes. A febre é geral: dança-se nos palácios, nas embaixadas, nos hotéis,
nas casas, nos salões e nos prados, sobre a relva e sobre os tapetes.
Além da dança, a única coisa em que os franceses presentemente se ocupam é na
conjugação do verbo fiar e seus compostos.
Assim, os homens fiam seu dinheiro por subscrição; as mulheres desfiam pano para os
feridos da Criméia; o imperador confia nos seus generais e no seu exército; a gente timorata
desconfia do feliz êxito da guerra; Bosquet enfia balas pelo corpo dos russos; Canrobert
porfia no seu projeto de arrasar Sebastopol.
A guerra pode dizer-se que está reduzida a fios. Onde passou o fio da espada, aplicam-
se fios de linho. Os homens incumbiram-se do primeiro; as mulheres do segundo. Que fases
não tem tomado essa luta de gigantes?!
Antes de vos deixarmos, temos ainda um triste dever a cumprir. Celebrou-se a missa
por alma do Deputado Aprígio, e, apesar de tantos amigos que o finado tinha nesta corte,
aquele ato foi muito pouco concorrido.
Não é fácil explicar-se semelhante fato, pois que o aviso para a missa foi feito pela
folha oficial, que a anunciou nas suas colunas como um holocausto do governo. É verdade
que, não tendo os membros do gabinete feito um convite em seu nome, talvez entendessem os
amigos do falecido que se tratava de uma solenidade muito particular, a que só deviam assistir
as sumidades; e por isso guardaram a conveniente reserva, e não compareceram.
Não há remédio, pois, senão reunirem-se os amigos do Dr. Aprígio, e pagarem à sua
memória o devido tributo de saudade e de estima, fazendo dizer uma missa solene, ou um
ofício sem caráter político, sem reserva de pessoas; a este ato estamos certos que assistirá um
numeroso concurso das pessoas mais distintas desta corte.
Acabamos por onde começamos, pelas graças. Temos algumas pequenas observações a
fazer sobre os estilos oficiais em voga neste ponto.
Assim, nos parece mais regular desenglobar os despachos e cometer a cada ministério a
referenda das graças concedidas por serviços feitos nas suas respectivas repartições, ou em
objetos que lhe são anexos.
Conviria igualmente criar-se uma ordem destinada exclusivamente a premiar o
merecimento literário, assim como existe uma para os serviços militares. Chame-se esta
ordem a Estrela do Sul, à imitação do Cruzeiro, ou a Plêiade Imperial; demos-lhe enfim um
nome que tenha alguma significação, e acabemos com o costume de premiar a inteligência
com a mesma graça com que se remuneram serviços de uma ordem muito diversa.
Esta idéia, realizada com a sabedoria e a prudência que é de esperar, traria grandes
vantagens, porque excitaria os estímulos, criaria, uma emulação salutar, e daria assim
incremento ao nosso progresso literário. Apreciamos todos os serviços feitos ao país, qualquer
que seja a sua natureza; estimamos que todos sejam galardoados; mas desejamos que se dê ao
talento, à inteligência, às ciências e às artes essa nobreza e essa distinção, que lhes cabe por
todos os títulos.
E deixai-me dizer-vos uma coisa. Esta idéia me sorri ainda mais, porque o grão-mestre
da ordem merecia sê-lo, ainda quando não tivesse uma coroa. Quanto aos dignitários, que
seriam sete, no caso de adotar-se o título de Plêiade Imperial, deviam ser escolhidos de entre
os que temos de mais distinto e de mais ilustre.
Para dar à condecoração maior merecimento e para tirar-se dela grande utilidade, podia
fazer-se com que formasse uma verdadeira ordem, trabalhando em sessões regulares como o
Instituto de França, e sob a presidência de Sua Majestade como grão-mestre, ou do dignitário
mais antigo. Quem sabe daqui a alguns anos que importância não teria semelhante instituição,
e que glória não daria ela ao nosso país?
Agora é que me lembro! Estou a perder o meu tempo! Não há dúvida que esta minha
idéia é bela, é digna de um monarca erudito, e de um povo que tanto se distingue pela sua
aptidão literária; mas não foi lembrada por um homem que já tenha alguns cabelos brancos e
uma dose de importância e de morgue; portanto não presta decididamente.
Dizem que aos vinte anos se pode pensar assim por si, nem ter uma boa idéia.
Entendem que a inteligência vigorosa e ardente dos moços deve estar ao serviço dos velhos,
os quais brilham como essas flores parasitas que sugam das árvores novas e robustas a seiva
com que alimentam a sua vegetação raquítica.
De que servem esses lampejos brilhantes, essas centelhas de fogo, que passam às vezes
pelas almas jovens e iluminam de repente um mundo de idéias, ou desenham um horizonte
vasto e imenso? É preciso que estas faíscas do talento sofram o bafo frio e enregelado dos
velhos? Por que esta chama da inteligência, em vez de expandir-se livremente, há de ser
condenada a aquecer a alma gasta e consumida de um corpo vergado pelos anos?
Não foi deus que estabeleceu esta tutela despótica e sem limites que a idade quer
exercer. Não: Deus mandou respeitar os velhos, como as mulheres, porque são fracos; Deus
mandou consultar aos velhos, como aos livros, porque neles se encerra a história da
experiência; porém Deus deu à mocidade a força, a esperança, a ambição, confiou dela o
trabalho, a ação, o progresso, e apontou-lhe o futuro.
Ninguém venera mais a velhice do que eu; ninguém sabe melhor compreender o que há
de respeitável numa grande inteligência que alimenta ainda um corpo gasto pelos anos; mas o
que acho irrisório é que pense que toda a ruga é um poço de ciência, que todo o cabelo branco
é um título de capacidade.
Felizmente o tempo dos desenganos aí vai chegando; o círculo de ferro já se quebrou; e
o país já começa a aborrecer-se dessas patentes de capacidade e de ilustração dadas num salão
de baile, ou numa antecâmara de ministro.
XXIV
Rio,25 de março
Hoje é o dia do aniversário da nossa constituição, e ontem o Teatro Lírico representou
um baile intitulado o Remorso. Se foi uma simples coincidência, ou um epigrama, não sei; o
tempo não está para graças, e por isso não se pode com facilidade aventurar conjeturas.
Já houve um tempo em que, de fato, o dia de hoje devia ter sido o dia do remorso para
o governo, para as autoridades, para o menor empregado de polícia; todos haviam perjurado,
todos, por sede de mando ou por um espírito exagerado de reforma e progresso, haviam
desrespeitado a constituição.
Felizmente passou esta quadra de tristes conseqüências para o país, e chegamos a uma
época de adormecimento das paixões políticas, de inércia dos partidos, de calma nos espíritos,
que, bem dirigida, pode ser aproveitada em grandes melhoramentos de que o país necessita,
em excelentes reformas da legislação e de muitos outros ramos de administração.
Mal dirigida, porém, a situação atual há de caminhar rapidamente para uma crise tanto
mais forte, tanto mais violenta, quanto foi profundo o letargo dos espíritos e a prostração
proveniente da exacerbação das paixões.
Há uma febre surda que começa por abater as forças dos homens e acaba pelo delírio.
Talvez que os observadores, os homens experientes e amestrados nessas oscilações políticas e
sociais já tenham pressentido os primeiros pródromos, os sintomas característicos de uma
próxima crise.
Entretanto parece-me que se enganam. Ainda é tempo de arrepiar caminho; e a situação
atual, que começou tão rica de esperança, tão cheia de futuro, ainda tem muitos elementos que
não foram sacrificados, e que, bem desenvolvidos, podem servir de programa às circunstância
atuais.
Reabilite-se esta bela idéia da conciliação dos espíritos, evite-se que seja substituída
por uma conciliação de interesses individuais; aceitem-se todas as adesões, mas não se
suplique nem uma; chamem-se todas as inteligências a concorrer para o bem do país, mas não
se exija uma transigência imoral que não pode ser duradoura; respeitem-se todas as opiniões e
deixe-se a oposição inteiramente livre, porque se for leal, auxiliará o governo, se for
licenciosa, se desacreditará por si mesma.
Por hoje tenho feito os meus cumprimentos à constituição, dando-lhe os bons anos, e
desejando-lhe muitos séculos de vida para gosto dos seus amigos e de toda a sua família;
posso, portanto, dar uma vista de olhos pelo que me vai por casa.
Data veniam ! Permiti, mestre, que ainda uma vez profane o sagrado santuário da
justiça, cuja guarda vos foi confiada. Estou convertido às custas; mas, como neófito ignorante,
tenho algumas dúvidas a respeito.
Que fizeram as pobres irmandades e corporações de mão=morta para pagar ao juiz de
capelas e resíduos um juro de 6% de um capital que não receberam? E isto sem terem
demandas nem pleitos, e somente porque o Estado julgou conveniente inspecionar as suas
contas.
Ai! perdão! não me lembrava que tinha sido erro de imprensa. Santa invenção de
Gutemberg! Não há nada que te pague! Com que facilidade fazes do branco preto! A pena diz
o que quer: a imprensa é quem paga as custas.
Depois da descoberta do erro de imprensa feita pelo P. do Jornal do Comércio,
dezenove dias depois da publicação do regimento, está me parecendo melhor é abandonar a
questão das custas, porque do contrário a nossa imprensa fica desacreditada para o estrangeiro
O meio por cento do porteiro? Erro de imprensa. Os seis por cento do juiz de capelas?
Erro de imprensa. Os dez contos que há de lucrar o porteiro de órfãos? Erro de imprensa. A
ridicularia de estabelecerem custas de 200 rs. Até para Presidente da Relação, em vez de uma
gratificação anual? Erro de imprensa.
Já estou com medo que não descubram que o título do regimento e a referenda do
ministro são erros de imprensa.
Que papel ficamos nós fazendo, Sr. Conselheiro Ferraz, tendo gasto o nosso tempo a
atacar apenas uns tipos trocados, e umas letras sem sentido, sem idéias!
Mas, que coisa célebre! Parece que os três jornais da corte se apostaram para errar
justamente no meio por cento! E o erro foi tão imperceptível (era de cerca de dez contos
anuais) que só depois de um escrupuloso exame de dezenove dias é que se deu com ele!
O próprio Sr. P., no seu artigo de quinta-feira, defendeu o erro de imprensa, iludido
como nós; e só ontem é que fez a importante descoberta. Maldita imprensa! Eis a razão por
que se prefere uma compilação do direito civil manuscrito, tendo-se uma em letra redonda,
cujo único defeito é estar pronta.
A propósito, tomo a liberdade de pedir ao Sr. P. que assista ao curso de leitura
repentina do Sr. Castilho.
Como deve saber, o curso foi aberto quinta-feira por um discurso de uma extrema
simplicidade, e que talvez por esta mesma razão satisfez o auditório. Estavam presentes o Sr.
Ministro do Império, o Sr. Marquês de Monte Alegre, Visconde de Itaboraí e Sapucaí, o
Conselho de Instrução Pública, e muitas pessoas de distinção.
O Sr. Ministro dos Estrangeiros chegou tarde, porque foi de gôndola, segundo
observaram os mirones.
Se o método do Sr. Castilho produzir vantagens reais, como esperamos, não acontecerá
ao Sr. P. a mesma coisa que na quinta-feira, em que com as pressas de responder, mostrou não
ter lido o meu artigo de domingo.
Onde viu o correspondente que me queixei? Onde foi que lhe pedi tempo para expor as
minhas opiniões? Quando viu que me calei e fugi da questão?
A isto só uma resposta. Se o Sr. P. tem o costume de estudar, de trabalhar e escrever
para a imprensa, quando um motivo grave de aflição exige todos os seus cuidados e preocupa
inteiramente o seu espírito, eu o respeito como um homem forte, que não dá peso às misérias
da vida humana. Entretanto considero-me muito feliz por fazer-lhe o contraste.
Quem se queixa é o correspondente, que, depois de ter comungado com as defesas
impróprias de certos campeões do regimento de custas, estranha que o motejo tenha
substituído a argumentação, e pede não trilhemos a senda dos declamadores políticos.
Como nos responderam? Não quero reviver uma coisa de que felizmente parece-nos
que os defensores do regimento estão arrependidos; e, já que o Sr. P. quer voltar à
argumentação, pedimos-lhe que discuta, mas que não veja nas censuras feitas ao regimento
uma contradição com o tempo que levou a elaborar-se. Isto pode ser uma circunstância
agravante contra o regimento, e nunca uma contradição.
Com o artigo do correspondente, publicado no Jornal de ontem, lemos igualmente a
notícia de ter professado um frade no Convento do Carmo desta corte.
Não sabemos quem autorizou semelhante ato, sobre o qual o nosso governo desde
muito tempo guarda uma prudente reserva. Pretende-se acaso reabilitar as ordens monásticas,
o claustro, e faze-lo concorrer para o bem público auxiliando a instrução pública, os
estabelecimentos de caridade, a catequese, ou mesmo a vigilância das prisões, como se usa em
Leão?
É tarde; os últimos restos de algumas ordens religiosas que tivemos não têm regra nem
disciplina, nem instrução que outrora adquiriam; e apenas vegetam entre quatro paredes,
esperando o dia de sua completa extinção, que não há de estar muito remoto.
A regeneração do claustro no nosso país é uma obra impossível; alguns homens ilustres
que hoje existem, como Monte Alverne, o bispo de Crisópolis e outros, são representantes
ainda daqueles tempos de prestígio e de ilustração, em que a solidão do claustro era iluminada
pelo fogo do céu.
Presentemente, se um ou outro moço se distingue, o que é raro, nada à clausura, e sim à
sua inteligência, ao seu estudo, aos seus esforços pessoais; o frade antigo ainda pode existir,
como uma velha ruína: mas a ordem, o espírito de união, o vínculo sagrado, desapareceu, e
com ele, a existência dos conventos.
Se a regeneração, pois, não é possível, que explicação tem esse ato de profissão? Não
descubro nenhuma; não me ocorre um motivo que possa atualmente justificar a inabilitação de
um homem para os cargos públicos; a condenação de uma atividade e de um elemento de
trabalho a que o país tem direito.
Para mim o frade é um tipo história, que passou como o antigo sacerdote, como os
filósofos, os escolásticos, os eremitas, os cavaleiros, os maçons, e que, tendo feito o seu
tempo, pertencem às lendas e às crônicas.
Não sabem quanto me pesa ter de falar contra os frades justamente na quaresma; mas
não há outro remédio; e, como eu não falo contra os homens, e sim contra o burel ou a
estamenha os cobre, a consciência não me acusa de pecado.
Outra coisa seria, se me desse na cabeça subir o morro de Santa Teresa, ou mesmo ir
até o recolhimento da Ajuda, onde talvez me revelassem bem lindos mistérios!
Se o Sr. Ministro da Justiça quer fazer uma obra meritória, é dar a estes
estabelecimentos um fim caritativo e de beneficência pública. O que lucra o país com ter uma
casa para algumas doceiras presentearem as pessoas de amizade?
Ao contrário, se estes estabelecimentos pudessem criar mulheres como as Irmãs de
Caridade, é fácil prever as vantagens que deles nos resultariam.
Demos um salto; e suponhamos que é chegado o domingo de Ramos, tempo em que já
se pode tratar de coisas profanas. O Cassino não nos pretende dar bailes este ano?
Num tempo de tantas graças, acho que esta é demais; porém, se tal é a sua tenção,
avise-nos, porque, com a febre de companhias que há, num momento se organizará uma
empresa para bailes.
Vai criar-se uma de seguro geral. Não há nada melhor. Muito sujeitinho pretende
segurar-se contra o casamento: os maridos vão segurar a vida da mulher na esperança de
perder. De um finório sei eu que, acendendo uma vela a Deus e outra a Satanás, se propõe a
segurar a oposição e o ministério; a dúvida é quanto à primeira, se aparecerá seriamente; e
quanto ao segundo, se a companhia o aceitar.
Eu, se fosse a companhia, aceitava com algumas cláusulas e reservas, como, por
exemplo, repelindo todos os erros... mesmo os de imprensa.
Não sabeis qual o verdadeiro erro de imprensa? Foi o de censurar o tal regimento de
custas; foi o de discutir uma obra tão augusta; foi o de se ter animado a defender-se de
insultos pagos policialmente.
Basta! nem mais uma palavra. Só agora é que me recordo que o ministério tem estado
de dor de cabeça. O Sr. Marquês de Paraná, desde segunda-feira, sofre de uma moléstia de
fígado, da qual costuma ser atacado. Felizmente tivemos a satisfação de saber que S. Exª
acha-se sensivelmente melhorado.
No meio de todos os contratempos que tendem a embaraçar a marcha regular da justiça
no nosso país, apraz-me ver como os magistrados novos vão dando alguns exemplos de
integridade e firmeza.
Não há muito tempo o Dr. José Caetano pronunciou um homem que se dizia ter fortes
proteções. Agora o Sr. Dr. Izidro condena uma pessoa que ocupa uma posição distinta na
sociedade pelos seus grandes haveres e pela sua influência.
Não entramos no mérito da sentença, nem podemos apreciar os seus fundamentos; mas
o que não se pode negar é que o juiz que lavrou uma condenação desta ordem, deu uma prova
incontestável de inteireza e de retidão. Quando mesmo a sentença não fosse justa, estamos
certos que a intenção que a ditou foi da mais vigorosa eqüidade.
Agora, meu amável leitor, até 1º de abril.
Entendeis?
XXV
Rio, 1º de abril
Descobriu-se afinal! A questão das custas é uma querelle d’allemand! O regimento foi
o pretexto, e a causa verdadeira não se pode conhecer.
Quem sabe! Talvez os que censuram o regimento sejam empregados da Secretaria da
Justiça, ou eminentes jurisconsultos incumbidos da fatura de códigos civis!
Os defensores, estes, são homens independentes, que nunca solicitaram coisa alguma
do Ministério da Justiça, que podem ter aceito uma comissão científica, sem por isso haverem
transigido com a sua consciência, ou desistido da mais ampla liberdade de pensamento.
O que, porém, há de notável nisto é que a censura não procura disfarçar-se com a capa
do anônimo, ao passo que o elogio tem pejo, tem vergonha de aparecer em público com o seu
verdadeiro nome. Como é bela e louvável essa modéstia dos grandes talentos!
Mas qual será essa verdadeira causa que não se pode conhecer? Será alguma das
anedotas que se contam por aí a respeito da maneira por que vai a nossa repartição da justiça?
Será um desses muitos mistérios de secretaria que já começam a divulgar-se, e a tomar as
proporções de um grande escândalo?
Não estamos agora para investigar este ponto; mas, se os defensores do regimento
desejam muito, estamos prontos a tentar com eles uma pesquisa, que talvez se torne
interessante. A exemplo de Xavier de Maistre, de A. Karr e de Garrett, escreveremos a nossa
viagem Autour du Palais de Justice.
Esta obra há de ser um monumento de glória para muita gente, um livro precioso,
digno de ser estudado pelos pretendentes, profissão esta que ainda não tem um roteiro certo
pelo qual se guiem aqueles que a seguem!
Mas, por falar nisto, ia-me esquecendo dizer o quanto me tem incomodado ver a causa
do Sr. Ministro da Justiça – uma tão bela causa – comprometida sem dó por um dos P.P. do
ministério, pelo P. do Jornal do Comércio.
Depois de ter falado (a propósito de custas) em fivelas de calção, em oráculos de Tênis
e esfinges do Egito, nas histórias da vovó, nos iconoclastas, no Ministro Roland, e na abóbada
celeste, acabou por chamar a justiça barata!
E então! Que me diz a isto o Sr. Ministro da Justiça? Vê como se desrespeita a S. Ex.ª,
como se ridiculariza uma instituição de tanta gravidade sobre a nossa magistratura, e sobre
todos os empregados dessa repartição?
Se a justiça é barata, segundo diz o P. do Jornal do Comércio, a conseqüência é fácil
de tirar; razão por que o autor da lembrança tem o cuidado de declarar que é inteiramente
alheio a essas coisas judiciárias e forenses.
Mais um título, por conseguinte, para bem tratar de questões desta natureza!
Quanto aos negócios das custas, já não tenho nada que dizer em semelhante discussão,
visto que os defensores do regimento estão fazendo sabatina e destruindo mutuamente as
objeções e argumentos que cada um apresenta.
O P. do Jornal do Comércio elogia as custas, a ciência de vovô, a razão dos séculos
passados, as coisas velhas e carunchosas; o P. do Correio Mercantil aceita a idéia civilizadora
da revogadora das custas, e condena o sistema emolumentário como usança obsoleta dos
nossos antepassados. Um diz que temos justiça barata e gratuita, o outro que urge fazer os
tribunais acessíveis ao rico e o pobre.
Assim, pois, lá se avenham os dois, que nós lavamos as mãos neste negócio: podem
discutir livremente, podem brigar à sua vontade. Só peço a Deus, para bem do Sr. Ministro da
Justiça, que não se realize o antigo anexim: Brigam as comadres, descobrem-se as verdades.
Com efeito, a questão está o mais interessante possível. As estrelinhas do Jornal do
Comércio, depois de uma luminosa definição de imposto, declaram magistralmente que as
custas não podem ser classificadas como uma contribuição daquela natureza. Ontem apareceu
o P. da mesma folha, dizendo “que as custas se devem considerar como um imposto, que
afinal recai integralmente sobre o demandista de má fé para punir a sua avidez”.
Parece mesmo uma coisa de propósito e caso pensado; um diz uma coisa, o outro
contraria imediatamente, e, o que é mais engraçado, contradiz-se a si mesmo. Assim o Sr. P.
do Jornal, que “pouco sabe de estilo forense e de fórmulas sacramentais”, declara
dogmaticamente que não se devem prescrever essas palavras que ele nem compreende.
Mas o correspondente tem medo que, “condenando aquelas fórmulas como inúteis, se
sacrifique uma garantia de precedência (não entendo) para com os direitos da parte”; e como o
Sr. P. tem medo, está acabado, não se deve fazer a reforma.
Na verdade, que fortes garantias não existem nesses aranzéis dos termos antigos,
nesses erros gramaticais que formam uma gíria, a que infelizmente se chama estilo forense!
Quando no começo de uma escritura se diz: “Ano do nascimento de Nosso Senhor
Jesus Cristo de mil oitocentos e cinqüenta e cinco, aos tantos de tal mês, etc.”, a parte tem
mais garantia do que se escrevesse simplesmente a data do ano e do mês.
Se o advogado no libelo se esquecer de traçar meia dúzia de letras maiúsculas, que
traduzidas formam um palavreado de rábula, a causa está perdida, as leis da justiça ficam
desrespeitadas!
E, portanto, conservamos essas frases ocas, que nada exprimem, que só servem de
fazer da linguagem da justiça uma espécie de algaravia, uma gíria incompreensível que ainda
mais auxilia a dependência em que vivem as partes a respeito dos homens de justiça.
Olhe, Sr. P., quem o obriga a falar dessas coisas comete uma impiedade, porque está
comprometendo a sua reputação de anônimo, que já ia tão bom caminho com aqueles seus
primeiros devaneios jurídicos, com aquelas glosas feitas à reforma judiciária.
Dizem que os motes vinham da Secretaria da Justiça, mas eu não creio em semelhante
aleive. São coisas que espalham adrede os invejosos, que têm ciúme do seu gênio, da ciência
infusa, capaz de tratar profundamente de questões de que pouco entende.
E o erro de imprensa? Não é interessante essa omissão em que falam todos os
defensores do regimento, mas que nenhum deles sabe qual ela é? Não é tão regular que o
regimento esteja em execução, que os porteiros vão recebendo o meio por cento, e que o
ministro ativo e laborioso nem sequer se dê ao trabalho de expedir uma circular retificando a
omissão do regulamento?
Todos os dias aparece um novo achado. O primeiro foi o erro de imprensa, depois os
erros de cópia. Pobres compositores, pobres copistas, que carregais com as culpas de vossos
ilustres colegas! quando digo vossos ilustres colegas, refiro-me aos que compõem códigos, e
aos que copiam regulamentos e reformas dos livros franceses e das revistas de legislação.
Semelhante lembrança do erro de imprensa foi desgraçada; todos viram nisto uma
confissão dos defeitos e das irregularidades do regimento de custas – confissão desairosa –
porque nem ao menos tiveram a coragem de a fazer como uma declaração formal, como uma
satisfação às justas e comedidas censuras que apareceram.
Mas entenderam que ficava mal aos mestres, aos decanos da ciência, aos novos
Papinianos, dizem claramente que tinham errado, sobretudo quando discutiam com uns
ignorantes, que não sabem coisa alguma, e que sem a menor modéstia ousam falar em
jurisprudência, quando homens como o Sr. P., sacudindo a sua cabeleira empoada, deixam
cair o polme sucoso da ciência.
Esta última frase é augusta; servimo-nos dela, mas não sabemos o que quer dizer. Não
faz mal: seguimos o exemplo do correspondente do Jornal do Comércio.
Concluindo, porém, este artigo, não podemos deixar de felicitar-mo-nos por ver que
alguns dos mais distintos e extremos defensores do regimento de custas confirmam com o seu
talento e os seus conhecimentos a necessidade de acabar com as custas que percebem os
juízes, e de livrar a magistratura desse cancro, embora se conserve o regimento antigo para os
ofícios de justiça.
Nunca desejamos reformas precipitadas. Quando atacamos em geral a instituição das
custas, foi sempre na idéia de que, reconhecida ela como defeituosa, devia ser pouco a pouco
substituída por um sistema mais perfeito.
Por isso, se o Sr. Ministro da Justiça pretende realizar semelhante melhoramento,
poderá contar da nossa parte com aquela mesma pequena e pouco valiosa adesão que temos
mostrado sempre que S. Ex.ª tem iniciado uma medida útil para a nossa legislação.
A pena que sem interesse nem considerações defendeu a sua reforma judiciária, e
censurou o seu regimento de custas, desejaria poder fazer alguma coisa para a adoção de uma
idéia cujo grande alcance todos compreendem.
Isto, porém, não quer dizer que voltamos da nossa maneira de pensar a respeito do
regimento. Não: temos a este respeito uma opinião firme; mas, desde que atingimos o fim
desejado, guarde cada um a sua convicção e unamo-nos para fazer um serviço à justiça do
nosso país.
Quando a questão que presentemente se agita nos levar à extinção das custas que
percebem os juízes, todos nós teremos motivos de nos felicitarmos.
Se a razão está da parte dos defensores do regimento, que sustentam a necessidade de
uma autorização do corpo legislativo, cabe-nos a nós a iniciativa de uma idéia útil e
conveniente.
Se, ao contrário, nós temos a justiça pelo nosso lado, os defensores do regimento terão
prestado um relevante serviço à causa pública, dando o exemplo de uma discussão leal,
aceitando a verdade de onde quer que ela venha, e auxiliando com as suas luzes uma reforma
de grande interesse.
Agora, meu amável leitor, podemos conversar mais familiarmente sobre outras coisas
da semana.
Esqueci que hoje é o 1.º de abril. O que vos tenho a dizer é muito sério. Pretendia
escrever-vos um folhetim apropriado ao dia; mas neste tempo de custas tudo custa, e por isso
resignai-vos à sensaboria da quadra.
Demais, os poissons do 1.º de abril começaram este ano tão cedo, que já perderam a
graça.
O tudo e nada do Jornal do Comércio, que escreve sempre a segunda parte do seu
artigo e nunca chega à primeira, descobriu que o regimento de custas era uma pulha.
No Maranhão os visionários espalharam que o Dr. Olímpio Machado fora demitido da
presidência justamente no momento em que aquele digno funcionário merece toda a confiança
do governo pela sua excelente administração.
Nesta corte o Teatro Lírico também nos pregou um formidável logro com o seu baile
alcunhado de Remorso. Se alguma coisa há nesta farsa que se pareça com o título, é o
sentimento do autor por tê-la composto, e o da diretoria por se ter animado a fazer representar
uma coisa tão grotesca.
O outro logro foi a récita de quinta-feira, que se transferiu a pretexto de moléstia. Se
esse foi o verdadeiro motivo, não sei; a diretoria soberana não dá satisfações ao público; mas
diziam por aí que naquele dia, por volta do meio-dia, ainda não se tinha vendido um só bilhete
de geral. Naturalmente os apaixonados da Zecchini estavam todos aflitos com a moléstia da
terza-donna.
Ainda uma vez insistimos para que se acabe com esse monopólio lírico, tão prejudicial
aos interesses do público. Não sei que razão, ou antes que escrúpulo pode fazer continuar
semelhante estado, e recear uma concorrência cujas vantagens são geralmente reconhecidas.
Temos uma nova empresa lírica, que sem nenhuma subvenção se propõe dar
espetáculos no Teatro São Pedro de Alcântara. O governo devia não só autorizar semelhante
empresa, como facilitar-lhe todos os meios de levar a efeito o seu projeto; porque assim
conseguimos ter excelentes representações, melhores artistas, e faríamos dentro de alguns
anos uma grande economia, reconhecendo que podem existir empresas líricas não
subvencionadas.
Outra grande vantagem desta empresa é a edificação de um grande teatro lírico com as
proporções necessárias para facilitar a entrada a todas as classes da sociedade; para isto pede a
empresa durante dez anos uma subvenção anual de 120 contos, ficando o teatro pertencendo
ao governo no fim do prazo da duração da companhia, que é de quinze anos.
Ora, se atendermos a que o governo teria de despender mais de mil contos na
edificação de um teatro daquelas proporções, se considerarmos na economia da subvenção, é
evidente que muito ganhamos em auxiliar a nova empresa, e fazer com que ela realize o seu
plano o mais breve possível.
E basta de idéias profanas; estamos na Semana Santa, no tempo da Sagrada Paixão, dos
santos e poéticos mistérios da nossa religião; aí vêm os dias de prece e recolhimento, e as
romarias pelas igrejas.
Este ano a Rua do Ouvidor deve estar brilhante. Além das belas casas que por este
tempo costumam apresentar-se com todo o luzimento, teremos um novo estabelecimento
preparado com o maior luxo e bom gosto.
A Notre-Dame de Paris abre amanhã o seu magnífico salão. A respeito de elegância e
riqueza é delicadamente o primeiro estabelecimento deste gênero que existe na corte.
Que felicidade para os maridos e pais de família! Hão de pagar caro os vestidos e as
modas; porém ao menos terão o consolo de reverem-se em magníficos espelhos, de pisarem
macios tapetes, e recostarem-se em cômodas poltronas.
O que é verdade é que de amanhã em diante as mocinhas do tom terão um lindo
palácio de fadas, e os homens casados um verdadeiro purgatório em vida.
Íamos fechar este artigo, quando nos contaram que a relação desta corte tinha
absolvido ao procurador de causas Antônio Manuel Cordeiro. No lugar competente
examinaremos este processo, e apreciaremos a justiça dessa absolvição, dada a favor de um
homem sobre o qual pesava tão grave acusação.
XXVI
Rio, 15 de abril
Nestor Roqueplan, o espirituoso escritor que tão exatamente descreveu o tipo do
larmoyeur, esqueceu-se de classificar uma das espécies mais interessantes deste gênero de
bípede implume: o larmoyeur jornalista.
É verdade que esta importante descoberta estava reservada para nossos dias.
Conheciam-se diversas classes de larmoyeurs, como políticos, os parlamentares, os
pretendentes, os conquistadores; mas o larmoyeur jornalista só apareceu pela primeira vez no
sábado da aleluia, no dia de Judas.
Apareceu declarando que estava triste, muito triste, e queixando-se, e pedindo que o
consolassem! Que pena! Que pena!...
Lastimava-se por causa do dia? Não creio; é mais natural que se ressentisse de alguma
injustiça grave, que estivesse possuído de algum despeito violento.
Que pena! Consolai-o, leitores, porque do contrário ficareis privados do vosso
divertimento das quintas, da graça e do espírito de tão belos artigos. Napoleão quer abdicar;
César recusa o império; Talma retira-se do teatro! Oh! desgraça!
Acho escusado dizer-vos a folha a que devemos essa tão curiosa invenção do
larmoyeur, assim como o nome do seu abençoado autor.
Qual o jornal desta corte que se distingue pela brilhante iniciativa que tem tomado nos
melhoramentos da imprensa?
O Jornal do Comércio.
O que é que exprimem as lágrimas com a sua eloqüência sublime, com a sua expressão
irresistível? Tudo e nada.
Só vos peço, por bem de todos, que não deixeis de consolar o nosso larmoyeur, pelas
razões que já vos disse. Escrevi algumas correspondências elogiando o seu estilo, o chiste dos
seus artigos, e sobretudo que não vos esqueçam os lindos pós-escritos, dignos de rivalizar
com as cenas de uma comédia espanhola!
É preciso também chamá-lo algumas vezes, a propósito, de sábio. De gênio, de
portento. Gato ruivo do que usa, disso cuida, diz um provérbio nosso.
Demais, o homem é amigo de todo o mundo. Conselheiros de Estado, marqueses,
viscondes, ministros, pertencem ao círculo dos íntimos. “Meu amigo Bellegarde, meu amigo
Pedreira, meus amigos marqueses”, são frases que lhe v~em a todo o momento ao bico da
pena.
E não cuidem que é por vangloriar-se; não, é simples força de amizade, é o poder da
simpatia. O nosso escritor é o Pollux de todos os Castores, é o fidus Achates da humanidade
ministerial.
Ora, um homem que se acha nesta posição, e que não é justamente apreciado, tem
direito a ficar triste, a mostrar-se despeitado e a esmagar os outros com a sua ironia
tranchante, chamando-os de sábios e de gênios; isto é: atirando-se em corpo e alma, em
palavras e obras, sobre a cabeça daqueles que ainda o não reconheceram como tal!
E, a falar a verdade, o público tem sido injusto e o Jornal do Comércio ingrato. Já lá
vão não sei quantos artigos, e nem sequer ainda fizeram sair a mais pequena publicação a
pedido elogiando o luzeiro da imprensa, que tudo sabe e nada ignora, o amigo de todo o
mundo.
Voltando, porém, ao meu autor, a aparição do Larmoyeur jornalista faz-me lembrar
uma página sua que li há tempos, e que recomendo aos meus leitores.
Na opinião do espirituoso escritor, a arte de chorar a propósito é a primeira das artes,
assim como as lágrimas são a única língua universal que existe na terra, e que provavelmente
foi falada antes da Torre de Babel.
Quereis a prova?
Abri a boca e chorai... todo o mundo entenderá que tendes fome.
Chorai e bebei as lágrimas; e logo se conhecerá que estais morrendo de sede.
Levai a mão ao coração e chorai olhando uma mulher; e ela compreenderá que a amais.
Erguei ao céu os olhos rasos de prantos, juntai as mãos; e ninguém deixará de entender
a prece muda de uma alma infeliz.
Voltai as algibeiras e deixai correr algumas lágrimas; e logo se verá que não tendes
dinheiro nem crédito.
Uma lágrima isolada, que pende da pálpebra, e corre lentamente por um rosto pálido e
triste, exprime uma dor silenciosa e concentrada; é como uma gota de fel que verte o coração.
Duas lágrimas límpidas que empanam às vezes o brilho dos olhos, e se desfilam
docemente pelas faces, dizem uma saudade, uma suave recordação.
O pranto e os soluços são a expressão do desespero, assim como uns olhos rasos de
lágrimas e um sorriso revelam o momento da suprema felicidade deste mundo.
E entretanto, apesar do poder irresistível desta linguagem universal, todo o mundo trata
de rir, e ninguém sabe chorar. As lágrimas vão caindo em desuso; e apenas nas despedidas e
nos enterros ainda se usa, bem que raras vezes, deste meio persuasivo.
O Sr. Ministro do Império na sua reforma da instrução pública esqueceu-se de criar
uma aula especial desta arte, ou desta língua, como quiserem. Num tempo em que o ensino se
multiplica, em que há escolas para tudo, é imperdoável que não exista uma escola onde se
aprenda a chorar a propósito.
O choro, segundo o nosso autor, é um flux à deux robinets; é um jorro que inunda num
instante, penetra pelos poros da vossa sensibilidade, e vos faz transbordas o coração.
É preciso, portanto, que cada homem tenha à sua disposição uma fonte lacrimal
abundante, e sempre pronta a soltar o repuxo. É preciso também que saiba usar dela conforme
as regras darte.
Assim, às vezes é mais conveniente uma dessas lágrimas silenciosas de que já vos
falei; outras, é preferível uma chuvinha, uma garoa; e alguns casos haverá que seja necessário
uma inundação, um verdadeiro dilúvio lacrimal, do qual nem o mesmo Noé escaparia.
Só os mestres podem ensinar esses segredos darte, e adestrar os seus discípulos nestes
rasgos, neste tropos, nestas figuras da eloqüência lacrimal; por conseguinte: uma escola do
choro é indispensável.
Aberta a aula, os primeiros que se matriculam são os namorados de ambos os sexos;
em segundo lugar os pretendentes, os candidatos à eleição; depois os oradores, os ministros e
os jornalistas que aspiram à popularidade.
Finalmente se formará uma sociedade importante, uma ordem notável, uma corporação
distinta, cujos membros terão o título de – chevaliers de la larme à l’oeil.
Não esqueçam, porém, uma coisa, e é que não sou eu que digo essas coisas; se não lhes
agradam, queixem-se de Nestor Roqueplan, que foi quem as inventou. Eu o que fiz, apenas
como bom tradutor, foi presumir alguns pensamentos que decerto lhe escaparam, e que ele
naturalmente teria, se escrevesse nesta cidade, e não em Paris.
Isto posto, estou às vossas disposições; podemos conversar sobre o que nos parecer,
sobre o D. Pascoal no Teatro Lírico, sobre as notícias do Paraguai, sobre o frio e sobre os
divertimentos da semana.
Fostes sexta-feira à noite a Botafogo?
Vistes como estava brilhante a linda praia, com a sua bela iluminação, com as suas
alegres serenatas, e com os bandos de passeadores que circulavam em frente do palácio?
Havia uma expansão de contentamento e de júbilo em todas estas demonstrações com
que era acolhida e festejada a vida de Sua Majestade. O arrabalde aristocrático se desvanecia
por ser durante algum tempo a residência da corte.
Uma banda de música desfilava ao longo da praia, soltando às brisas da noite e aos
ecos harmoniosos daquela baía alguns temas favoritos do Trovador. Os grupos de mocinhas
travessas e risonhas se encontravam e se confundiam um momento numa nuvem de beijos e
abraços.
Aquelas areias felizes eram pisadas por muito pezinho mimoso, habituado a roçar com
o seu sapatinho de cetim os macios tapetes e o lustroso soalho dos ricos salões; e por isso, se
observásseis bem, havíeis de ver entre os passeadores perdidos na multidão muito Romeu,
muito Ossian, muito Goethe improvisado.
As auras da noite, que agitavam aqueles cabelos aveludados, que roçavam por aqueles
lábios maliciosos, que passavam carregados de ruído, de músicas, de perfumes, trouxeram-me
no meio dos rumores da festa ao lugar onde estavam uma palavras soltas que pareciam a
continuação de uma conversa interrompida.
A primeira voz que me chegou ao ouvido era doce e melodiosa, era de moça, e pelo
timbre devia ser de uma boquinha bonita.
-Está tudo muito lindo, dizia a voz; mas acho que falta uma coisa.
-O quê? perguntou o cavalheiro, que naturalmente dava o braço, não à voz, mas à dona
da voz.
-Devia haver um fogo de artifício.
-E o há com efeito.
-Mas onde? Não vejo.
-Nem o pode ver, porque está nos seus olhos.
-Engraçado!...
A brisa escasseou neste momento, e não me trouxe o fim da conversa; mas eu fiquei
compreendendo a razão por que hoje não se usam como antigamente em todas as festas, as
girândolas, as rodas de fogo, etc. foram substituídas por outra espécie de fogo de artifício.
O que se usava outrora tinha o inconveniente de queimar a gente; mas esta queimadura
curava-se aí com qualquer remédio de boitica. O que está em moda presentemente é pior,
porque em vez de queimar, abrasa, e dizem que por muito tempo.
O que eu sei é que é esta uma arte capaz de fazer concorrência do larmoyeur, e digna
de sério estudo, não só para se poder bem usar dela, como para se evitarem os enganos e as
ciladas em que pode cair quem não tiver perfeito conhecimento desses segredos da
coquetterie.
Os homens que falam de tudo e nada dizem, têm aí um belo tema para dissertarem;
podem mostrar a influência útil que deve ter aquele estudo sobre desenvolvimento da nossa
arte dramática, tão desprezada e tão desmerecida entre nós.
E isto vem a propósito, agora que a nova empresa do Ginásio Dramático se organizou,
e promete fazer alguma coisa a bem do nosso teatro.
Assistimos, quinta-feira à primeira representação da nova companhia no Teatro de São
Francisco: foi à cena um pequeno drama de Scribe, e a comédia do Dr. Macedo.
Embora fosse um primeiro ensaio, contudo deu-nos as melhores esperanças; a
representação correu bem em geral, e em algumas ocasiões excelentes.
O que resta, pois, é que os esforços do Sr. Emílio Doux sejam animados, que a sua
empresa alcance a proteção do que carece para poder prestar no futuro alguns serviços.
Cumpre que as pessoas que se acham em uma posição elevada dêem o exemplo de uma
proteção generosa à nossa arte dramática. Se elas a encorajarem com a sua presença, se a
guiarem com os seus conselhos, estou certo que em pouco tempo a pequena empresa que hoje
estréia se tornará um teatro interessante, no qual se poderão ouvir alguns dramas originais e
passar-se uma noite bem agradável.
Que vale entre tantas despesas de luxo a mesquinha assinatura de um pequeno teatro?
Que importa que se sacrifique uma ou duas noites para dar um impulso à nossa arte dramática,
e ganhar para o futuro um passatempo útil e agradável?
No momento em que se soubesse que algumas das nossas notabilidades, citadas pelo
seu gosto e pelo seu amor à arte,eram assinantes do Ginásio, que as senhoras distintas prontas
a aplaudir um belo lance dramático, não haveria mais pena que julgasse se desmerecia
escrevendo para o teatro.
Assim, pois a essas pessoas compete dar o exemplo; quanto aos autores, estes estão
prontos, e um dos mais distintos já tomou a iniciativa dando uma composição sua para a
abertura do teatro.
Não é este o lugar próprio para uma crítica literária, e por isso nos abstemos de falar da
espirituosa comédia do Dr. Macedo, a qual foi muito bem acolhida.
Tivemos esta semana boas notícias do Paraguai. A perspectiva de guerra desapareceu;
e assim era de esperar, visto que aquela República não era de força para lutar conosco. Tem, é
verdade, as suas Três-bocas, mas cada um dos nossos vapores tem muito maior número de
bocas; e não são bocas d’água, ou de rio, são bocas de fogo.
Nas altas regiões da política trata-se da vaga de senador pela província da Bahia.
Não faltam candidatos; mas há um que é recomendado pelo seu merecimento e pelos
seus serviços, lembrado pelos homens mais ilustrados, e que será muito bem aceito pela
província; falamos do Sr. Wanderley.
XXVII
Rio, 22 de abril
O Botafogo continua a ser o rendez-vous da sociedade elegante desta corte.
As tardes não têm sido tão lindas como deviam; mas felizmente aí vem o mês de maio,
o mês das flores, da poesia, a verdadeira primavera da nossa terra.
Começa a estação dos bailes e dos saraus. O Campestre dá a sua primeira partida por
estes dias; o Cassino nos promete uma bela noite antes do fim do mês.
Teremos naturalmente, como nos anos passados, uma febre dançante. Ninguém
escapará à epidemia; e até alguns malévolos espelham que o próprio ministério fará uma
contradança.
Venha, pois, o mês gentil, a estação das flores, com as suas belas tardes, com as suas
lindas manhãs de cerração, com os seus dias puros e frescos!
Quanta coisa bonita que se prepara este tempo! Que belas noites, que alegres
divertimentos nos promete ainda o arrabalde do Botafogo!
Uma regata, um baile popular, e um fogo de artifício suspenso sobre as águas límpidas
da baía! Que magnífico espetáculo!
A minha pena, coitadinha, já está tremendo de susto, só com a idéia de que há de ser
obrigada a descrever todas essas maravilhas! Que se arranje como puder; é coisa que bem
pouco me embaraça.
Além destes encantadores divertimentos, ainda teremos outros que por ora estão em
segredo, e que se revelarão a seu tempo; assim como muita novidade política que se está
guardando para a abertura das câmaras.
Que novidades são estas? Não sei; correm tantas versões, que é impossível acertar com
a verdadeira. Cada um descreve a situação à sua maneira, forma conjeturas, e acaba fazendo
uma pergunta que está no pensamento de todos:
-Haverá oposição?
Entretanto, na minha fraca opinião, a situação é a mais bela e a mais esperançosa que é
possível. Navegamos num mar de rosas ao sopro das brisas bonançosas; faz um tempo
soberbo: tudo sorri, tudo brilha.
E, se não, lancem os olhos sobre a atualidade e estudem com atenção os prognósticos
favoráveis que vão aparecendo.
Com a entrada da boa estação, as folhas de uma árvore que diziam carunchosas, as
folhas da Constituição, reverdecem. Hércules reveste-se da túnica de Nesso, e dispõe-se a
recomeçar os sete grandes trabalhos. A nossa marinha se enriquece consideravelmente com
uma nau de pedra, invento que não possuem os países mais civilizados da Europa.
Finalmente, o exército teve uma promoção!
Não há, pois, que duvidar. A época é toda de esperanças; e, se por aí se vêem esvoaçar
urubus, não é porque o ministro esteja doente. Qual! é porque estamos tratando agora da
limpeza das praias.
Há também uns sujeitinhos que espalham que o ministério já não regula. Que contra-
senso! O ministério dos regulamentos! Bem se vê que são coisas a que não se deve dar o
menor crédito.
Assim, pois, creio que se pode responder negativamente à pergunta que fazem todos os
políticos. Não teremos oposição. Tratar-se-á de uma outra questão jurídica e administrativa;
far-se-ão algumas interpelações, e nada mais.
Quatro meses depressa se passam; e os ministros, que gostam tanto do gabinete, mas
que têm uma ojeriza particular às câmaras, tomarão um meio termo, e decidirão nos salões
com os deputados as questões mais importantes da administração.
O salão é um terreno neutro entre a câmara e o gabinete. No gabinete só entram os
íntimos, aqueles que estão no segredo do dono da casa e que gozam da sua familiaridade. A
câmara é o aposento onde ordinariamente têm lugar os arrufos e as zanguinhas do marido
com a mulher, onde de ralha e se passam algumas horas de mau humor.
No salão, porém, recebem-se todas as visitas de cerimônia ou de intimidade; dão-se
bailes, reuniões dançantes e concertos. Conversa-se ao som da música; conferencia-se a dois
no meio de muita gente, de maneira que nem se fala em segredo, nem em público.
Se a palestra vai bem, procura-se alguma chaise-longue num canto da sala, e, a pretexto
de tomar sorvete ou gelados, faz-se uma transação, efetua-se um tratado de aliança.
Se a conversa toma mau caminho, aí aparece uma quadrilha que se tem de dançar, uma
senhora a que se devem fazer as honras, um terceiro que chega à propósito; e acaba-se a
conferência, e livra-se o ministro do dilema em que se achava, do comprometimento de
responder sim ou não.
Um ministério prudente deve por conseguinte procurar sempre o salão antes de entrar
na câmara, e isto até mesmo por uma analogia com o que se passa nas relações domésticas e
na vida familiar.
Um namorado imprudente que, prescindindo das etiquetas, quisesse logo do primeiro
dia penetrar na câmara de alguma beleza fácil que requestasse, corria seu perigo de ver-se
obrigado a saltar pela janela, a quebrar uma perna, e talvez a ser agarrado pela polícia.
Ao contrário, um conquistador de tática, que primeiro se faz apresentar no salão, que
concilia as boas graças da mamãe, e se inicia nos negócios do papai, que se faz necessário, daí
a pouco passa à varanda, ao gabinete, e por fim conquista a câmara.
Bem entendido, conquista a câmara com o auxílio da igreja; assim como o ministério
deve conquistá-la com o auxílio da justiça.
Está, pois, definido o programa da nossa situação política. O ministério deve abrir os
seus salões, dar um baile as noites, e tratar de fazer com que haja bons espetáculos líricos, a
fim de os teatros serem concorridos.
Realizando este programa, não deve ter medo dos deputados, porque ninguém deixará
as belas salas iluminadas e as elegantes rainhas da moda com todas as fascinações, para se ir
meter numa câmara velha e escura, que até já foi cadeia!
Além do sossego de espírito, ganharão os ministros uma popularidade espantosa entre
as moças, entre os leões da cidade, e até entre os músicos e os sorveteiros, que abençoarão
este diário consumo de notas e de sorvetes.
Nenhum folhetinista poderá deixar de fazer o seu elogio quando no domingo passar em
resenha os magníficos saraus que tiverem lugar durante a semana, e acharem nas suas
recordações as mais belas idéias e as mais bonitas inspirações para um artigo poético.
As moças com este trato contínuo fascinarão de todo os seus adoradores; e o número
dos casamentos se multiplicará consideravelmente, trazendo um sensível aumento de
população, devido unicamente à política do ministério.
Deixemos por um momento esta perspectiva brilhante, para olhar um quadro triste da
semana, uma cena de luto em que devemos tomar parte.
Faleceu na noite de segunda-feira o Sr. Conselheiro João Duarte Lisboa Serra. Ainda
na flor da idade, sucumbiu a uma enfermidade cruel, depois de um longo sofrimento de cerca
de três meses.
Reunia às virtudes cívicas e à inteligência e integridade de vida pública os mais nobres
sentimentos do homem; era um zeloso empregado, um cidadão honesto, um amigo leal, e um
excelente pai de família.
Não há muito tempo, numa carta que nos dirigiu, ofereceu-nos uma poesia feita nas
suas noites de insônia e de padecimento. Mal sabíamos nós, ao ler estes versos tão simples e
tão repassados de mágoa e de sentimento, que ouvíamos o canto do cisne.
Aqui os copio com o trecho da carta. Os seus amigos, aqueles que o estimavam,
ouvirão ainda uma vez as suas palavras.
“Adeus!
“Bem quisera terminar mandando-lhe alguma flor mimosa colhida como por encanto
no meio das vastas e monótonas Campinas deste meu prosaico retiro. Mas apenas deparo com
os ramos fúnebres do cipreste.
...............................................................................................................................
“Leia, pois, no meio das esperanças que lhe sorriem, esses tristes versos do desengano;
e receba no grito do moribundo uma lembrança indelével do amigo.
“É a minha oração da manhã.
Domine, exaudi orationem meam!
Morrer tão moço ainda! Quando apenas
Começava a pagar à pátria amada
Um escasso tributo, que devia
A seus doces extremos!
Morrer tendo no peito tanta vida,
Tanta idéia na mente, tanto sonho,
Tanto afã de servi-la, caminhando
Ao futuro com ela!...
Se ao menos de meus filhos eu pudesse,
Educados por mim, legar-lhe o esforço...
Mas ah! que os deixo tenras florezinhas
À mercê dos tufões.
Vencerão das paixões o insano embate?
Sucumbirão na luta do egoísmo?
As crenças, a virtude, o sentimento,
Quem lhes há de inspirar?
Não te peço, meu Deus, mesquinhos gozos
Deste mundo ilusório; mas suplico
Tempo de vida, quanto baste apenas
Para educar meus filhos.
É curto o prazo; dai-me embora ao fel
Dos sofrimentos; sorverei contente.
Lúcida a mente, macerai-me as carnes
Estortegai meu corpo.
E após, tranqüilo, volverei ao seio
Da eternidade. A fímbria do teu manto,
Face em terra, beijando, o meu destino
Ouvirei de teus lábios.
Andaraí, 1855.”.
Voltemos a página, e passemos dos dramas verdadeiros e reais aos dramas escritos, às
cenas do teatro.
O Ginásio deu a sua terceira representação, na qual estreou uma espirituosa menina,
que tem um belo talento e as melhores disposições para a cena. Em algumas ocasiões
especialmente representou com tanta inteligência, com tanta graça, que arrancou aplausos
gerais.
A companhia vai perfeitamente, tanto quanto é possível aos modestos recursos de que
dispõe. É conhecida geralmente a falta que temos de bons atores; e por isso não há remédio
senão ir criando novos. O Ginásio por ora é apenas uma escola; mas uma escola que promete
bons artistas.
A sala é pequena; entretanto a circunspeção que reina sempre nos espectadores, a
lotação exata das cadeiras e gerais, a regularidade da representação, fazem que se passe uma
noite agradável, e muito mais divertida do que no Teatro de São Pedro de Alcântara.
Se as minhas amáveis leitoras duvidam, vão examinar com os seus próprios olhos se
falto a verdade. Vão assistir a uma noite de espetáculo, e ver brincar na cena com toda a
naturalidade aquela interessante e maliciosa menina de que lhes falei.
As minhas leitoras se recusariam por acaso a fazer este benefício à arte, dando tom a
este pequeno teatrinho, que tanto precisa de auxílio e proteção?
Estou certo que não; e está me parecendo que esta noite enxergarei pelos camarotes
muito rostinho gentil, muito olhar curioso procurando ver se eu os enganei e faltei à verdade.
XXVIII
Rio, 28 de abril
Que linda noite, meu Deus!
Fazia um luar magnífico. As estrelas brilhavam no azul do céu. As brisas apenas
murmurejavam entre as sombras das árvores.
Era uma noite de abril, uma dessas belas noites da nossa terra, noites de poesia e de
romance.
Estávamos no Passeio Público. Éramos dois, e conversávamos sobre tanta coisa,
fazíamos tantos sonhos acordados, tantos poemas de imaginação, que nem sei dizer.
Há muita gente que prefere o dia à noite. Eu, ao contrário, sou da seita dos
peripatéticos, e sigo neste ponto a opinião de Meri.
Não há coisa mais bela e mais poética neste mundo do que sejam as estrelas. O sol é
um astro egoísta, incômodo, e que demais a mais faz-se de espião e quer intrometer-se em
tudo.
O sol causa dores de cabeça, queima as faces as mais mimosas, estraga as mais belas
cores, obriga a gente a não sair de casa, rouba-nos o prazer de passar no campo, e gera um
aluvião de insetos e mosquitos capaz de morder a todo gênero humano.
Decididamente prefiro a noite com as suas estrelas, com o silêncio de suas horas
mortas, e as suas sombras pálidas e melancólicas.
É sempre de noite que temos as nossas melhores idéias; e quando se trata de tomar uma
resolução importante, ninguém deixa de dormir sobre o caso.
Quanto à poesia, nem falemos. Se quereis sentir, se desejais ter inspirações, passeai de
noite ao relento, conversando com as estrelas. Ficareis poeta por força.
O mesmo me aconteceu nessa noite de que vos falei. Conversávamos sobre música,
sobre a representação dos Puritanos, sobre o teatro, e de repente senti em mim umas faíscas
do fogo sagrado.
Lembrava-me da Charton, e parecia-me ouvir dessas belas volatas que brincam nos
seus lábios, que se elevam gradualmente até confundir-se em ondas de harmonias, que
morrem a pouco e pouco, e vão perder-se num sorriso ou num tênue suspiro que lhe parte o
seio.
Muitas vezes faltavam-nos as imagens. Seria necessário recorrer a todas as artes,
materializar o som, colorir a voz, dar corpo à música, para descrever todas as belezas desse
canto inspirado.
Assim há umas notas que chamejam, irradiam como chispas brilhantes lançadas no ar;
há outras que caem docemente como gota de orvalho da manhã. Umas são brilhantes que
desferem raios de luz; outras são flores que exalam perfumes à noite.
Muitas sorriem, brincam com os lábios, aninham-se nas covinhas da boca, fazem mil
travessuras, furtam um beijo – e fogem. Algumas suspiram, tremem, vacilam como a lágrima
que se desfia pelas faces, palpitam como um seio oprimido, e por fim vem expirar suavemente
dentro d’alma.
Às vezes dir-se-ia que o beija-flor se aninha no cálice de uma rosa; outras que bate as
suas asas douradas e se lança no espaço, colorindo-se aos raios do sol.
E todos esses arabescos e fantasias brilhantes que vos traça a imaginação, todas essas
flores mimosas, esses raios de luz e esses lindos coloridos, não valem o drama cheio de
emoções que se passa em vossa alma aos sons daquela voz harmoniosa.
Há muito tempo não tem o nosso teatro uma noite como a dos Puritanos; a
representação correu perfeitamente, e todos os papéis foram mais ou menos bem
desempenhados.
Dufrene, o novo tenor, apesar da pouca extensão de sua voz, agradou. É um excelente
artista, e canta com muito estilo e muita expressão. Estou certo que, quando estivermos
habituados como seu canto, o ouviremos com muito mais prazer do que nas primeiras noites.
Bouché foi perfeitamente no seu pequeno papel. A sua bela voz produziu o melhor
efeito no magnífico dueto do segundo ato.
A Charton excedeu-se. Graciosa nas expansões infantis de um amor feliz, sublime no
desespero, natural nos desvarios da paixão, foi artista desde o começo ao fim. Havia naquele
dia o quer que seja que a animava, que a excitava a obscurecer os seus triunfos passados.
No dia antecedente já tínhamos ouvido a Charton; mas despida de todo este prestigio
do teatro, de toda esta fascinação das luzes e da cena. Nem por isso a achamos menos
brilhante.
Foi isto domingo na festa de São Francisco. A igreja estava armada com toda a
simplicidade. Apenas algumas grinaldas de rosas se destacavam pelas alvas paredes e caiam
do teto em festões.
Uma meia obscuridade, empalidecida pelos raios dos círios, realçava o aspecto grave e
simples do templo, e dava-lhe uma expressão de recolhimento e de santidade, que não têm
ordinariamente as nossas igrejas em dias de festa.
As litanias sagradas e os sons do órgão se confundiam um momento; depois o silêncio
se restabelecia, e uma voz harmoniosa erguia ao céu uma prece traduzida nalguma bela
melodia que se casava perfeitamente com as palavras do ritual.
Cantou a Casaloni, o Bouché, o Gentil, o Arnaud, e finalmente a Charton.
Receávamos uma desilusão; pensávamos que, fora do teatro, o seu canto não tivesse o
mesmo poder. Mas o verdadeiro artista tem n’alma o fogo sagrado, a centelha divina, que, no
instante em que se anima, dá brilho aos seus olhos e expressão aos seus gestos.
Um concurso numeroso enchia a igreja e assistia com satisfação a esta solenidade
religiosa de uma das ordens mais importantes desta corte.
Este ano muitos melhoramentos se introduziram, devidos ao zelo de um dos
definidores, o Sr. Miranda. Além da simplicidade com que ele fez ornar a igreja, admitiu o
costume europeu, e mandou colocar na capela-mor elegantes assentos para as senhoras.
Tudo preparado com muita singeleza e bom gosto, de maneira que as senhoras podem
assistir às solenidades, sem estarem expostas aos empurrões da multidão que às vezes se
apinha na igreja.
O hospital da ordem teve também um grande melhoramento com o serviço da
iluminação a gás que já se acha estabelecido, graças à generosidade de um dos definidores, o
Dr. Isidro Borges Monteiro.
Estava em prática que o definidor incumbido do hospital carregava com a despesa da
exposição anual que era costume fazer-se. Entendeu o Dr. Isidro que devia acabar com este
precedente, que, além de não trazer utilidade alguma para a ordem, era excessivamente
incômodo aos doentes. Nesta idéia dotou o hospital com a iluminação a gás, que monta a
perto de dois contos de réis, e acabou com as exposições anuais.
Não foi, portanto, unicamente uma generosidade, mas um benefício real e muito
proveitoso que o Dr. Isidro fez à ordem. O hospital pode ser visitado em qualquer dia pelas
pessoas que solicitarem este favor; e estas poderão bem julgar do estado vantajoso em que se
acha este estabelecimento.
Foi ainda por esforços destes dois membros da ordem que se acabou com o uso das
mesas lautas e dos banquetes que se costumavam oferecer aos convidados depois da festa,
fazendo assim da casa de Deus uma espécie de café ou de restaurante.
Neste ponto do meu artigo vi-me obrigado, pela primeira vez, a passar uma repreensão
muito séria à minha pena, que desejava escrever uma dissertação sobre o culto da igreja.
Não houve remédio senão lembrar-lhe os desvios em que muitas vezes caem certas
penas que escrevem sobre coisas de que não têm perfeito conhecimento.
Assim há nesta corte um periódico, de que nem sei o nome que se julgou habilitado a
dirigir uma insinuação pérfida a um dos nossos mais distintos diplomatas, o Sr. Dr. José
Maria do Amaral.
Responderíamos a este artigo, se não estivéssemos convencidos que o único nome do
Sr. Amaral contém a maior defesa e o maior elogio que se possa fazer do seu caráter honesto a
toda prova. Além de que, pessoa mais habilitada já mostrou todas as falsidades em que caiu o
autor daquele escrito, o qual nem tem a coragem de sua opinião.
Batido com as suas próprias palavras, carregando com a responsabilidade de uma
acusação grave feita contra um alto funcionário público, devia ou aceitar a discussão que lhe
ofereciam, ou distratar-se do que havia dito.Não o fazendo, classificou muito claramente a
natureza dessa insinuação.
Depois de lembrar este exemplo à minha pena, lembrei-lhe o que já lhe tinha
acontecido a respeito do tudo e nada.
Lembrei-lhe que numa das revistas passadas tinha-me comprometido horrivelmente e
feito cometer uma injustiça clamorosa contra um dos mais notáveis escritores do Brasil.
E tudo isso produzido por uma vírgula travessa que saiu do seu lugar e foi-se
intrometer onde aonde não era chamada.
Eis o caso em duas palavras: Numa das revistas passadas escrevi eu com a melhor boa-
fé e sem malícia o seguinte:
“Os homens que falam de tudo e nada, dizem têm aí um belo tema para dissertarem,
etc.”
Agora, passando os olhos o meu artigo, fiquei pasmo: em lugar do que eu tinha escrito
havia uma blasfêmia deste teor:
“Os homens que falam de tudo e nada dizem, têm aí um belo tema para dissertarem,
etc.”
E por isso vem o homem citando as tais malditas palavras: “Os homens que falam de
tudo e nada dizem!”
Eu que sou o primeiro a reconhecer (como ponto de fé, como dogma) a graça esquisita,
a fina elegância, o bom gosto, o espírito delicado do sublime escritor do Jornal do Comércio,
podia cair naquele contra-senso e avançar que ele fala de tudo e nada diz?
Fala de tudo!... Que insinuação pérfida! Como podia eu dizer semelhante blasfêmia, se
ele só fala de si e dos seus amigos?
E nada diz!... Outra falsidade. Não só diz, mas rediz, repete três e quatro vezes a
mesma coisa. Queixa-se sempre de ser obrigado a escrever aquilo de que todos o desobrigam.
Só quem não tiver lido... Que disparate! Pois alguém pode deixar de ter lido o Tudo e
nada? Não é possível! Depois da Quaresma, da Páscoa e das confissões, vem o tempo das
penitências.
Já vêem os meus leitores que nunca foi minha intenção escrever aquele absurdo. A
minha pena, que tem a balda dos calemburgos, fez, sem que eu o sentisse, uma transposição
de vírgula, e arranjou-me assim este grave comprometimento.
O homem, porém, tomou o negócio ao sério; e, portanto, estou perdido. Que será de
mim a lutar com uma pena que escreve com tinta simpática, e que por conseguinte tem a
amizade de todo o mundo?
E por onde foi começar? Pelas minhas celebérrimas erratas! Que há de ser de mim? Fui
meter-me no orçamento, eu que não estou habituado a somar o dinheiro da nação e a contar os
emolumentos que às vezes se percebem pelos requerimentos das partes. É bem feito que o
mestre me dê o quinau.
Demais, ele tinha justa razão de zangar-se. Eu ofendi-lhe um privilégio exclusivo,
usurpei-lhe um direito sagrado, ataquei um elemento essencial de sua existência, esbulhei-o
de um brevet de perfection, tirei-lhe um monopólio que ele exercia, enfim, errei sem pedir-lhe
vênia e permissão.
E, antes que o ofenda segunda vez, vou mudar de assunto e falar de outras coisas.
O governo contratou finalmente a construção de um teatro com a primeira empresa que
para este fim se organizou. Era tempo, porque o Provisório começa de novo a revoltar-se
contra a permanência.
Na segunda-feira alguns barrotes do soalho entenderam que, estando passados os três
anos de existência, tinham todo o direito de apodrecerem e partiram-se. E assim o fizeram,
dando ao governo e à empresa um grande exemplo de exatidão e lealdade no cumprimento
dos contratos.
A polícia, que assistiu ao fato, registrou-o, e, como o soalho estava no seu direito,
assentou que seria uma violência inaudita o contrariá-lo.
Vejam que respeito se vota entre nós à lei dos contratos! Que boa-fé preside às
convenções! O Teatro Provisório pode cair em cima das nossas cabeças, e ninguém tratará de
prevenir semelhante desastre; porque enfim o edifício só tem obrigação de existir três anos e
estes três anos estão concluídos.
Assim, pois, estamos bem servidos de teatros líricos; um está em projetos, o outro em
ruínas. Veremos quem ganha a aposta: se o novo se construí antes do velho cair.
Quanto a mim, aposto pelo velho, apesar da boa vontade da empresa Pedro II, que se
empenha em realizar a sua idéia o mais breve possível.
Desta vez deixemos em paz a política; os ministros estão muito ocupados com os
relatórios. E um relatório vale por dez regulamentos.
XXIX
Rio, 6 de maio
Ontem, por volta de nove horas do dia, saí de casa com tenção de visitar o novo
estabelecimento óptico do Reis, à Rua do Hospício nº. 71.
Tinham-se feito tantos elogios deste armazém, do seu arranjo e elegância, que assentei
de julga-lo pelos meus próprios olhos.
Não foi, porém, esta a única razão que excitou a minha curiosidade. O que
principalmente me levava àquela casa era um sentimento egoísta, um desejo de míope.
Les yeux sont les fenêtres de l’âme, diz Alfonse Karr num livrinho espirituoso que
dedicou às mulheres
Ora, há muitas almas que têm a felicidade de poderem de manhã cedo abrirem as suas
janelas de par em par, e se debruçarem nelas para espreitarem o que se passa diante do nariz.
Outras mais modestas, como as almas das mocinhas tímidas, abrem a meio as suas
janelas, mas se escondem por detrás das gelosias que formam seus longos cílios de seda; e
assim vêem tudo sem serem vistas
Algumas, porém, são tão felizes, que, quando abrem as suas janelas, vêem-se obrigadas
a descerem imediatamente as empanadas. Estas são as almas dos míopes que usam de óculos
fixos.
Estou, portanto, convencido que as janelas d’alma são em tudo e por tudo semelhantes
às janelas das casas, com a única diferença do arquiteto.
Assim, há olhos de sacada, de peitoril, de persianas, de empanadas, de cortinas, da
mesma maneira que há janelas azuis, pretas, verdes, de forma chinesa ou de estilo gótico.
Essas janelas d’alma são de todo o tamanho.
Umas excedem a medida da Câmara Municipal, e deviam ser multadas porque afetam a
ordem e o sossego público; são os olhos grandes de mulher bonita.
Outras não passam de pequenas frestas ou seteiras, como certos olhos pequeninos e
buliçosos que, quando olham, fazem cócegas dentro do coração.
O que, porém, dava matéria a um estudo muito interessante é o modo por que a alma
costuma chegar à janela.
A alma é mulher, e como tal padece do mal de Eva, da curiosidade; por isso, apenas há
o menor barulho nas ruas, faz o mesmo que qualquer menina janeleira, atira a costura ao lado
e corre à varanda.
Entretanto cada um tem o seu sistema diferente.
As almas francas e leais debruçam-se inteiramente na sacada, sorriem ao amigo que
passa, cumprimentam os conhecidos, e às vezes oferecem a casa a algum dos seus íntimos.
Outras, ao contrário, nunca se reclinam à janela, ficam sempre por detrás da cortina, e
olham o que se passa por uma pequena fresta. Deste número são as almas dos diplomatas, dos
jesuítas e dos ministros de Estado.
Em compensação, há também algumas almas que, quando pilham um espírito
descuidado, saltam pela janela como um estudante vadio, e vão flanar pelas estrelas,
abandonando por um instante o corpo, seu hóspede e companheiro.
Animula vagula, blandula,
Hospescomesque corporis.
As almas andaluzitas, e de algumas mulheres coquettes que eu conheço, têm um
costume mui lindo de chegar à janela.
Escondem-se e começam a brincar com as cortinas, a fazer tantos requebros graciosos,
tantos meneios encantadores, que seduzem e martirizam um homem.
Para exprimir esta travessura d’alma na janela, os espanhóis inventaram uma palavra
mui doce, o verbo ojear, que não tem tradução nas outras línguas.
Ia eu meu caminho, pensando em todas estas coisas, e formando um plano de estudo
sobre as janelas d’alma, quando encontrei um amigo que se prestou a me acompanhar.
Chegamos juntos ao armazém óptico da Rua do Hospício nº. 71. O seu proprietário nos
recebeu com toda a amabilidade e cortesia, e nos mostrou o seu estabelecimento.
Com efeito, não eram exagerados os elogios que me tinham feito dessa casa, onde se
encontra um sortimento completo de instrumentos e objetos de óptica, tudo perfeito e bem
acabado.
Vi um telescópio que me asseguraram se o melhor que existe no Rio de Janeiro
atualmente, e com o auxílio do qual pode um homem uma bela noite ir fazer uma visita aos
planetas e examinar de perto os anéis de Saturno.
Vi muitos outros instrumentos para medir as distâncias, tomar as alturas das
montanhas, estudar as variações da atmosfera, muita coisa enfim que os nossos avós teriam de
certo classificado como bruxaria.
Chegamos finalmente, aos óculos, e entre todos aqueles primores d’arte, no meio de
tantos trabalhos delicados e de tantas invenções admiráveis, causou-me reparo uma velha
luneta de grossos aros de tartaruga, de feitio tão grosseiro que me pareceu ser uma das
primeiras obras do inventor dos óculos.
Estava metida numa caixa de marroquim roxo, sobre o qual se destacavam uns traços
apagados, que me pareciam de letras desconhecidas de alguma língua antiga.
Disse-me o proprietário que esta luneta lhe viera por acaso entre uma coleção de
elegantes pince-nez que lhe chegara ultimamente da Europa; excedia o número da fatura, o
que fazia supor que naturalmente tinha-se confundido com as outras, quando o fabricante as
arrumara na caixa.
Embora não me dê a estudos de antiquário, contudo aprecio esses objetos de outros
tempos, que muitas vezes podem ter um caráter histórico.
Continuei a examinar a luneta, levei-a aos olhos, e por acaso fitei o amigo que me
acompanhava.
Horresco referens!
Li na boca do meu companheiro, em letras encarnadas, estas formais palavras:
-Forte maçante! Está me fazendo perder o tempo!
Agarrei mais que depressa a minha alma que ia lançar-se à janela; e, disfarçando a
minha surpresa, voltei-me para o proprietário.
Através do seu ar amável e cortês, li ainda o seguinte:
-Que extravagância! Com tantos óculos bonitos, ocupar-se com uma luneta velha que
não vale nada!
Enfim, olhei para o caixeiro da casa, e vi imediatamente a tradução de um sorriso
complacente que lhe assomava nos lábios:
-Ah! se o homem me livra deste alcaide! Dizia o sorriso do caixeiro.
Não havia que duvidar. Tinha em meu poder a célebre luneta mágica de que falam os
sábios antigos. Comprei-a por uma bagatela, apesar da insistência do proprietário que não
queria abrir preço a um traste velho e sem valia.
Despedi-me do meu amigo, pedindo que desculpasse a maçada, guardei com todo o
cuidado a minha luneta, e segui o meu caminho.
Precisava refletir.
Como é que aquele vidro mágico que se perdera na antiguidade, e que depois
Frederico Soulié achou nas Memórias do Diabo, o emprestou um instante a Luigi, se achava
nesse momento na minha algibeira?
Por que fatalidade o lorgnon de Delfina Gay viera parar ao Rio de Janeiro, e se achava
naquela casa, desconhecido, ignorado de todos, podendo cair nas mãos do chefe de polícia,
que então se veria obrigado a prender nove décimos da cidade?
Pensem que turbilhão de idéias, que torvelinho de pensamentos, me agitava a mente
exaltada por este fato. Visões fantásticas surgiram de repente começavam a dançar um sabbat
vertiginoso no meu cérebro escandecido.
Via cenas do Roberto do Diabo, de Macbeth, do Paraíso Perdido e da Divina Comédia,
mais bem pintadas do que as de Bragaldi, de Dante, de Milton, e de todos os pintores e poetas
do mundo.
Enfim, decidi-me e fui almoçar.
O almoço – e especialmente o almoço diplomático e parlamentar – é um dos mais
poderosos calmantes que eu conheço. Atua sobre o espírito pelo sistema homeopático.
Se este ano pudesse haver a mais pequena sombra de oposição, aconselharia os
ministros que pusessem em voga nesta estação os almoços parlamentares.
Depois de almoçar, senti-me mais senhor de mim, e pude refletir friamente sobre a
posse da minha luneta.
Lembrei-me que era escritor, e avaliei o alcance imenso que tinha para mim aquele
vidro mágico.
Bastavam-me três ou quatro coups de lorgnon, para escrever uma revista que antes me
roubava bem boas horas de descanso e sossego.
Não precisava mais estar preso a uma banca, a escrever, a riscar, a contar as tábuas do
teto em busca de uma idéia a esgrimir contra a musa rebelde.
O meu folhetim tornava-se um agradável passeio, um doce espaciar, olhando à direita
e à esquerda, medindo a calçada a passos lentos, e rindo-me das coisas engraçadas que me
revelaria a minha luneta.
Assim, pois, não é um artigo ao correr da pena que ides hoje ler, mas um simples
passeio, uma revista ao correr dos olhos
São duas horas.
É a hora da flânerie parlamentar.
Lá vêm braço a braço dois deputados oposicionistas.
Oposicionistas?... Quero dizer queixosos. Oposicionista é uma palavra antediluviana,
cujo sentido se perdeu na confusão das línguas da Torre de Babel, e que naturalmente existiu
no tempo que havia governo.
Oposicionistas ou queixosos eram dois belos tipos a estudar. Isto é, eu pensava que
eram dois: mas, fitando-lhes a minha luneta, vi com pasmo que ambos pensavam não só da
mesma maneira, mas com as mesmas palavras.
-A falar a verdade, diziam os olhos de ambos, é uma asneira comprometer-me com o
ministério, que parece estar seguro a duas amarras. O melhor é esperar!... entretanto vamos a
ver se este sujeitinho, que aqui vai, toma a coisa ao sério, e mete-se na corriola!...
Quase ao mesmo tempo em que terminavam esta idéia luminosa, um deles virou-se
para o outro:
-Então sempre está decidido?
-De pedra e cal.
-Pois conta comigo.
Um sorriso, um aperto de mão, e separaram-se na mais estreita entente cordiale.
Um tomou a direção do Caminho Novo de Botafogo; o outro entrou no Jornal do
Comércio.
Estava ainda moralizando o fato, em pé na porta do Walerstein, quando descobri um
moço político, esperanças da pátria, que vinha mordendo os beiços de uma maneira
desesperada.
-Que lhe terá acontecido? Disse eu comigo.
E assestei-lhe a luneta.
Um interessante monólogo, que tinha lugar no seu espírito, acompanhava as furiosas
mordeduras de beiços.
-Que época! Que época! pensava o homem. Le monde va de mal em pire.Tudo se
profana! Tudo se desmoraliza!
“Não há mais crédito senão no comércio. Em política é vender a dinheiro e não fiar de
ninguém.
“Esses oradores, que prometiam esmagar o ministério, nem se atrevem a tocar na casa
dos marimbondos; antes de começarem os discursos, já adoçaram a boca; já beberam o copo
d’água com açúcar.
“No tempo de Cícero e Demóstenes não se usava o copo d’água com açúcar; por isso
nota-se que o estilo daqueles famosos oradores é forte e vigoroso.
“Os de hoje, ao contrário, levam mel pelos beiços, e por isso têm sempre palavrinhas
doces e açucaradas.
“E tenha um homem princípios numa quadra como esta! Tudo é mentira! Tudo é
falsidade!
“Fronti nulla fides! Não há homem hoje em dia no qual se possa acreditar.
“Até o reverendo consta-nos do Jornal do Comércio já não é uma verdade oficial, uma
confidência de ministros, uma página da pasta....
”Esse pigeon ministerial, mensageiro fiel dos segredos de Estado, tornou-se velho,
mudou de penas, e hoje não passa de um canard, que por aí anda mariscando à beira da praia
os poissons de primeiro de abril!
“Há dias fez o Sr. José Ricardo tomar posse da presidência duas vezes; ontem nomeou
um Chefe de Polícia que infelizmente o Ministro da Justiça não quis confirmar”.
Neste ponto do diálogo o nosso filósofo dobrou a esquina de modo que não pude mais
acompanhar o seu monólogo.
Voltando-me, dei com um representante de província que caiu sob o raio do meu
lorgnon.
Estava ocupado a guardar um livrinho verde; o seu Agenda.
Veio-me a curiosidade de ler uma página desse livro; e com o auxílio da luneta o
consegui.
A primeira folha rezava assim:
LEMBRANÇAS
1.º -Encomendar um fraque de cor no Dagnan, e visitar os ministros.
2.º -Projeto para que se trate seriamente de providenciar a respeito do papel existente
no mercado, a fim de que não se sinta falta com o consumo feito em regulamentos.
3.º -Proposta para que se autorize o governo a confeccionar um regimento de custas
para a Câmara dos Deputados, com o fim de estimular o trabalho e fazer com que se abra a
assembléia no dia marcado.
Pouco depois do representante, passou um folhetinista dando o braço a um personagem
importante.
-Então como é isso? Dizia o personagem; desvaneceu-se a nuvem negra? Não há mais
oposição?
-Não; tudo isto acabou.
-Ora, senhor...
-De que se admira, meu amigo?
-Pois esses homens que gritavam tanto...
-Ouviram a missa do Espírito Santo, meu caro.
-E então?...
-Ficaram inspirados.
-Ah! Intendo, como diz o Gentile.
-Por falar nisto, retrucou o folhetinista, lembra-se que na ocasião da abertura da
assembléia, a música tocava a ária de tenor do 4.º ato do Trovador: Madre infelice, corro a
salvarti!....
-Seria uma alusão?
-Não sei, meu amigo; mas a época é de calembures e trocadilhos..
Enganei-me: é um correio de ministro vestido em grande uniforme.
Depois que os estafetas de correio adotaram a jaqueta de pano com vivos, é justo que o
estafeta do ministro, que constitui a aristocracia da classe, recorra à sobrecasaca militar. A tout
seigneur tout honneur.
Tinha já visto tanta coisa, faltava-me ver o que existe dentro de uma pasta de ministro.
Em primeiro lugar, havia o rascunho de um projeto para estabelecer o emprego de
escritor público, à guisa do promotor, do professor e do advogado público.
Necessidade de marcar-se um bom ordenado ao escritor público, o qual deve ser
examinado como o professor, e marchar de acordo com a polícia como o promotor.
Vi também os papéis relativos à nomeação do novo inspetor da instrução pública, lugar
que exerce interinamente o ilustrado e infatigável Dr. Pacheco da Silva.
Entre os nomes li o do Sr. Visconde de Sapucaí, do Sr. Marquês de Abrantes, e de
muitas outras pessoas habilitadas; mas num cantinho descobri escrito de um modo especial o
nome do Sr. Herculano Pena.
Deixei estes papéis, convencido que a dignidade e energia com que o Sr. Visconde de
Itaboraí exerceu este cargo, exige que o governo medite bem antes de decidir-se na escolha do
seu sucessor.
Vi também uma porção de pedidos de demissões de presidentes, de nomeações de
outros, de lembranças a respeito que me deram a entender ia haver uma contradança geral nas
altas posições administrativas.
Tudo isto, porém, ainda é segredo, e vos conto em confidência.
Parece que os Srs. Pena e Zacarias renunciaram as suas presidências, e que irá para o
Alto Amazonas o atual Presidente do Maranhão, um dos mais dignos caracteres e dos mais
notáveis administradores que temos.
Os Presidentes da Bahia e Rio Grande do Sul vêm assistir a esta sessão com a idéia
firme de não reassumirem os seus cargos.
Ia-me esquecendo dizer que estava na tal pasta um voto de agradecimento da Província
de Rio de Janeiro, por se acharem na vice-presidência e no cargo de chefe de polícia dois
dignos fluminenses.
Vinha de envolta uma pequena queixa por ser tudo isto apenas uma interinidade; mas
também, para uma província cuja deputação não tem em seu seio quem a possa reger, é ser
muito exigente.
Passou o tal capitão improvisado e eu limpei os vidros da minha luneta, guardei-a
cuidadosamente para me servir em melhores ocasiões, e fui tratar de escrever alguma coisa,
para que os meus leitores não me tomem por negligente.
Li hoje um belo folhetim lírico, em que se acha mau tudo quanto o Mercantil caiu na
asneira de achar bom. Li-o com muito prazer, e sem surpresa.
Quem julga que a Zechini encantou na Luísa Miller devia lógica e necessariamente
achar que a Charton cantou como uma fúria nos Puritanos.
O Campestre deu sua partida no dia 28 de abril. O baile vai em decadência quanto à
dança; mas, em compensação, o serviço é excelente e de uma profusão inesgotável. O
Francioni conseguiu vencer a sorvete e à empada a carga cerrada dos cossacos e zuavos de
vinte polegadas de altura.
A nova empresa lírica fez a eleição da sua diretoria, e da notícia que publicaram os
jornais haveis de ver o acerto da escolha. O Sr. Visconde de Jequitinhonha aceitou a
presidência.
No horizonte poético da bela sociedade já se lobriga um baile do cassino, uma regata
em Botafogo, e algumas partidas familiares e encantadoras.
Venham essas flores do mês de maio, flores perfumadas dos salões, que apenas vivem
uma noite, mas que deixam na alma tantas reminiscências.
XXX
Rio,13 de maio.
Estou hoje com bem pouca disposição para escrever.
Conversemos
A conversa é uma das coisas mais agradáveis e mais úteis que existe no mundo.
A princípio conversava-se para distrair e passar o tempo mas atualmente a conversa
deixou de ser um simples devaneio do espírito.
Dizia Esopo que a palavra é a melhor, e também a pior coisa que Deus deu ao homem.
Ora, para fazer valer este dom, é preciso saber conversar, é preciso estudar
profundamente todos os recursos da palavra.
A conversa, portanto, pode ser uma arte, uma ciência, uma profissão mesmo.
Há, porém, diversas maneiras de conversar. Conversa-se a dois, en tête-à-tête; e
palestra-se com muitas pessoas, en causerie.
A causerie é uma verdadeira arte como a pintura, como a música, como a escultura. A
palavra é um instrumento, um cinzel, um craion que traça mil arabescos, que desenha baixos-
relevos e tece mil harmonias de sons e de formas.
Na causerie o espírito é uma borboleta de asas douradas que adeja sobre as idéias e
sobre os pensamentos, que suga-lhes o mel e o perfume, que esvoaça em ziguezague até que
adormece na sua crisálida.
A imaginação é um prisma brilhante, que reflete todas as dores, que decompõe os
menores átomos de luz, que faz cintilar um raio do pensamento por cada uma de suas facetas
diáfanas.
A conversa a dois, ao contrário, é fria e calculada como uma ciência: tem alguma coisa
das matemáticas, e muito da estratégia militar.
Por isso, quando ela não é um cálculo de álgebra ou a resolução de um problema,
torna-se ordinariamente um duelo e um combate.
Assim, quando virdes dois amigos, dois velhos camaradas, que conversam intimamente
e a sós, ficai certo que estão calculando algebricamente o proveito que podem tirar um do
outro, e resolvendo praticamente o grande problema da amizade clássica dos tempos antigos.
Se forem dois namorados em tête-à-tête, que estiverem a desfazer-se em ternuras e
meiguices, requebrando os olhos e afinando o mais doce sorriso, podeis ter a certeza que ou
zombam um do outro, ou buscam uma incógnita que não existe neste mundo – a fidelidade.
Em outras ocasiões, a conversa a dois torna-se, como dissemos, uma perfeita estratégia
militar, um combate.
A palavra transforma-se então numa espécie de zuavo pronto ao ataque. Os olhos são
duas sentinelas, dois ajudantes-de-campo postos de observação nalguma eminência próxima.
O olhar faz as vezes de espião que se quer introduzir na praça inimiga. A confidência é
uma falsa sortida; o sorriso é uma verdadeira cilada.
Isto sucede freqüentemente em política e em diplomacia.
Um ministério, aliás bem conceituado no país, e que se sente cheio de prestígio, vê-se
incomodado por uma pequena oposição nas câmaras, e recorre à conversa.
Como faziam os exércitos antigos, como fez Roma e Alba, em vez de uma batalha
campal, acha mais prudente e mais humano apelar para o juízo de Deus, e decidir a vitória
pelo combate dos Horácios e dos Curiáceos.
Novo Horácio, separa os inimigos por uma ruse de guerre e combate, isto é, conversa
com cada um dos inimigos.
Ora, todos nós sabemos, desde o tempo em que traduzimos Tito Lívio, que um
Curiácio não é para se medir com um Horácio; por conseguinte, o resultado da conversa é
sabido com antecedência.
Instâncias de uma parte, confidências da outra, protestos, acusações, queixas e
promessas, tudo de mistura, eis em resumo os elementos de uma conversa ministerial e
parlamentar.
De ordinário, esta conversa começa friamente. Caminham lado a lado, mas guardando
uma certa distância. Nota-se na fisionomia alguma reserva, uma indecisão mesmo. As
palavras trocam-se lentamente, e como que medidas e pesadas.
São os primeiros passos, os botes preliminares de dois jogadores de florete.
Dentro em pouco tempo, há um pequeno arranhão, faz-se sangue. Os homens tomam
fogo, falam ao mesmo tempo, gesticulam desesperadamente, e medem o assoalho a passos
largos e desencontrados.
Depois de procelosa tempestade,
Sombras de oposição que leva o vento,
Traz a pasta serena claridade
Esperança de voto e salvamento.
(Camões)
A conversa chega ao seu terceiro período, à sua última fase. Passeiam então braço a
braço, ou sentam-se nalgum canto, risonhos, contentes, satisfeitos, como dois amigos que se
encontram ao cabo de uma longa ausência, como dois amantes que se abraçam depois de
pequeno arrufo.
Desde que começou a ter voga este gênero de conversa governativa, ou política,
imediatamente certos espíritos metódicos e sistemáticos trataram de classificar por ela as
diversas espécies de oposicionistas ou descontentes.
Assim, há hoje três classes distintas de oposicionistas: 1.ª) dos que já conversaram; 2.ª)
dos que querem conversas; 3.ª) dos que não admitem conversa.
Esta última classe dizem que é das mais pobres, e com toda a razão. É preciso ser-se
bem misantropo e anti-social para fugir a uma conversa tão amável e de tão grande interesse.
Não vão tomar à má parte esta expressão. Quando eu disse que a conversa ministerial é
de grande interesse, foi no sentido de ser instrutiva e de deleitar o espírito, deixando
impressões agradáveis.
Mas, voltando ao nosso assunto, é inegável a influência benéfica que exerce a conversa
sobre a alma do homem civilizado.
Nos primeiros dias da sessão da câmara, como ainda há pouco se tinha conversado, a
chapa ministerial da comissão de resposta à fala do trono sofreu um échec.
Porém neste dia mesmo conversou-se. O ministério tem neste ponto uma grande
vantagem: é um senhor que conversa por seis bocas.
O resultado foi que a coisa tomou outro caminho, e entrou nos seus eixos.
Dizem, é verdade, que a nomeação dos Srs. Ferraz e Assis Rocha para as comissões de
fazenda e justiça civil foi uma verdadeira derrota.
Não creio; estou mesmo convencido que o ministério desejou de coração que duas
inteligências distintas, como são estes senhores, fossem aproveitadas, cada uma na sua
especialidade.
E tanto isto é assim, tanto essas veleidades de oposição não tomam aspecto sério, que a
resposta à falta do trono apresentada ontem mostra a inteira adesão que presta a câmara à
política do governo e à marcha da administração.
Felizmente estamos no tempo das ironias; e não se me dá de crer que a câmara é capaz
de aprovar aquela resposta, e pouco depois declarar-se em oposição aberta.
E nisto não fazia mais do que seguir o exemplo dos ministros que prometem,
protestam, dão palavra, e amanhã nem se lembram do que disseram na véspera.
Ora, não vejo porque a câmara não aproveitará das lições dos seus mestres, ainda
mesmo que seja para dar-lhes lição.
Terá medo de dissolução? Acreditará num boato que por aí espalham certos
visionários?
Custa-me a crer. O tempo em que os ministérios dissolviam as câmaras já passou;
agora estamos no tempo em que as câmaras é que hão de dissolver os ministérios.
Outrora, quando os deputados vinham por sua vontade, com toda a pressa, o ministério
os mandava embora.
Atualmente, que é preciso que o governo mande buscar os deputados, é natural que
estes mandem embora o ministério.
É a regra do mundo. Depois da ação vem a reação.
Aqui vejo-me obrigado a abrir um parêntese, e a trocar a minha pena de folhetinista por
uma pena qualquer de escritor de artigos de fundo.
Não brinquem, o negócio é muito sério.
Vou escrever uma tirada política.
A situação atual apresenta um aspecto muito grave, e que pode ter grandes
conseqüências para o país.
Chegamos talvez a esse momento decisivo em que os sentimentos políticos, por muito
tempo adormecidos, vão novamente reaparecer e tomar um grande impulso.
No meio do indiferentismo e do marasmo em que se sepultavam os antigos partidos
políticos, começam a fermentar algumas idéias, algumas aspirações, que talvez sejam o germe
de um novo partido.
Os princípios desapareceram; as opiniões se confundem, as convicções vacilam, e os
homens não se entendem, porque falta o pensamento superior, a idéia capital, que deve traçar
a marcha do governo.
A política e a administração, deixando de ser um sistema, reduziram-se apenas a uma
série de fatos que não são conseqüência de nenhum princípio, e que derivam apenas das
circunstâncias e das necessidades do momento.
A conciliação apresentada como programa pelo ministério atual ficou sem realização.
Foi apenas um meio transitório a que se recorreu quando sentiu-se a necessidade de
criar esperanças, que foram depois iludidas.
Todos os sintomas, pois, indicam que o organismo político, em que esteve o país,
começa a fazer crise. Deste caos de opiniões, de idéias, de teorias, de convicções mortas e de
opiniões que se vão criando, há de necessariamente sair um elemento novo, uma combinação
de princípios que deve formar um grande partido.
Quais devem ser as tendências e as bases fundamentais dessa nova política? Quais
serão as idéias, as reformas e os melhoramentos que constituirão o seu programa de governo?
É difícil, é quase impossível dize-lo; mas parece-me que a conciliação, que o ministério
não conseguiu realizar nos homens, se há de operar nesta confusão de idéias extremas que
deve formar o novo partido.
Há certos fatos necessários, que não dependem da vontade humana, e que entretanto
podem ser dirigidos e modificados por ela.
Na época atual, o aparecimento de um partido filho das antigas facções políticas que
dividiram o país, é uma necessidade, é uma conseqüência fatal do estado de coisas.
Cumpria, pois, que os homens eminentes que podem de alguma maneira imprimir a sua
vontade nos acontecimentos tomassem a iniciativa, e, criando os elementos desse novo
partido, lhe dessem uma influência benéfica e salutar.
Há no nosso país, há no seio da representação nacional, há nas altas posições
administrativas homens que deviam incumbir-se dessa missão e levantar a bandeira, em torno
da qual se agrupariam imediatamente todos os espíritos que hoje vacilam, todas as aspirações
que agora vão nascendo.
Iniciado na tribuna, sustentado pela imprensa, acolhido pela opinião geral, esse novo
pensamento, essa nova profissão de fé ficaria conhecida pelo país inteiro
A política não seria mais uma simples luta de interesses individuais, uma oposição de
certos homens. A influência e o prestígio dos grandes nomes tornar-se-ia então um verdadeiro
pronunciamento de idéias e princípios.
Todos esperam com ansiedade a discussão do parlamento; todos aguardam o momento
decisivo de uma demonstração clara e expressa.
Se nem um desses homens de quem há pouco falamos tomar a iniciativa, então, perdida
a fé que inspiram os nomes conhecidos no país, não haverá remédio senão caminhar sem eles.
Os homens novos, que não têm comprometimentos nem precedentes, trabalharão como
simples soldados. Algum dia acharão um chefe; e, se não acharem, criá-lo-ão.
Os melhores generais foram soldados.
Já era tempo.
Vem de novo, minha boa pena de folhetinista, vamos conversar sobre bailes e teatros,
sobre essas coisas agradáveis que não custam a escrever, e que brincam e sorriem sobre o
papel, despertando tanta recordação mimosa.
Lembra-te do Cassino?
O lindo baile já não é aquela brilhante reunião de outros tempos, onde se viam
agrupadas como flores de uma grinalda todas as moças bonitas desta terra.
Tudo passa; algumas daquelas flores, levadas pelas brisas do mar, lá se foram perfumar
outros salões; muitas brilham aos raios de outro sol, e poucas ainda aí vão talvez ultimamente
para sentirem as reminiscências de tempos passados.
É verdade que lá de vez em quando nesta grinalda já quase murcha desabrocha uma
nova flor, que faz esquecer um momento todo o passado.
Nessa última noite era uma flor do Brasil que, depois de ter brilhado entre as pálidas
anêmonas de Portugal, entre os alvos lírios da França, entre os suaves miosótis da Alemanha,
veio de novo aquecer-se aos raios do sol da pátria, e perfumar as belas noites de nossa terra.
Se vísseis como ela se balouçava docemente sobre a haste delicada, e se reclinava com
tanta graça como para deixar cair as pérolas de orvalho e fragrância que destilavam do seu
seio delicado!
No meio de um baile tudo é fascinação e magia.
Tocava a valsa, e a flor se transformava em sílfide, em lutin, em fada ligeira que
deslizava docemente, roçando apenas a terra com a ponta de um pezinho mimoso, calçado
com o mais feiticeiro dos sapatinhos de cetim branco.
Um bonito pé é o verdadeiro condão de um a bela mulher.
Nem me falem em mão, em olhos, em cabelos, à vista de um lindo pezinho que brinca
sob a orla de um elegante vestido, que coqueteia voluptuosamente, ora escondendo-se, ora
mostrando-se a furto.
Se eu me quisesse entender sobre a superioridade de um pé, ia longe; não haveria papel
que me bastasse.
Apareceu também no Cassino uma bela roseira, coberta de flores, em torno da qual os
colibris adejavam a ver se colhiam um sorriso ou uma palavra meiga e terna.
Mas a roseira só tinha espinhos para os que se chegavam a ela: os estames delicados
guardavam o pólen dourado do seu seio para lança-lo talvez às brisas das margens do Reno ou
do Mondego.
Depois do Cassino, o fato mais notável da crônica dos salões foi o benefício da Raquel
Agostini com a representação da ópera Semíramis.
A Casaloni caricaturou outra vez o papel de Arsace. O elegante e ardente guerreiro da
Babilônia desapareceu naquele porte sem nobreza, naqueles gestos sem expressão, naquela
frieza de caráter,
Por outro lado, a beneficiada teria feito um verdadeiro benefício ao público se tivesse
cortado do seu programa uma célebre ária do Roberto do Diabo e uma polca de invenção
moderna que foi dançada pelo corpo de baile.
O Ginásio Dramático continua em progresso. A concorrência nestas últimas récitas tem
sido numerosa; e o salão começa a ser freqüentado pelas melhores famílias e por muita gente
da sociedade.
Por isso já esperava eu. Coloquei aquela pequena empresa sob a proteção das minhas
amáveis leitoras; embora o meu valimento seja nenhum,eu sabia que, por amor da arte, elas
não o deixariam de olhar com bons olhos para esse seu protegido.
Ce que femme veut, Dieu le veut. Se as minhas belas leitoras quiserem, em pouco
tempo o Ginásio será um excelente teatro, e poderá criar artistas novos e dar-nos bem horas
de agradável passatempo.
XXXI
Rio, 20 de maio
Domingo passado havia espetáculo no Teatro de São Pedro e no Ginásio Dramático.
Mais longe, num pequeno salão todo elegante, dançava-se e ouvia-se cantar Bouché,
Ferranti, Dufrene e a Charton.
A harpa do Tronconi gemia, a flauta de Scaramella trinava como um rouxinol.
Seriam dez horas da noite.
Neste mesmo momento, e no meio desta alegria geral, uma grande catástrofe se
consumava.
Uma faísca desprezada crescera, transformara-se em chama, e ameaçava devorar um
quarteirão inteiro.
Os sinos dobravam, o povo apinhava-se em torno, a chama enroscava-se ao longo das
paredes como uma serpente de fogo, e o incêndio lançava sobre toda esta cena um clarão
avermelhado e sinistro.
Fizeram-se atos de heroísmo e de coragem, ações de bravura que passaram
despercebidas no meio desta luta terrível do homem com o elemento.
Os ingleses portaram-se com o sangue-frio habitual; os franceses trabalharam com
entusiasmo; alguns brasileiros sustentaram a honra do seu nome e os brios nacionais.
No dia seguinte apenas restava de tudo isto um acervo de ruínas ainda fumegantes, um
epitáfio escrito pelo fogo, e que todos os passantes iam ler naquelas cinzas ardentes.
Durante dois oi três dias conversou-se sobre o incêndio, fizeram-se mil comentários, e
entre muitas coisas que se disse apareceram algumas verdades bem tristes.
Asseguravam que as bombas do arsenal estavam desmanteladas, e que, depois de
chegarem ao lugar do incêndio, descobrira-se que não tinham chaves, e portanto fora
necessário esperar uma boa hora para que elas pudessem prestar serviço.
Não sei até que ponto chega a verdade deste fato; mas para mim ele nada tem de novo.
Se se tratasse de uma regata, de algum passeio de ministro a bordo dos navios de
guerra, naturalmente tudo havia de estar pronto, as ordens seriam dadas a tempo e se
desenvolveria um luxo de atividade e de zelo como não há exemplo, nem mesmo na
Inglaterra, o país clássico da rapidez.
Tratava-se, porém, de um incêndio apenas, de cinco casas reduzidas a cinzas, e por isso
não é de estranhar que não houvesse a mesma azáfama que costuma aparecer naqueles outros
ramos mais importantes do serviço público.
Depois do fogo veio a chuva, como era natural; tinha reinado um elemento, era justo
que o outro lhe sucedesse.
Toda a semana levou esta senhora a fazer-nos pirraças. Roubou-nos o belo
divertimento da regata; e de vez em quando escondia-se atrás da porta, isto é, por detrás do
Corcovado, e deixava que o sol brilhasse e que o céu se tornasse azul; e, apenas pilhava um
homem na rua, começava a divertir-se à sua custa.
O arsenal de marinha, que não dá grande importância à extinção dos incêndios, podia
ao menos tratar de livrar-nos do contratempo da chuva, e fazer a experiência da teoria de
Méry. É natural que as suas peças de artilharia estejam em melhor estado que as suas bombas.
Entretanto, apesar da chuva, tivemos esta semana uma noite de Trovador e outra de
Sonâmbula.
O Dufrene fazia a sua quarta estréia nesta última ópera. Na ocasião em que se
representava uma das cenas do primeiro ato, um amigo que estava no meu lado lembrou-me
as seguintes palavras de Balzac:
“Um artiste qui a le malheur d’être pleindre la PASSION qu’il veut exprimer ne
saurait la peindre, car il est la CHOSE même, au lieu d’en être l’image.”
O que é que Balzac e o meu amigo quereriam dizer com estas palavras? Não sei; um
citou-as sem comentário; o outro escreveu-as sem segunda tenção.
Nesta mesma noite teve lugar a reunião da Sociedade Estatística na sala onde se
achavam expostos os produtos industriais dos Estados Unidos, que o Sr. Fletcher oferecera a
Suas Majestades e algumas corporações científicas desta corte.
Havia muita coisa a admirar naquela pequena exposição especialmente pelo que toca à
fotografia, aos trabalhos de cromolitografia, e às cartas geográficas feitas pelo novo sistema
da gravura sobre cera.
Vimos um busto de Webster, que o Sr. Fletcher nos afirmou ser feito com uma
máquina, que por meio de um processo engenhoso copia os traços de um outro busto. A
semelhança era completa, a julgar-se pelos retratos em fotografia que existiam na sala.
Aberta a sessão pelo Sr. Visconde Itaboraí, o Sr. Fletcher pronunciou um discurso em
francês, no qual expôs as suas idéias e os projetos que o haviam animado a voltar ao Brasil.
Depois de falar sobre a ignorância absoluta e recíproca que existe no nosso país e nos
Estados Unidos sobre a organização política, a administração e o progresso de uma e outra
nação, mostrou os desejos que tinha, de fazer conhecido o Brasil na sua pátria e de estreitar
assim as relações comerciais e políticas dos dois povos americanos.
Se o Sr. Fletcher conseguir realizar esta idéia, pela qual parece trabalhar com tanto
entusiasmo, fará um grande serviço à América. Talvez dessas relações que vão começar nasça
um grande pensamento de política americana, que no futuro venha a dirigir os destinos do
novo mundo e a por um termo à intervenção européia.
E, se é exata uma notícia que nos deram, então é muito natural que os projetos do Sr.
Fletcher venham a efetuar-se mais breve do que se pensa.
O Sr. William Trousdale, Ministro Plenipotenciário dos Estados Unidos na nossa corte,
é um dos candidatos à futura presidência da Confederação; e, à vista dos valiosos serviços
prestados por ele na Guerra do México, é de crer que esta candidatura seja bem aceita pelos
diversos Estados.
Quanto à política, é hoje esse terreno tão inclinado, que nele não nos queremos
aventurar, quando os chefes deixam os seus soldados errantes e dispersos combatendo em
guerrilhas, em saberem ao certo que bandeira defendem.
A Câmara dos Deputados tem aprovado algumas naturalizações de sujeitos que
entendem que as leis do país não passam de letra morta, e que reclamam, pela importância de
seus nomes, dispensa naquelas leis.
Até reza a crônica que se deu o foro de cidadão brasileiro a um estrangeiro
recomendado à polícia! Talvez que merecesse esse favor para poder ser empregado na
espionagem da gente trêfega.
Desejava bem dar-vos alguma notícia da oposição; porém creio que os oposicionistas
modernos procedem de uma maneira muito diferente da que se usava outrora.
Em vez de atacarem o governo, defendem-no; e por isso contaram-me que,
perguntando o presidente a um deputado que pedira a palavra na resposta à fala do trono se
era pró ou contra, respondera que seria como quisessem
É verdade que lá de vez em quando surge um campeão que não dá quartel ao governo,
como sucedeu ontem na discussão da fala do trono.
Que de verdades se descobriram! O país está à borda de um abismo! Nós caminhamos
a passos de gigante para o mais completo absolutismo!
Quereis as provas?
As medidas sobre a limpeza da cidade, os regulamentos de instrução pública e de
óbitos, o método Castilho, e talvez que a reprovação de alguns professores – tudo isto, na
opinião do orador, são golpes profundos que se têm dado à constituição e à nossa organização
política.
Pobre constituição! A quanto não estais sujeita! É verdade que, depois que te
arrancaram as folhas para as lançarem por aí aos domingos e quintas-feiras, não tinhas mais
que esperar.
Esquecia-me de dar-vos uma notícia importante. Um candidato à senatoria, que não
teve a fortuna de ser escolhido, foi ultimamente promovido a tenente.
É um ato do governo que merece que merece elogios; é uma prova de que o ministério,
apreciando em subido grau os serviços daquele prestante cidadão, não quis que ele entrasse no
quartel dos inválidos, e habilitou-o para continuar em serviço ativo.
E o que é mais notável é que este favor foi feito a um deputado oposicionista! Que
imparcialidade!
Já sabeis que as iguarias preparadas para a regata foram enviadas aos doidos do
Hospício de Pedro II. Decididamente estavam predestinadas!
Seu primeiro destino era servir aos doidos, doidos de amor e de entusiasmo, que,
depois das corridas dos escaleres e das amáveis conversas com as belas convivas, teriam de ir
fazer um toast à rainha do dia em beleza e ao vencedor do páreo.
Mas tudo isto o tempo veio transtornar, e, em vez de uma regata, deu-se cinco ou seis,
e bem regadas pela chuva, que a esta hora ainda cai a cântaros.
E por hoje, despedida à francesa; até o próximo domingo, em que é provável que esteja
de melhor veia do que hoje.
XXXII
Rio, 27 de maio
Desculpai-me!
Vou contar-vos uma coisa que me sucedeu ontem: é um dos episódios mais
interessantes de minha vida de escritor.
Aposto que nunca viste escrever sem tinta!
Pois lede estas primeiras páginas, compreendereis como aquele milagre é possível no
século atual, no século do progresso.
Eis o caso.
Foi ontem, por volta das dez horas. Estava em casa de um amigo, e aí mesmo
dispunha-me a escrever a minha revista.
Sentei-me à mesa, e, com todo o desplante de um homem, que não sabe o que tem a
dizer, ia dar começo ao meu folhetim, quando...
Talvez não acrediteis.
Tomei a pena e levei-a ao tinteiro; mas ela estremeceu toda, coitadinha, e saiu intata e
pura. Não trazia nem uma nulidade de tinta. Fiz nova experiência, e foi debalde.
O caso tornava-se grave, e já ia saindo do meu sério, quando a pena deu um passo,
creio que temperou a garganta, e pediu a palavra.
Estava perdido!
Tinha uma pena oradora, tinha discussões parlamentares, discursos de cinco e seis
horas. Que elementos para não trabalhar!
Nada; era preciso por um termo a semelhante abuso, e tomar uma resolução pronta e
imediata.
Comecei por bater o pé, e passar uma repreensão severa nos meus dois empregados,
que assim se esqueciam dos seus deveres.
O meio era bom, e surtiu o desejado efeito como sempre.
Entramos em explicações; e no fim de contas soube a causa dessa dissidência.
A pena se tinha declarado em oposição aberta; o tinteiro era ministerial quand même. E
ambos tão decididos nas suas opiniões, que não havia meio de faze-los voltar atrás.
Era impossível, pois, evitar uma discussão; resignei-me a ouvir os prós e os contras
deste meu pequeno parlamento.
A pena do meu amigo fez um discurso muito desconchavado, a falar a verdade. Por
mais que lho tenha dito, não quer acreditar que a oratória não é o seu forte; tirando-a da mesa
e do papel não vae nada.
Enquanto, porém, ela falava, o tinteiro voltava-lhe as costas de uma maneira
desdenhosa, o que não achei bonito. Estive quase chamando-o à ordem; mas não me animei.
Chegou finalmente a vez de falar ele, e defendeu-se dizendo que todas as penas faziam
oposição aos tinteiros logo que estes lhes recusaram o elemento para trabalhar, e se não lhe
davam a tinta necessária para escrever, sem a qual ficavam a seco.
-C’est trop fort! Gritou a pena do meu amigo, que gosta de falar em francês. Quebro
os meus bicos antes do que receber uma só gota de tinta em semelhante tinteiro.
E, se o disse, melhor o fez. Não houve forças que a fizessem molhar os bicos no
tinteiro e escrever uma só palavra com aquela tinta.
Atirei-a de lado, abri a gaveta, e tomei um maço de penas que aí havia de reserva.
Mesma coisa: todas elas tinham ouvido, todas se julgavam comprometidas a sustentar a
dignidade de sua classe.
Por fim, perdi a paciência, zanguei-me, e, como já era mais de meio-dia, larguei-me a
toda pressa para a casa, a fim de escrever alguma coisa que pudesse fazer as vezes de um
folhetim.
Mas uma nova decepção me esperava.
A minha pena, de ordinário tão alegre e tão travessa, a minha pena, que é sempre a
primeira a lançar-se ao meu encontro, a sorri-me a dar-me os bons dias, estava toda amuada, e
quase escondidas entre um maço de papéis.
Quanto ao meu tinteiro, o mais pacato e o mais prudente dos tinteiros do mundo, este
tinha um certo ar político, um desplante de chefe de maioria, que me gelou de espanto.
Alguma coisa se tinha passado na minha ausência, algum fato desconhecido que viera
perturbar a harmonia e a feliz inteligência que existia entre amigos de tanto tempo.
Ora, é preciso que saibam que há completa disparidade entre esses dois companheiros
fiéis das minhas vigílias e dos meus trabalhos.
O meu tinteiro é gordo e barrigudo como um capitão-mor de província. A minha pena é
esbelta e delicada como uma mocinha de quinze anos.
Um é sisudo, merencóreo e tristonho; a outra é descuidosa, alegre, e às vezes tão
travessa que me vejo obrigado a ralhar com ela para faze-la ter modo.
Entretanto, apesar desta diferença de gênios, combinavam-se e viviam perfeitamente.
Tinha-os unido o ano passado, e a lua de mel ainda durava. Eram o exemplo dos bem casados.
Façam, portanto, idéia do meu desapontamento quando comecei a perceber que havia
entre eles o que quer que fosse.
Era nada menos do que a repetição da primeira cena.
Felizmente não veio acompanhada de discussões parlamentares, mesmo porque na
minha mesa de escrever não admito o sistema constitucional.
É o governo absoluto puro. Algumas vezes concedo o direito de petição; no mais, é
justiça a Salomão, pronta e imediata.
A minha pena, como as penas do meu amigo, como todas as penas de brio e pundonor,
tinha declarado guerra aos tinteiros do mundo.
Não havia, pois, que hesitar.
Lembrei-me que ela me tinha sido confiada há coisa de nove meses pura e cândida, e
que assim a devia restituir.
Lembrei-me de muitas outras coisas, e tomei uma resolução inabalável.
Atirei o meu tinteiro pela janela fora.
A pena saltou, de tão alegre e contentinha que ficou. Fez-me mil carícias, sorriu,
coqueteou, e por fim, fazendo-me um gestozinho de Charton no Barbeiro de Sevilha, um
gestozinho que me mandava esperar, lançou-se sobre o papel e começou a correr.
Escrevia sem tinta.
Quero dizer, desenhava; esgrafiava sobre o papel quadros e cenas que eu me recordava
ter visto há pouco tempo; debuxava flores, céus, estrelas, nuvens, sorrisos de mulheres,
formas de anjos, tudo de envolta e no meio de uma confusão graciosa.
E eu nem me lembrei mais de escrever, e fiquei horas esquecidas a olhar esses quadros,
que decerto não conseguirei pintar-vos.
Recordo-me de um.
Passava-se na segunda-feira, na baia de Botafogo.
A uma hora o tempo fez umas caretas, como para meter susto aos medrosos.
Daí a alguns momentos o sol brilhou, o azul do céu iluminou-se, e uma brisa ligeira
correu com os vapores do temporal que ainda toldavam a atmosfera.
Uma bela tarde desceu do seio das nuvens, pura, fresca e suave como uma odalisca,
que, roçando as alvas roupagens de seu leito, resvala do seu divã de veludo sobre o macio
tapete da Pérsia.
Era realmente uma odalisca, ou antes uma moreninha de nossa terra. Seu hábito
perfumado se exalava na aragem que passava; os seus olhos brilhavam nos raios do sol; sua
tez morena se refletia na opala dourada que coloria o horizonte.
Tudo sorria, tudo enamorava. As nuvenzinhas brancas que corriam no azul do céu, o
vento a brincar com as fitas de um elegante toilette, uma réstia de sol que vinha beijar uma
face que enrubescia ao seu contato, tudo isto encantava.
Apenas o mar, como um leão selvagem, eriçava a juba, estorcia-se furioso, e arrojava-
se bramindo sobre as areias da praia.
Isto, em bom português, quer dizer que havia uma ressaca insuportável. Mas é
necessário recorrer de vez em quando às imagens poéticas, e seguir os preceitos da arte; e foi
por isso que dei ao mar a honra de compara-lo a um leão selvagem e indômito.
Na minha opinião, ele não passa de um sujeito muito malcriado, que, apesar de tanta
moça bonita que se incomodou para ir vê-lo, pôs-se a fazer bravatas, como se alguém cá da
terra tivesse medo dele.
Por isso, os barquinhos zombavam dos seus rompantes e brincavam sobre as ondas, e
corriam tão ligeiros, tão graciosos, que era um gosto vê-los saltando nos cimos das vagas, e
inclinando-se docemente com o fluxo da ressaca.
Às três horas e meia ouviu-se um tiro de peça e começou o páreo, que durou até cinco
horas da tarde. Apesar de todos os contratempos que sobrevieram, havia um prazer e uma
animação geral.
Todos os convidados se achavam reunidos no primeiro pavimento da casa do Sr.
Teixeira Leite; e aí foi servido um excelente toast que a sociedade fizera preparar.
Sans pain et sans vin, l’amour n’est rien, diz Brillat Savarin, que é autoridade na
matéria. Portanto não é de admirar que, depois do toast, todos os rostos se animassem, o
sorriso se expandisse nos lábios, e a galanteria se tornasse mais amável e afetuosa.
Enquanto lançava um olhar sobre essas mesas carregadas de flores e de manjares,
cercadas de tantas moças bonitas e de talhes tão delicados e tão mimosos, enquanto o
Champanha espumava e as luzes cintilavam, fazendo brilhar o rubi líquido que tremia nos
copos de cristal, vieram-me umas reflexões de filosofia gastronômica ou de gastronomia
filosófica (como quiserem), que me envergonharam.
A minha poesia, a pouca que tenho, aproveitou o primeiro olhar que passou e foi
refugiar-se nuns belos olhos que ela conhece, até que passassem as reflexões humorísticas que
faziam trabalhar o meu espírito.
E ela tinha razão.
Numa mesa de jantar, a menos que não se tenha perdido a razão, declaro impossível a
menor dose de poesia.
Neste lugar tudo se nivela, tudo se iguala. O rei e o mendigo, o rico e o pobre, a moça
bonita e a mulher feia, todos têm fome.
Vedes aquela mulher bela e elegante; tem o corpinho tão mimoso, a cintura tão
delicada, que julgais alimentar-se de perfumes e de essências do Oriente.
Admirai-lhe os olhos grandes que parecem refletir uma luz divina, os lábios feitos para
o sorriso, a cercadura de pérola que ornam a sua boquinha, e que um beijo não ousaria
profanar.
É uma flor, uma estrela, um anjo cercado de luz, que vive no meio de uma auréola
celeste, uma fada que habita o palácio encantado de vossa imaginação.
Pois bem, chegai-vos a uma mesa bem servida, e olhai a vossa estrela, o anjo dos
vossos sonhos.
Os dentes não são mais pérolas, porque mastigam como os vossos e como os de
qualquer; os lábios rosados não sorriem, saboreiam tão bem uma iguaria como os de um
consumado gastrônomo.
E daí a um momento, quando no meio do cheiro das iguarias e das fumaças do vinho,
esta mulher vos disser que jantou bem, se ainda tiverdes um átomo de poesia na vossa alma,
podeis gabar-vos de ser o maior poeta do mundo.
E assim como a mulher é tudo o mais.
O estadista profundo, que gasta a sua vida a resolver os grandes problemas sociais e
políticos, que joga com as massas e com as nações, como um menino com a sua péla, senta-se
à mesa e esgrime-se contra uma asa de peru, da mesma maneira que um estudante esfaimado
no dia de um enterro de ossos.
A religião, a ciência, a glória, o amor, a arte, todas essas coisas grandes e sublimes do
mundo, tudo num momento dado some-se pelo fundo de um prato, ou pelas bordas de um
copo de vinho.
Deixemo-nos, pois, dessas veleidades, desses orgulhos todos e sem fundamento. Todos
temos as mesmas misérias, todos saímos do pó, e um dia a ele tornaremos.
Bem razão tinhas tu, meu Brillat Savarin, quando dizias que a cozinha é a primeira e a
única ciência deste mundo; e que os homens só se distinguem dos animais, porque estes
comem, e nós saboreamos.
Quantas da minha leitoras não terão amarrotado estas páginas e condenado o meu
folhetim como a pior das revistas passadas, presentes e futuras?
Entretanto não têm razão; porque, apesar de todas estas reflexões que me assaltavam,
tive bastante força de imaginação para não descer do mundo da idealidade.
Quando via um rostinho bonito inclinado sobre a mesa, chamava em meu socorro todas
as comparações dos poetas antigos e modernos, e assim conseguia salvar as minhas ilusões.
Então não era uma mulher que via a comer, era uma flor que absorvia os raios de luz e
as gotas de orvalho da manhã, era uma falena que libava o mel e o perfume das flores.
E tanto que, depois dessa hora de tortura, tive de acrescentar uma máxima aos
aforismos tão conhecidos da Phisiologie du Gout: “O melhor meio de experimentar o amor
que se tem a uma mulher é vê-la comer”
É preciso, porém, que advirtam numa coisa, e é que não falo de um jantar a dois, de
uma mesa à qual nos sentamos ao lado ou mesmo defronte de uma bela moça.
Não: isto é a quinta essência da poesia.
O que disse referia-se à posição crítica de um sujeito que está morrendo de fome, e que
se acha condenado ao suplício de ver comer uma bela mulher: é esse caso especialíssimo que
eu digo que o homem que é capaz de conservar as suas ilusões tem uma imaginação que eu
respeito.
Voltemos à regata.
À noite improvisou-se um sarau nos salões do Sr. Leite, e todas as pessoas que se
achavam na reunião da sociedade foram convidadas e instadas para subirem.
Havia moças, música e flores, esta trindade mística do prazer, e por conseguinte a festa
foi soberba; completou-a a afabilidade dos hóspedes e a amabilidade com que todos eram
recebidos.
Dançou-se, conversou-se, brincou-se, e às onze horas cada um retirou-se com a alma
cheia das agradáveis impressões do dia.
Eu fui ler umas páginas de romance escritas na Revista dos Dois Mundos de 1º de
março por...
Adivinhem por quem, senhores ministros presentes e futuros?
Por Guizot.
O grande estadista, o político profundo ainda se julga feliz em poder, depois dos
reveses da fortuna, voltar à imprensa e entreter-se com a sua pena a traçar algumas cenas
dramáticas e uma história simples do coração humano.
Entretanto no nosso país se diz que a imprensa é venal e corrompida, e se trata de
desacreditar essa força civilizadora da sociedade.
Mas que importa?
Porque o homem num momento de humor se revolta contra a chuva, e desespera de
apanhar sol, nem por isso os outros deixam de continuar o seu giro, e as estações de seguirem
o seu curso regular.
Assim é a imprensa.
Obscura invenção de Gutenberg, simples maquinismo para escrever algumas palavras
com pequenas formas de pau, cresceu, desenvolveu-se, foi-se estendendo por toda terra, e
hoje está destinada a dominar o mundo, como a maior criação do homem.
Nela se concentram os dois mais poderosos elementos da civilização, os dois grandes
agentes que fazem mover o mundo: a inteligência e o vapor.
Que poderá resistir a essa combinação do pensamento com a força, a essa união da
palavra com a rapidez?
Tempo virá em que do obscuro gabinete do escritor a pena governará o mundo, como a
espada de Napoleão da sua barraca de campanha.
Uma palavra que cair do bico da pena, daí a uma hora correrá o universo por uma rede
imensa de caminhos de ferro e de barcos de vapor, falando por milhões de bocas,
reproduzindo-se infinitamente como as folhas de uma grande árvore.
Esta árvore é a liberdade; a liberdade de imprensa, que há de existir sempre, porque é a
liberdade do pensamento e da consciência, sem a qual o homem não existe; porque é o direito
de queixa e defesa, que não se pode recusar a ninguém.
Mas esta bela idéia me levaria muito longe, tenho tanta coisa pequena de que falar, que
não sei como me poderei sair desta dificuldade.
O melhor é cortar o nó górdio com a espada de Alexandre, e não falar de mais coisa
alguma.
Sirva, pois, a pena de espada, e façamos ponto final.
XXXIII
Rio, 3 de junho
Passou ligeira e fugitiva como todos os prazeres deste mundo, a semana das belas
noites, dos magníficos luares, dos brilhantes saraus musicais!
Passou, envolta entre as sombras da noite, e como que temendo crestar as suas asas
diáfanas e o seu manto cor do céu aos raios ardentes do sol de nossa terra!
Passou, como essas crepusculares que adejam às últimas claridades do sai; ou como
essas flores modestas que vivem à sombra, e se expandem à claridade suave das estrelas e ao
brando sopro das auras da noite!
Havíeis de vê-la surgir, entre a tíbia claridade do crepúsculo da tarde, com uma lira
d’ouro na mão, o olhar em êxtase, o gesto inspirado; e, de envolta com os últimos rumores do
dia, talvez lhe ouvísseis os prelúdios harmoniosos.
Mas passou; e agora só nos restam as recordações das horas de prazer que nos deu, e
que vamos desfolhar uma a uma, como as páginas de um belo livro, que lemos pela segunda
vez frase por frase, apreciando a elegância do estilo, os lindos pensamentos e as brilhantes
imagens.
E, se ao menos uma dessas mãozinhas feiticeiras quisesse for da semana, que abrimos
aos nossos leitores, e do qual bem sentimos não lhe poder dar mais do que uma pálida
tradução.
Muito; não é um livro, é um álbum de músicas e desenhos, um lindo keepsake, em que
os mais hábeis artistas trabalharam para fazer uma dessas obras-primas, dignas das mãozinhas
delicadas para que são destinadas.
E, se ao menos uma dessas mãozinhas feiticeiras quisesse folhear comigo as páginas
desse pequeno livro da vida, talvez pudesse ler nele coisas bem lindas, que diria aos meus
leitores, visto que não sou egoísta.
Abriríamos as primeiras páginas, e poderíamos ver essas belas noites de luar que tem
feito, e um céu tão puro, e umas estrelas tão brilhantes, que ficaríamos encantados.
Poderíamos sentir a frescura dessas tardes serenas, ou acompanhar esses bandos de
moças que passeiam, e ouvir as suas falas doces e os seus risos alegres e festivos.
Se tendes queda pelos antigos costumes dos nossos pais, que já vão caindo em desuso,
iríamos correr as barracas do Espírito Santo, e talvez nos lembrássemos daquelas novenas do
campo tão encantadoras com as suas ruas de palmeiras e as suas toscas luminárias.
Também podíamos passear aos belos arrabaldes da cidade, a Botafogo, às Laranjeiras,
ao Engenho Velho ou a Andaraí, e, fugindo o gás, ir apreciar o luar na sua beleza primitiva,
no meio das árvores e por entre as folhagens.
Mas voltemos a página. Estamos na terça-feira, no salão do Teatro Lírico, assistindo ao
concerto do Arnaud.
Podemos ouvir boa música, de diferentes maestros e de gostos diversos, desde o
travesso romance francês até a verdadeira música italiana cheia de sentimentos e de poesia.
Arnaud tocou, com o gosto que todos lhe conhecem, uma fantasia sobre motivos da
Sonâmbula, e duas composições suas dedicadas a S.M. a Imperatriz e ao Rei de Nápoles.
A Charton cantou, entre outras coisas, uma ária de Marco Spada, tão graciosa na
música como na letra. É um lindo gorjeio de rouxinol francês que acaba por este estribilho:
Vous pouvez soupirer,
Vous pouvez espérer;
Mais, songez-y bien,
Je n’accorde rien.
Já vêem, pois, as minhas leitoras que a tal ária do Marco Spada bem se poderia chamar
ária dos bonitos olhos, que não dizem mais do que aquele estribilho enigmático.
O primeiro requebro de olhos que vos lança uma bela mulher, o primeiro sorriso de
esperança que anima os vossos desejos, é o primeiro verso, é uma permissão, um
consentimento tácito. Vous pouvez soupirer.
Daí a muito tempo, quando ela vê que já estais ficando tísico de tanto suspirar, pode ser
que se condoa do vosso estado, e que vos lance um segundo olhar; é uma meia promessa Vous
pouvez espérer
Ficais muito contente, fazeis loucuras e extravagâncias, julgai-vos o mais feliz dos
homens, começais a ser um pouco exigente, quando lá vem o terceiro olhar carregado de uma
ameaça. Mais, songez-y bien!
E não tardará muito que um último volver desdenhoso não venha deitar água fria na
vossa paixão e intimar-vos a sentença final. Je n’accorde rien.
Ora, vós sabeis que toda a ária tem repetição (reprise); por conseguinte, depois deste
primeiro ritornelo, os olhos cantam uma segunda vez o mesmo estribilho, e acabam
executando um duo, porque também depois da ária quase sempre nas óperas se segue o dueto.
Não sei se lá no concerto sucedeu semelhante coisa, porque quase todo o tempo estive
fora do salão com muitas pessoas, para quem não havia lugar dentro.
Ora, isto é uma prova de que o artista que dava o concerto é tão bem aceito da nossa
sociedade, que mereceu uma grande concorrência; mas também é prova que o salão do teatro
não se presta a uma reunião de mais de quinhentas pessoas.
Do contrário, dar-se-á o que sucedeu terça-feira, a se verão obrigados a fazer aquela
mesma separação de homens e senhoras, que decerto não é nada galante.
A música é uma coisa muito bela, mas seguramente não é um fogo de Vesta que tenha
o poder de nos afastar da companhia amável das senhoras e privar-nos da sua espirituosa
conversação.
Não cuidem que digo isso por mim; apesar de sentir bastante aquela separação anti-
social, anti-religiosa e anti-política, se tomo o negócio tão a peito, é unicamente por causa das
senhoras, que eu adivinho haviam de estar desesperadas.
Os motivos do desespero são diversos.
Em umas era porque lhes faltava o quer que é, porque não ouviam uma fineza, não
sentiam em torno o murmúrio de admiração a que estão talvez habituadas.
Em outras é porque não tinham quem lhes fosse ver o copo d’água, quem lhes dissesse
de que maestro era a música que se tocava, quem informasse da hora que era, enfim quem
lhes servisse de partner num pequeno jogo de alusões maliciosas. .
Mas deixemos os desconcertos, e voltemos ao concerto.
As glórias musicais da noite couberam a um trio do Padre Martini, composto em 1730,
e que Ferranti foi desencavar não sei onde: é o trio das risadas.
Foi executado pela Charton e por Ferranti e Dufrene com muita graça e naturalidade.
Que excelente música para quando se está triste! Diz um provérbio que quem canta
seus males espanta. O tal terceto, porém, faz mais do que espantar os males; obriga a rir;
começa-se cantando, e acaba-se às gargalhadas.
Voltemos outra página.
Entramos no Teatro de São Francisco na quarta-feira à noite; representam-se duas
pequenas comédias muito engraçadas e espirituosas.
Se quereis passar uma noite alegre e rir de coração durante umas duas ou três horas,
não deixeis de ir aos domingos e às quartas-feiras ver as representações desse pequeno teatro.
Ouvireis as cômicas facécias de um artista que agora começa, mas que promete muito
futuro, se o animarem e souberem dirigir. Vereis como a mobilidade extraordinária de sua
fisionomia se presta admiravelmente às expressões de todos os sentimentos e de todas as
paixões.
Lá de vez em quando, no meio dessas cenas espirituosas e cômicas, assistireis a um
lance dramático, em que uma excelente artista já vossa conhecida pinta com a maior
naturalidade o amor, a emoção, o susto ou o terror.
E vereis tudo isto no meio de uma sociedade escolhida, e admirando talvez pelos
camarotes algumas moças bonitas e elegantes que começam a proteger a nascente empresa, e
que prometem em pouco tempo fazer deste pequeno salão um dos mais agradáveis
passatempos da cidade.
A sociedade tem lutado com muitas dificuldades, e uma delas, talvez a principal, seja a
repugnância que tem ainda a classe pobre por esta profissão.
São prejuízos de tempos passados, de que ainda se ressentem os paises pouco
ilustrados, e que devemos procurar destruir como um erro muito prejudicial ao
desenvolvimento da arte dramática.
O cômico hoje em dia já não é aquele volantin ou palhaço de outrora, sujeito aos
ápodos e às surriadas do poviléu nas praças públicas; já não é aquele ente desprezível, aquele
paria da sociedade, indigno do trato da gente que se prezava.
Todo o trabalho é nobre, desde que é livre, honesto e inteligente; toda a arte é bela e
sublime, logo que se eleva à altura do espírito ou do coração.
O cômico pertence a esta grande classe de artistas que trabalham na grande obra da
perfeição: é irmão do pintor, do estatuário,do músico, do arquiteto, de todos esses apóstolos
da civilização que seguem por uma mesma religião e um mesmo culto: a religião da natureza
e o culto do belo.
Cessem, pois, esses escrúpulos irrefletidos que muitas vezes cortam uma carreira e
falseam uma vocação decidida.
Quantos grandes pintores da Itália e o mundo inteiro não teriam perdido, se o desprezo
pela arte e os maus conselhos tivessem abafado na alma do artista o fogo sagrado, fazendo de
um Ticiano e de outro um mau advogado ou um péssimo fidalgo?
Quem sabe também quanta menina pobre e quanto moço sem fortuna há por aí por esta
grande cidade, e cujas esperanças não passam de um obscuro casamento ou de um emprego
mesquinho, e que entretanto têm em si o germe de um brilhante futuro, perdido talvez por
uma falsa idéia da arte?
Atualmente todo o mundo entende que seu filho deve ser negociante ou empregado
público: e, tudo quanto não for isto é um desgosto para a família. Quanto à classe rica e
abastarda, esta não quer outra coisa que não seja o sonoro título de doutor.
Doutor atualmente equivale ao mesmo que fidalgo nos tempos do feudalismo. É um
grau, um distintivo, um título, uma profissão, um estado.
No tempo da revolução, os fidalgos, os condes, marqueses e barões emigraram e
fizeram-se torneiros, sapateiros, pintores e mestres de meninos
É provável que daqui a dez anos, com a fertilidade espantosa das nossas academias, o
mesmo venha a suceder aos doutores.
Tudo isto, porém, parte de um grande erro.
Todas as profissões encerram um grande princípio de utilidade social; todas, portanto,
são iguais, são nobres, são elevadas, conforme a perfeição a que chegam.
Um mau discurso de deputado não vale um gorjeio ou uma volta da Charton. Um
poema insulso, uma poesia sem sentimento não se compara a uma cena pintada por Bragaldi.
Um desenho sem gosto não prima sobre as formas elegantes e graciosas que o nosso artista
Neto costuma dar a um móvel trabalhado por ele.
E assim tudo o mais: o homem é que faz a sua profissão; a sua inteligência é que a
eleva; a sua honestidade é que a enobrece.
Já é tempo de voltarmos a quarta página deste livro das noites, que me comprometo a
traduzir-vos.
Chegamos à história de uma representação dada no Teatro de São Pedro, quinta-feira à
noite, em benefício de um artista nacional.
Conheceis a comédia, e por conseguinte saltemos por ela para ouvir a Jacobson cantar
a ária do Átila, que tão bem representava no Teatro Lírico.
Se a natureza não dotou a esta artista de uma voz doce e suave, deu-lhe em
compensação o gosto, o sentimento e a inteligência necessária para compreender todos os
mistérios desta arte divina que tem cordas para cada uma das pulsações do coração humano.
O beneficiado tocou no seu violoncelo uma fantasia do Trovador. Nesse momento,
algumas pessoas distintas que aí se achavam sentiram decerto um assomo de orgulho e de
brios nacionais, quando viram o artista brasileiro, filho da vontade e do estudo, arrancar
aplausos no meio dos hábeis instrumentistas estrangeiros que tão cavalheirescamente se
prestaram a coadjuva-lo.
.O violoncelo é um admirável instrumento. Fala, chora, geme e soluça como voz
humana; se não diz as palavras, exprime os sentimentos com uma força de expressão que
arrebata.
Como todos os instrumentos de cordas animais, ele tem com o coração humano essa
afinidade poderosa que faz que cada uma das vibrações daqueles nervos distendidos arranque
uma pulsação das fibras mais delicadas do homem.
Ainda uma página; a última do livro.
Voltamos ao Teatro Lírico para ouvir Ana Bolena em benefício do Bouché.
Ana Bolena foi uma das oito mulheres desse rei volúvel que estava destinado para
nascer sultão na Turquia, mas que por um capricho do acaso, tornou-se filho de uma rainha de
Inglaterra.
O caso é que tão mau como se diz que foi Henrique VIII, se ele não tivesse feito as
suas brejeiradas, nós não teríamos passado antes de ontem uma tão bela noite.
O que foi esta bela noite sabem os leitores: foi música de Donizetti cantada por Bouché
e pela Charton.
Ora, dizer que o Bouché cantou bem seria repetir o que já disse, e isto é sempre
monótono e aborrecido.
Quanto a Charton, que brilhou no romance e no rondó final, já não tenho nada de novo
que escrever.
Portanto, como os meus leitores não poderiam suportar que lhes falasse do Teatro
Lírico sem falar de sua cantora predileta, não há remédio senão, depois de esgotados os prós,
recorrer aos contras.
De agora em diante vou estudar-lhe os defeitos, e afinar o ouvido para ver se ela canta
em si bemol ou em la sustenido.
Naturalmente hei de descobrir alguma coisa, assim como já descobri que Casaloni
canta pelo nariz e que o Capuri é ventríloquo.
Não se admirem se me calo sobre Ghioni, a nova comprimária, que fez nessa noite a
sua estréia. Depois que Dufrene me enganou com as suas maneiras estudadas, não arrisco o
meu juízo senão depois da terceira representação.
Entretanto, enquanto nada me animo a dizer, ficam sabendo que a nova comprimária
tem uma bela figura em cena, e que foi aplaudida depois da ária do segundo ato.
O vestuário era todo novo, rico e a caráter. Henrique VIII estava trajado com muito
gosto; mas Ana Bolena tinha um feio roupão de veludo roxo dobrado de cetim azul com uns
galões de cor duvidosa, que por felicidade ficou esquecido à vista do elegante vestido de
cetim preto com que apresentou no último ato.
Todo este vestuário veio-nos instruir de uma verdade que não se encontra nos livros de
histórias; e é que naquele tempo os homens usavam de coleira e as mulheres de asas.
Ora, como as modas revivem, é natural que hoje se dê a mesma coisa; com a diferença
que senhoras e homens trazem as suas asas e coleiras escondidas para que ninguém as veja.
Antigamente havia mais franqueza.
Temos concluído felizmente a má tradução deste livro, que abrimos na primeira página
e percorremos até a última.
É natural que os meus leitores me perguntem o que havia no verso da página.
Eram notas sobre a política, apontamentos a respeito de alguns discursos
parlamentares, notícias curiosas do Paraguai, mas tudo em borrão, num tal estado de
confusão, tão mal escrito e tão sem nexo, que não me animo a traduzir-vos esses trechos
informes.
Prefiro antes dar-vos uma ligeira resenha de tudo, e fazer algumas pequenas
observações...
Mau! lá secou-se-me a tinta!
XXXIV
Rio, 10 de junho
Falemos de política.
É um tema muito delicado, sobretudo na época atual.
Mas o que é política?
Se a etimologia não mente, é a ciência do governo da cidade.
Pode ser que esta definição não lhes agrade; mas isto pouco me embaraça. Estou
expondo um novo sistema social; é natural que me aparte das opiniões geralmente admitidas.
Continuemos.
A política é o governo da cidade. A cidade se compõe de freguesias, de ruas, de casa,
de famílias e de indivíduos, assim como a nação de províncias e municípios.
Já se vê, pois, que a política deve ser também a ciência de bem governar a casa ou a
família, e de promover os interesses dos indivíduos.
Isto é lógico, e ninguém me poderá negar que, promovendo-se estes interesses, não se
concorra poderosamente para o melhoramento da freguesia, da província e finalmente do país.
Daqui resultam, portanto, dois grandes sistemas políticos, dois princípios únicos da
ciência do governo.
Um que procede à guisa da análise, que parte do particular para o geral, que promove
os interesses públicos por meio dos interesses individuais.
O outro é uma espécie de síntese, desce do geral ao particular, e, melhorando o país,
assegura o bem-estar dos indivíduos.
Este método, tanto em política, como em lógica, tem geralmente pouca aceitação: do
contrário os espíritos esclarecidos preferem a análise.
Quereis saber como se faz a análise em política?
Em vez de examinarem-se as necessidades do país, examinam-se as necessidades deste
ou daquele indivíduo, nomeiam-no para um bom emprego criado sem utilidade pública, e o
país se incumbe de alimenta-lo por uma boa porção de anos.
Lá chega um dia em que se precisa de um ministro, e lança-se mão daquele indivíduo
como de um homem predestinado, o único que pode salvar o país.
Eis, portanto, os favores feitos àquele indivíduo dando em resultado um benefício real
à causa pública; eis a política por meio do empenho – quero dizer da análise, - criando futuros
ministros, futuros presidentes, futuros deputados e senadores.
Alguns espíritos frívolos, que não têm estudado profundamente este sistema político,
chamam a isto patronato!
Ignorantes, que não sabem que cálculo profundo, que sagacidade administrativa é
necessária para criar-se um homem que sirva nas ocasiões difíceis!
Estes censuram o deputado que, em vez de se ocupar dos objetos públicos, trata dos
seus negócios particulares; falam daqueles que sacrificam os interesses de sua província às
exigências de sua candidatura de senador.
E não compreendem que estes hábeis políticos, promovendo os interesses de sua
pessoa, de sua casa e de sua família, não tem em vista senão auxiliar o melhoramento do país,
partindo do menor para o maior.
De fato, algum dia eles pagarão à nação tudo quanto dela receberam, em projeto de
reformas, em avisos, em discursos magníficos. Isto enquanto não vão à Europa passear e fazer
conhecida do mundo civilizado a ilustração dos estadistas brasileiros.
E há quem chame a isto patronato, empenho ou desmoralização! Como se em muitos
outros paises, e até na França, não estivesse em voga este mesmo sistema de governar!
Outrora se dividiam as forma de governo em república, monarquia representativa e
monarquia absoluta. Hoje está conhecido que estas duas divisões são puramente escolásticas,
e que não há senão duas maneiras de governo: o governo individual e o governo nacional, o
governo dos interesses particulares e o governo dos interesses do país.
Cada um deles pode conduzir ao fim desejado, procedendo por meios diversos.
Um,por exemplo, escolhe o indivíduo para o emprego, segundo a sua aptidão; o outro
escolhe emprego para o indivíduo, segundo a sua importância.
O primeiro ganha um bom empregado, o segundo um excelente aliado. Um pode errar
na escolha do indivíduo; o outro pode ser traído pelo seu protegido.
Se os meus leitores acham muito extravagante esta preleção política, têm bom remédio;
é não lerem segunda vez, se tiverem caído na atualidade.
Não pensem contudo que pretendo fazer concorrência às últimas declarações feitas na
Câmara dos Deputados; de maneira alguma.
Qualquer dos métodos ali apresentados é inquestionavelmente melhor do que o meu,
começando pelo de um nobre deputado de São Paulo.
Que política salvadora! Voltaremos ao tempo das revoltas, das perseguições, das
eleições armadas. Teremos uma espécie de fanatismos político, uma cruzada, a que se chama
saquaremismo puro!
Ora, é inegável que se podem obter grandes resultados com esta política. A revolução,
segundo dizem, é uma força civilizadora, regenera como o fogo, purifica como o martírio.
Portanto não há que hesitar! Adotemos esse programa salvador; arranjemos quanto
antes uma meia dúzia de São José dos Pinhais, e avante, que o futuro é nosso! A jovem
oposição entrará no senado, e teremos dado um grande passo para o engrandecimento da
nossa pátria.
E a respeito de política, estou satisfeito, quero dizer estou suficientemente enfastiado.
E, o que mais é, não tenho nada de bonito que dizer-vos. A semana que acabou foi
unicamente de esperanças. Todo o mundo esperava; nestes sete dias passados ninguém teve
um pensamento que não fosse uma expectativa.
Até quinta-feira esperou-se que a procissão de São Jorge fosse brilhante, e por isso uma
concorrência extraordinária enchia as ruas privilegiadas.
Quase todas as moças bonitas da cidade estavam reclinadas pelas varandas dessas
casas, tão tristes e tão soturnas nos outros dias.
Cada janela era um buquê; e como um buquê pode ser bonito ou feio, perfumado ou
inodoro, segundo as flores de que se compõe, deve cada um entender a palavra a seu modo.
Há gente que gosta da rosa, porque tem espinhos; há outros que preferem a violeta,
porque é modesta; e talvez que alguns apreciem o cravo amarelo, a papoula, e achem um certo
sainete no cheiro da arruda e do manjericão.
Para todos estes gostos havia flores nos buquês de que falei. O jardim era completo,
principalmente no que diz respeito a girassóis.
A procissão saiu.
Se ainda não sabeis, podeis ficar certo disto, assim como do logro que nos pregou.
Anunciavam uma procissão muito bonita, e saiu uma muito feia.
São Jorge apareceu vestido de novo, mas posso afiançar-vos que não estava à son aise.
Induzi isto da palidez, da cor de mortalha que tinha o seu semblante.
De fato o ativo guerreiro não podia estar ao seu gosto dentro daquele manto enorme,
que cobria cavaleiro e cavalo, de tal maneira, que de longe apenas se via um capacete e uma
capa que caminhavam com quatro pés.
Depois da imagem vieram as irmandades do costume; houve porém, uma que eu não
conheci, e que entretanto ia de envolta com a do Carmo; falo de uma que trazia capa amarela,
cor que não me consta tenha sido adotada por nenhuma confraria desta corte.
Depois de quinta-feira começou todo o mundo a esperar pelas ações da estrada de
ferro, e pelo resultado das cartas entregues à comissão, as quais montam já a mais de cinco
mil!
Nem os ministros, nem as moças bonitas, nem os lentes no tempo de exames, ou os
eleitores em época de eleição, são capazes de apresentar um tal número de billets doux.
A comissão tem, portanto, de fazer o milagre de Jesus Cristo, dividir esse pão, não em
fatias, porém sim em migalhas.
E é essa divisão que todos esperam ansiosos, calculando já pelos dedos os resultados
prováveis do emprego deste dinheiro que tem seguro um interesse de sete por cento.
Além desta expectativa, preocupou igualmente os ânimos a esperança de uma decisão
do governo a respeito da questão do Paraguai; porém, como todas as esperanças da semana,
esta ainda não se realizou.
Entretanto, apesar de não sermos dos mais entusiastas da política atual, estamos
convencidos que a resolução do governo, qualquer que seja, será ditada pela solicitude que
nos inspira a todos a honra e a dignidade nacional.
Enquanto o mundo da sociedade, que passa o seu tempo a brincar e a divertir. O baile
do Cassino na terça-feira equivale a uma expedição do Paraguai.
A diretoria, qual novo Pedro Ferreira, levou-nos para o salão da Fileuterpe, no qual
tiveram lugar as exéquias do baile aristocrático.
Diz Auguez que para muitos homens a vida começa num salão de baile e acaba na
sacristia de uma igreja.
Pode ser; mas o que sou capaz de apostar é que esse baile de que fala o escritor do
Mosqueteiro não teve de certo nenhuma semelhança com o de terça-feira.
A casa, que é uma excelente estufa para curar constipações, parece que foi construída
na Rússia ou na Sibéria, e de lá mandada vir de encomenda.
Demais, tem uma escada imoral, porque deixa ver as pernas de todas as moças e velhas
que sobem. Basta postar-se um homem no saguão durante a noite para fazer um estudo
completo da pernologia da cidade.
Pernologia é um termo novo que eu inventei na noite do Cassino, por não ter outra
coisa que fazer; mal sabia eu que me havia de servir dele tão cedo.
Quanto ao serviço do Cassino, não direi mais do que três palavras: não havia pão.
Um baile sem pão é uma falta imperdoável, é um atentado à galantaria, uma coisa
incompreensível.
E se não que reflitam no provérbio antigo, na máxima dos tempos em que se sabia
amar e se prezavam todas as belas-artes: Sine Cerere et Baccho friget Vênus.
Uma sociedade como o Cassino deve ter um serviço magnífico, um serviço delicado e
que não seja uma espécie de segunda edição do que se encontra por aí em qualquer
bailezinho.
Já me enfastia esta infernal monotonia, que me persegue em todas as reuniões. É um
drama em quatro atos que se repete mais do que os milagres de Santo Antonio. Ás dez horas –
primeiro ato – chá. Às onze horas – segundo ato – sorvetes. Á meia noite – terceiro ato –
empadas. A uma hora – quarto ato – chocolate.
Há mais de três anos que os bailes do Rio de Janeiro rezam por esta cartilha, e
reduzem-se a apresentar-nos empadas, como se já não estivéssemos faros delas.
E, a propósito de empadas, quero comunicar-vos umas reflexões que fiz há tempos
sobre o casamento, em um sábado de tarde quando passavam uns carros destinados para este
fim.
Em primeiro lugar, não pude deixar de estranhar que se escolhesse o sábado para a
celebração deste ato, quando, segundo a tradição popular, é neste dia que os diabos andam
soltos.
Depois, lembrei-me do que diz um escritor, cujo nome não me lembro; esse santo
homem, que naturalmente é celibatário, só compreende que se casem três classes de
indivíduos: os políticos, os ambiciosos de fortuna e os velhos reumáticos e caquéticos.
Os políticos desposam uma boa posição na sociedade, uma proteção valiosa, uma
família influente, um nome de prestígio. Para eles a mulher é um diploma.
Os ambiciosos casam-se com uma boa porção de contos de réis, com uma excelente
mesa, um palácio, e todas as comodidades da vida. Para eles a mulher é uma letra de câmbio,
ou uma hipoteca sobre boa herança.
Os velhos reumáticos casam com as cataplasmas e as tisanas.
Para estes a mulher é uma enfermeira, uma irmã de caridade, um xarope de saúde.
Além destas três classes gerais, há algumas exceções, que não deixam de ter a sua
originalidade.
Há sujeitinho que casa unicamente para dizer – eu casei; outros que mudam de estado e
deixam a vida de ser solteiros para fazer a experiência.
Alguns entendem que devem ter uma bela mulher na sua sala, assim como se tem uma
étagère, um lindo quadro, ou um rico vaso de porcelana de Sèvres.
Gostam de levar pelo braço uma bonita moça, porque faz o mesmo efeito que uma
comenda ou uma fita do Cruzeiro: chama a atenção.
Muitos casam para terem um autômato que lhes obedeça, sobre quem descarreguem o
seu humor, a quem batam o pé e ruguem o sobrolho, como Júpiter Olímpico.
Finalmente, uns dizem que casam por inclinação e por amor, isto é, casam porque não
têm motivo, e por isso são obrigados a inventar este pretexto.
Mas deixemos esta matéria vasta, e voltemos ao nosso pequeno mundo de seis dias.
Sabeis que vamos ter breve uma celebridade lírica no nosso teatro?
Temos tanto esperado, que já é tempo de uma vez cumprirem as velhas promessas que
nos costumam fazer.
A nova cantora, o novo rouxinol da Ausônia, que vem encantar as noites da nossa terra,
chama-se Emmy La Grua.
É uma bela moça, de formas elegantes, de grandes olhos, de expressão viva e animada.
A boca, sem ser pequena, é bem modelada; os lábios são feitos para esses sorrisos graciosos e
sedutores que embriagam.
Bem entendido, se o retrato não mente, e se aquela moça esbelta e airosa que vi
desenhada não é uma fantasia em crayon.
Quanto à sua idade, bem sabeis que a idade de uma moça é um problema que ninguém
deve resolver. Os indiscretos dizem que tem vinte e três anos; quando mesmo tenham trocado
os números, não é muito para uma moça bonita.
As belas mulheres não têm idade; têm épocas, como os grandes monumentos; nascem,
brilham em quanto vivem, e deixam depois essas melancólicas ruínas, em face das quais o
viajante da terra vem refletir sobre o destino efêmero das coisas deste mundo.
Terminando, tenho de dar-vos os meus parabéns pela escolha do novo senador pelo
Pará, o Sr. Conselheiro Souza Franco. É uma daquelas graças que honram a quem as faz,
honrando ainda mais quem as recebe.
Como sei que alguns dos meus leitores são amantes de originalidades, recomendo-lhes
que não deixem de ir contemplar uns jardins babilônicos que a Câmara Municipal e a polícia
estão mandando fazer na Rua do Ouvidor, esquina da Vala.
Tem a altura de cerca de quarenta palmos; e, se um dos jarros cair, poderá esmagar
algum pobre passante.
Mas é tão divertido, que não vale a pena proibi-los, por causa de tão mesquinha
conseqüência.
Deveis ter lido hoje no Correio Mercantil um artigo da Revolução de Setembro sobre o
tráfico de africanos no Brasil. Isto mostra quanto é apreciada, mesmo nos países estrangeiros,
a grande regeneração que devemos aos esforços do Sr. Eusébio de Queirós.
É também um motivo para que paguemos com generosidade quaisquer serviços que se
tenham prestado neste importante objeto; há dívidas sagradas que, uma vez contraídas,
importam a honra e dignidade do governo, que neste caso equivale a uma injúria; e o governo
não pode deixar de fazer calar essas queixas, ou pelo menos justificar-se delas.
XXXV
Rio, 17 de junho.
Sexta-feira, por volta de oito horas, ia meu caminho para o Teatro Lírico, assistir à
terceira representação da Ana Bolena, quando me entregaram uma carta que me era dirigida!...
Uma carta!...
De todas as espécies de escritos que eu conheço, a carta é sem dúvida a mais
interessante, a mais curiosa, e sobretudo a mais necessária.
A carta é um livro numa folha de papel, é uma história em algumas linhas, um poema
sem cantos; pode ser um testamento, uma confidência, uma entrevista, um desafio, uma boa
notícia, ou o anúncio de uma boa desgraça.
É um pássaro, uma ave de arribação, que voa a longes terras, aos climas mais remotos
para levar ao amigo ausente as palavras e os pensamentos da amizade ou do amor.
É uma espécie de fio elétrico que comunica através do espaço e da distância duas almas
separadas por uma infinidade de léguas, dois homens que muitas vezes nunca se viram, e que
entretanto se conhecem.
Quando deram este nome a esse pequeno paralelogramo de papel, que num minuto
pode devorar uma fortuna colossal, foi por analogia que talvez tenha escapado a muita gente.
Como a carta do baralho, a carta escrita produz as mesmas emoções, o mesmo delírio;
também ela tem seus lances de fortuna ou de azar no jogo da vida.
Se uma dama, ou um ás, ou um valete que se volta sobre o tapete verde, pode arruinar-
vos ou enriquecer-vos, da mesma maneira neste lansquenet do mundo a que se chama a
existência, uma carta que se escreve pode trazer-vos o sorriso da ventura ou a alegria do
desespero.
A única diferença é que o baralho tem quarenta cartas, e que a vida tem mil
alternativas. No mais a semelhança é perfeita, e todas as cartas deste mundo são uma e a
mesma coisa.
Deveis ter ouvido falar numa espécie de compromisso político, num salvatério que os
governos costumam dar às nações, e a que se chama carta.
Que é isto senão uma carta com a qual os governos e os povos jogam essa partida de
écarté político, na qual ganha o parceiro que marca seis pontos, isto é, que nomeia seis
ministros?
Por isso nós fizemos bem em trocar o nome pelo de constituição, que é mais
expressivo, e que não admite nem sequer esses jogos de palavras.
Tudo isto eram reflexões que me acudiam ao espírito enquanto seguia o meu caminho,
e procurava adivinhar pela forma e pela dobra o que continha a tal carta.
Bem sabeis que isto é uma arte preciosa; e que há sujeitinho capaz de adivinhar a mão
que escreveu uma carta, e o fim com que a escreveu, somente pela maneira por que se acha
dobrada e pelo papel do envelope.
Assim, uma cartinha fina, perfumada, macia, trai sempre a mulher; uma capa elegante
mas dobrada às pressas, indica geralmente o homem de Estado, um ministro, um funcionário,
enfim, sobre que pesa um trabalho invencível.
Ora, a minha carta não tinha parecença alguma com estas duas espécies descritas;
estava fechada simplesmente como qualquer carta que sai do correio.
Por isso, como nada tinha que me interessasse, meti-a no bolso e fui ouvir Ana Bolena,
sem mesmo ler-lhe o sobrescrito.
Aí levei a conversar sobre a nova reorganização ministerial; e, quaisquer que fossem as
opiniões daqueles com quem falei, a todos ouvi o mesmo pensamento e a mesma idéia sobre o
novo ministro, o Sr. Wanderley.
É inegável que este nome dá nova força e novo prestígio ao gabinete, que decerto não
podia fazer uma melhor aquisição.
Quanto à necessidade da completa retirada do ministério, isto é questão à parte, e sobre
a qual só daqui a algum tempo se poderá emitir um juízo seguro.
Entretanto felicitemo-nos por ver definitivamente reconstituído o governo do pais, que
durante os últimos dias deu sinais de uma solução definitiva.
Dizem que muitos não aceitarão a pasta; e por isso será bom cuidarmos desde já em
fazer do cargo de ministro uma espécie de guarda nacional ou de juro, a que nenhum cidadão
se poderá escusar.
É preciso de vez em quando fazermos um pequeno sacrifício pela pátria, por ela que
tantas vezes se sacrifica por nossa causa, por nossos interesses pessoais.
Se não lhe fizermos esses sacrifícios, quem preencherá os lugares de senadores,
deputados, presidentes, ministros e bispos de uma e outra igreja?
Além da reconstituição do gabinete, nada mais houve de interessante nos altos
domínios da política.
A Câmara dos Deputados esperava e desesperava, conforme os diversos boatos que
corriam pelos corredores a cada hora e a cada instante.
O senado (coincidência notável), enquanto o ministério estava em crise, discutia
magistralmente uma lei de pescarias.
Esta lei, apesar de muito bem sustentada pelo seu ilustre autor o Sr. Marquês de
Abrantes, sofreu no senado grande oposição.
Apesar da consideração que merecem as opiniões opostas ao projeto, cumpre atender à
penúria e à escassez de gêneros alimentícios, que quase todos os anos em certa época vai
aparecendo no nosso país.
Uma lei de pescarias, sabiamente elaborada, seria não só um importante ramo de
comércio e indústria, mas um meio eficaz de suprir no mercado a falta dos gêneros de
primeira necessidade.
Ultimamente tem-se falado muito o nome do Sr. Conselheiro Vicente Pires da Mota,
que deseja retirar-se do Ceará por incômodos de saúde.
Estamos convencidos que o governo empregará toda a sua solicitude para que o Sr.
Pires da Mota continue a dirigir a província, que tão bem tem acolhido a sua administração.
Quando, porém, qualquer mudança se dê, esperamos que o Sr.Marquês de Paraná faça
uma escolha acertada, nomeando um homem que tenha como o atual presidente, grande tino
administrativo e a energia necessária para vencer exigências absurdas de pequenas influências
locais.
É isto pelo menos o que exige a política do atual ministério, e a sua prudência
governativa, a fim de não termos de lamentar cenas desagradáveis, e de não retrogradarmos
de um estado, que, embora não seja o melhor, é contudo mil vezes preferível ao passado
odiento de alguns anos atrás.
Ainda uma palavra.
Temos na nossa administração um empregado de alto merecimento, de qualidades
eminentes, de uma inteligência e de um zelo provados por grandes serviços e importantes
trabalhos.
Falo do Sr. Dr. Eduardo Olímpio Machado, atual Presidente do Maranhão, que vai
dirigir a Província do Amazonas.
Estamos certos que, logo que haja oportunidade, o governo aproveitará melhor este
hábil administrador, que uma moléstia cruel impede de continuar a residir nas províncias do
norte.
Parece-nos mesmo que, se achando vagas algumas presidências de províncias do sul, se
faria a uma delas grande serviço, e ao Dr. Olímpio estrita justiça, nomeando-o para um desses
lugares.
Mas lá se ergue o pano, e, como desejo ouvir o terceiro ato sem perder uma nota, deixo
a minha conversa, e entrego-me todo à arte, à música.
Mas decididamente estava na noite das distrações.
Apenas a Charton começou a cantar o seu belo romance, o meu pensamento deixou-
me, e em menos de um segundo tinha transposto mares e serras.
Andava pela Europa, o brejeiro! Como eu não posso ir, ele mete-me inveja, e leva o
tempo a fazer-me figas.
Num minuto passeou pela Itália, viu Emmy la Grua aprontando-se para a sua viagem
de além-mar, e depois entrou em Londres, e foi a Convent-Garden ver a Julienne Dejean, que
representava a Norma.
Esta é uma moça encantadora, como dizem que é a linda italiana; não é uma Rosina
faceira e graciosa como a Charton, é uma mulher talhada para as grandes paixões, para as
comoções fortes e violentas.
Sua voz de soprano, ampla, sonora, de uma grande extensão e volume, dizem que tem
esses acentos do desespero, esses gritos d’alma, que fazem estremecer como um choque
elétrico, que fazem correr pelo corpo um calafrio de emoção.
É uma voz para o ciúme selvagem da Norma, para a vingança e para as paixões de
Lucrecia Borgia, para a ambição de Macbeth, para todos esses dramas enfim em que os
sentimentos trágicos atingem à sublimidade.
Entretanto esse mesmo timbre de voz torna-se doce, terno, sentimental quando a artista
traduz o amor feliz e essas delicadas emoções do coração que se expande.
Por isso afirmam que ela não tem repertório; canta a música italiana de preferência; e
executa qualquer ópera de soprano que lhe designem.
Com ela deve vir o tenor Tamberlik, que atualmente goza na Europa da reputação de
um dos melhores cantores no seu gênero.
Foi isto que o meu pensamento viu em viagem e que me veio contar, tirando-me assim
todas as minhas belas ilusões da noite.
Comecei a refletir sobre o destino das glórias deste mundo.
“Ainda esta noite, pensava eu, a Charton pisa a nossa cena lírica como rainha e como
soberana. Algumas reminiscências que nos deixou a Stoltz já estão apagadas. Brilha num céu
sem nuvens como o astro das nossas noites, murmura ao ouvido como o eco das harpas
eólicas, surge no meio de uma auréola de luz como o anjo da harmonia.
“Daqui a um mês, ou a dois talvez, quem sabe se não lhe arrancarão a sua coroa, e sei
de tantos buquês, de tantos aplausos, terá uma flor solitária e um simples monossílabo de
admiração, desses que partem espontaneamente do peito?”
Os abissínios foram um povo da antiguidade que, como os judeus, perderam a sua
pátria e se espalharam pelo mundo, misturando o seu sangue a todas as raças.
Quando o sol se ergue, todos se levantam; quando ele chega ao ocaso, todos se
recolhem, e tratam de dormir.
Há, porém, homens para quem a noite é mais bela do que o dia, para quem uma estrela
perdida no azul do céu é mais encantadora do que o astro-rei com todo seu fulgor.
Estes saúdam o sol quando nasce, mas à noite contemplam a estrela fugitiva e a
acompanham no seu caminho solitário.
Infelizmente, porém, ninguém neste mundo, depois de ter sido sol, deseja ficar estrela;
e este é o grande mal.
De tudo isto nada se conclui.
Esperamos.
O pomo da discórdia está lançado; o banquete lírico se prepara, e o público, como
Paris, tem de julgar.
Que julgue bem, porque a luta deve ser gigantesca como os combates da Ilíada e da
Odisséia, como as peregrinações da Eneida.
Aposto, porém, que já estais desesperados por saber da carta que recebi quando ia para
o teatro.
Chegamos a ela.
Era escrita em francês, e continha versos, versos feitos por mulher!
Devo, porém, prevenir-vos que não acreditei nem um momento na verdade da
assinatura; tomei por uma inocente brincadeira de algum amigo desconhecido, e como os
versos são bonitos, vo-los ofereço.
Eis a carta:
“13 de junho de 1855
“Monsieur. – Si vous voulez lês proteger, j’aurai lê courage de vous em envoier
d’autres.
A jeudi prochain.
Souffrez que je garde l’anonyme; ce petit air de mystère a um je ne sais quoi, qui me
rend plus hardie, ou plutôt moins craintive.
A vous d’amitié,
Elle.
DANS UM ALBUM
185
Dans votre álbum, ou la jeune amitié laisse
Des songes de bonheur, des projets d’avenir.
Pourquoi vouloir, ami, que ma sombre tristesse
Vienne jeter son deuil sur aussi doux loisir?
Vous ne savez donc os que lê rire de m lèvre
Déjà depuis çpngtemps ne va plus à mon coeur;
Et que de ce bonheur dont, hélas, on me sèvre,
Je crains même d’écrire lê nom si séducteur!
Moi aussi, j’ai connu ces jours pleins d’espérance
Quand je croyais à tout, aux promesses, au devoir,
Leur souvenir em moi éveille la souffrance,
Car ils ne m’ont laissé qu’un brulant dèsespoir.
Ce n’est dona pas la froid indifférence
Qui m’empêchait d’écrire um mot de souvenir;
Mais je ne voulais pás, vous dont la vie commence,
Que sitôt vous sussiez que vivre c’est souffrir!
Elle....
Rio de Janeiro
Bem vedes que, se é uma caçoada, é tão delicada e de tão bom gosto, que vale a pena
deixar-me enganar, quando mais não fosse, ao menos para dar à vossa curiosidade, minhas
belas leitoras, esse lindo tema para sobre ele fantasiardes à vontade.
É realmente uma mulher, uma mulher bonita que escreve lindos versos em francês, que
no fundo d’alma o desengano e no lábio o sorriso, como uma flor pálida que nasce entre as
ruínas, como essa chama lívida que lampeja um momento entre as cinzas quando o fogo se
extingue?
Ou será alguma mocinha tímida que vota à poesia as primícias de sua alma, e que deixa
cair sobre o papel, em versos, esses primeiros perfumes de um coração de dezoito anos, essas
primeiras flores da mocidade e do amor?
Podeis fazer, como estas, mil outras suposições, e aceitar aquela que mais vos agradar e
que mais se harmonizar com o vosso espírito e com os vossos sentimentos.
Quanto a mim, ou porque já estou um pouco cético a respeito dessas dores
concentradas e desses sofrimentos mudos que sorriem, ou porque me achasse em más
disposições para a poesia, o caso é que, apesar da letra fina e delgada, apesar do pronome da
assinatura, nem um instante acreditei que houvesse nisto dedo de mulher.
Vi logo que toda esta história não passava de uma engenhosa invenção de algum
sujeito que, ou queria abusar da minha boa-fé, ou se envolvia neste véu poético do mistério,
para obter de mim a publicação de seus versos.
Fiquei, pois, firmemente convencido que a tal assinatura de tão misteriosa significação,
não era outra coisa mais do que a letra inicial do nome do poeta, escrita por extenso – elle!
Também pode ser que o pronome deva ser lido em português, embora os versos sejam
franceses; e então toda a poesia desaparece diante desta transformação de sexo, produzida
pela mudança de línguas.
O que sei é que em tudo isto há uns olhos ou bonitos, de homem ou de mulher que
estão percorrendo estas linhas, e procurando com ansiedade ver se conseguiram enganar-me; e
queira Deus que um sorriso irônico não faça coro com esse olhar curioso.
Agora, minhas belas leitoras, deixo-lhes a decifração do enigma; e só lhes peço que, se
acaso acertarem com ela, não se tornem egoístas, e ma comuniquem, para rir-me também da
caçoada feita a todos nós.
Entretanto, se a nossa incógnita (incógnita em álgebra é comum de dois), se a nossa
incógnita continuar a mandar-me os seus versos, e se eles forem bonitos como os primeiros,
continuarei a publicá-los, e a dar-vos assim no meio da minha prosa chilra, algumas flores de
poesia.
Conversemos agora a respeito de teatros.
O Ginásio conseguiu fazer a excelente aquisição de uma nova artista, moça de
educação fina, e que promete um excelente futuro. É filha de um artista que já teve seus belos
dias no nosso teatro.
A nova artista deve estrear segunda-feira, num pequeno papel que lhe foi distribuído
para dar-lhe tempo a familiarizar-se com a cena.
O Teatro de São Pedro continua no mesmo estado. Breve, porém, o veremos
transformado em uma bela cena lírica, na qual alguns cantores de cartello, que dizem devem
chegar da Europa, nos darão noites bem agradáveis e bem animadas.
Com a rivalidade dos dois muito ganharemos na bondade dos espetáculos e no zelo dos
empresários.
XXXVI
Rio, 24 de junho
A Botafogo!...
Acompanhemos essa linha de carros que desfila pela Glória e pelo Catete; sigamos esse
numeroso concurso que vai pouco a pouco se estendendo pela praia, ao longo do parapeito.
O sol já descambou além dos montes; e as últimas claridades de um dia turvo e
anuviado, foram se extinguindo entre as sombras do crepúsculo.
Daí a pouco fechou-se a noite; e no meio da escuridão e das trevas sobressaía uma
multidão de luzes, refletindo-se sobre as águas do mar.
Ranchos de moças a passearem, bandas de música tocando nos coretos, senhoras
elegantes debruçadas nas janelas iluminadas, muita concorrência, muita alegria e muita
animação; tudo isto tornava a festa encantadora.
Quanto ao fogo, queimou-se às oito horas; dele só restam as cinzas no fundo do mar.
Não estranhem, portanto, que o respeite como manda a máxima cristã. Parcis sepultis.
Às dez horas, pouco mais ou menos, tudo estava acabado. A praia ficara deserta; e nas
águas tranqüilas da baía, apenas as nereidas murmuravam, conversando baixinho sobre o
acontecimento extraordinário que viera perturbar os seus calmos domínios.
Não é preciso dizer-vos que isto se passava domingo, no começo de uma semana que
prometia tantas coisas bonitas, e que afinal logrou-nos em grande parte.
Tivemos algumas boas noites de teatro italiano, e ouvimos o Trovador e o Barbeiro de
Sevilha, com uma linda ária do Dominó noir, que foi muito aplaudida.
Se é verdade o que nos contaram, brevemente teremos o prazer de ouvir toda essa
graciosa ópera, em benefício da Sociedade de Beneficência Francesa. A lembrança é feliz, e
pode realizar-se perfeitamente com o concurso dos artistas franceses que possui atualmente o
nosso Teatro Lírico.
A diretoria decerto não se oporá a uma representação, que, além do auxílio poderoso
que deve dar a um estabelecimento de beneficência, não pode deixar de fazer bem aos seus
artistas, fazendo-os conhecer num gênero de música diverso, e no qual é muito natural que se
excedam.
Quem sabe mesmo se, depois deste primeiro ensaio, a empresa não julgará
conveniente, para a variedade dos espetáculos e para excitar a concorrência, dar de vez em
quando uma pequena representação francesa?
Sei que a música italiana é a mais apreciada no nosso país; porém lembro-me ainda do
entusiasmo e do prazer com que foram sempre ouvidas em nossas cenas a Nongaret, a Duval e
mesmo a Preti.
Já que não podemos ter ao mesmo tempo uma companhia italiana e uma francesa, não
vejo porque não se hão de aproveitar os atores que atualmente possuímos, e, contratando mais
um ou dois, deram-nos algumas óperas francesas, que estou certo haviam ser mui bem aceitas.
Se não há algum obstáculo, que ignoramos, é de crer que a diretoria pense em fazer
valer este meio de tornar o Teatro Lírico mais interessante e mais variado.
As óperas francesas têm grande vantagem de não fatigarem tanto os atores como a
música italiana; e por conseguinte se faria um benefício aos artistas, reservando os meses da
força do verão para esse gênero de cantoria.
Assim, podiam-se das as representações italianas com maior intervalo, e não se
sacrificaria a voz de alguns cantores, obrigando-os a executar música de Verdi duas ou três
vezes por semana.
Fui-me deixando levar pelo gosto de advogar os vossos interesses, minhas belas
leitoras, e esquecia-me contar-vos uma cena terna que teve lugar sexta-feira no teatro, quando
se representava o segundo ato do Trovador.
Uns bravos e umas palmas fora de propósito acolheram a entrada em cena da Casaloni,
e continuaram enquanto ela cantava e seu romance da Cigana.
A princípio a artista procurou resistir à emoção que de certo lhe causava essa zombaria
imerecida; mas afinal o soluço cortou-lhe a voz e as lágrimas saltaram-lhe dos olhos.
Lágrimas de mulher... Quem pode resistir a elas?
Depois de alguns momentos de confusão, em que a cena ficou deserta e a música em
silêncio, a Casaloni entrou novamente em cena com os olhos rasos de pranto e a voz trêmula.
Neste momento é que eu reconheci bem o nosso público, e senti o coração generoso
que animava todo esse concurso de espectadores que enchia o salão.
Ninguém disse uma palavra; mas uma salva continuada de aplausos percorreu todos os
bancos de ponta à ponta: tudo que tinha um pouco de generosidade no coração e um pouco de
sentimento no fundo d’alma protestava contra aquela amarga zombaria, contra aquela ofensa
sem causa.
A mulher ofendida que chora é uma coisa sagrada e que se deve respeitar. Dizem que a
lágrima é o símbolo da fraqueza; entretanto quantas armas, quantos braços fortes não se têm
curvado ao peso dessa gota de linfa que não umedeceria sequer uma folha de rosa?
Deixemos aqui este episódio da semana, que não tem outro interesse senão o de
mostrar o efeito de uma imprudência, e de provar a delicadeza do público que sabe preferir
uma cantora, sem por isso ofender e maltratar a outras.
O Ginásio Dramático também teve esta semana uma noite feliz, honrada com a
presença de SS. MM., que se dignaram estender sobre ele sua benéfica e augusta proteção.
Representavam-se nessa noite duas comédias, cujos papéis foram muito bem
desempenhados pelo artista da pequena companhia, que parece se esmerou em dar provas dos
progressos sensíveis que tem feito.
O Episódio do Reinado de Jaques I é uma comédia histórica e de muito espírito; tem
algumas cenas de uma singeleza e de uma naturalidade encantadoras.
É um idílio de amor aos quinze anos, começado nos muros de uma prisão, à leitura da
Bíblia, e entre as flores de clematites, - que de repente se vê oprimido nos salões de um
palácio suntuoso, no meio das etiquetas da Corte.
O idílio esteve quase a transformar-se em drama ou tragédia; mas felizmente achou
refúgio num coração de rei, coração cheio de bondade e de virtude, e aí continuou a sorrir em
segredo até que...
Até que caiu o pano.
Todos os personagens estavam bem caracterizados e vestidos com bastante luxo e
riqueza para os recursos da pequena empresa, que não se poupa a sacrifícios sempre que se
trata de promover um melhoramento.
Suas Majestades prometeram voltar ao Ginásio esta semana. Neste fato devem os meus
leitores ver a prova a mais evidente dos serviços que este teatro vai prestando à arte dramática
do nosso país.
Animado por tão alta proteção, acolhido pela boa sociedade desta corte, o Ginásio
poderá brevemente estabelecer-se em um salão mais espaçoso e mais elegante, e aí abrir-nos
as portas ao prazer, à alegria, a um inocente e agradável passatempo.
No resto das noites, em que os teatros estiverem fechados, muita moça e muita família
passeou pela Rua do Ouvidor para ver o modelo de casamento da Imperatriz Eugênia, que se
achava exposto na vidraça do Beaumely.
As moças admiravam mais o vestido de cetim branco e o penteado, que dizem ser de
um gosto chic; os homens, porém, admiravam mais as moças que o vestido, de quem tinham
ciúme, porque lhes roubavam os olhares, a que supunham talvez ter direitos.
É incompreensível este costume que têm certos homens que gostam de uma mulher de
se julgarem com direito exclusivo aos seus olhares, sem que ela lhes tenha feito a menor
promessa.
Parece que o olhar de uma mulher bonita é como uma vaga de senador. Ninguém tem
direito a ela, o que quer dizer que todos o têm.
Assim um fashionable apaixona-se por uma bonita mulher, e, sem que ela lhe tenha
dito uma palavra, sem mesmo consulta-la, atravessa-se diante dos seus olhares, segue-a por
toda parte como a sombra do seu corpo, julga-se enfim com direito a ser amada por ela. Se a
moça de todo não lhe presta atenção e não se importa com a perseguição sistemática, o
apaixonado toma uma grande resolução, e despreza a mulher bonita de que ele realmente não
faz caso.
O mesmo sucede com a vaga de senador.
Um homem qualquer que tem quarenta anos, seja ou não filho de uma província, tenha
ou não a afeição dos povos de certas localidades, sem consultar os votantes, apresenta-se
candidato, enche o correio de cartas.
Se a província mostra não se importar com a sua candidatura, o homem de quarenta
anos toma igualmente uma resolução, renuncia à eleição a que tinha direito.
Ora, eu não sei como se chama o homem de quarenta anos que renuncia à vaga de
senador; mas o apaixonado que despreza a mulher bonita é conhecido entre certa roda pelo
título de comendador da Ordem dos Verdes.
Esta ordem é a mais antiga do mundo; é anterior mesmo à época da cavalaria e da mesa
redonda. Data dos tempos em que os animais falavam, e deve a sua origem a uma raposa
espirituosa, que numa circunstância memorável soltou esta palavra célebre: Estão verdes.
Muito tempo depois Eduardo III, apanhando a liga da Condessa de Salisbury, disse
também uma palavra, que é pouco mais ou menos a tradução daquela: Honny soit qui mal y
pense.
Assim como desta palavra se criou a jarreteira, estabeleceu-se muito antes a Ordem dos
Verdes, na qual são comendadores do número os namorados que desprezam as mulheres
bonitas, os ministros que recusam pastas, os patriotas que renunciam a candidatura, os
empregados que pedem demissão, e muitos outros que seria longo enumerar.
A insígnia da ordem é uma folha de parreira, que outrora foi o símbolo da modéstia e
do pudor.
A cor é o verde, como emblema da esperança; porque o estatuto da ordem embora
imponha a abnegação e o sacrifício de uma honra ou de um bem, não inibe que se trabalhe por
alcançar coisa melhor.
Os membros desta ordem gozam de grandes honras, privilégios e isenções, e
especialmente da graça de obterem tudo quanto desejarem. Para isso são obrigados apenas a
uma insignificante formalidade, que é não desejarem senão o que puderem obter.
Concluiria aqui esta revista, se não tivesse dois deveres a cumprir.
O primeiro é a respeito de uma questão que tem ocupado a imprensa desta corte, e que
atualmente se acha entregue aos tribunais do país.
Falo de abalroação da Indiana, simples fato comercial, a que a imprensa tem querido
dar o caráter de uma questão de classe e de brios nacionais.
Um estrangeiro que perde o seu navio não poderá defender os interesses do seu
proprietário e dos carregadores, somente porque semelhante defesa vai ofender a tripulação de
um vapor brasileiro?
Ninguém mais do que eu sabe respeitar o espírito de classe, e apreciar a generosa
fraternidade que prende os homens de uma mesma profissão; porém confesso que essa
maneira de identificar o homem com a classe, de julgar do fato pelo mérito pessoal, não é a
mais acertada para a questão.
O comandante do vapor Tocantins pode ser um excelente oficial, a sua tripulação pode
ser a melhor, e entretanto ter-se dado um descuido que ocasionasse o sinistro.
Felizmente hoje a questão vai ser perfeitamente esclarecida por testemunhas imparciais
e dignas de todo o sinistro.
O Tocantins foi encontrado na mesma noite de 11, meia hora antes do sinistro, por um
navio cujo capitão já atestou que o vapor trazia apenas uma luz ordinária, e não tinha sobre as
rodas os faróis verde e encarnado.
Como este, existem muitos outros depoimentos importantes que aparecerão em tempo
competente, e que mostrarão de que parte está a verdade e o direito.
O segundo ponto sobre que tenho de falar é a respeito dos espetáculos líricos no Teatro
de S. Pedro de Alcântara, dos quais tratei na revista passada.
Um correspondente do Jornal do Comércio contesta a possibilidade desses espetáculos
em virtude de um privilégio dado à atual empresa lírica.
Entretanto semelhante privilégio não pode existir; se o governo o concedeu, praticou
um ato que não estava nas suas atribuições, um ato nulo, porque é inconstitucional.
Não é monopolizando uma indústria já conhecida no país, não é destruindo a
concorrência que se promove a utilidade pública.
A própria diretoria do Teatro Lírico deverá desejar esta concorrência; porque se, como
ela supõe a nova empresa não levar avante, dando-lhe nova força e novo prestígio.
Ainda voltarei a esta questão, que na minha opinião interessa muito ao futuro da arte
nesta corte.
Por hoje faço-vos as minhas despedidas.
Vamos ver as fogueiras de São João, brincar ao relento, e recordar as poéticas e
encantadoras tradições de nossos pais.
P.S. – À última hora recebo a minha carta prometida para quinta-feira; desta vez
reservo para mim a carta, e dou-vos unicamente os versos.
O pronome (em falta do nome) persiste em ser lido em francês, e não em português;
porém agora afianço-vos que estou convencido do contrário.
Podeis crer-me.
CONFIDENCES
Si tu vois une femme au sourir caressant,
Au limpide regard, à la marche assurée,
Et dont l’air de triomphe est toujours ravissant,
C’est qu’elle aime déjà, et sait qu’elle est aimée.
Si tu vois une femme à la marche incertaine,
Au long regard abaissé, à la voix animée,
Et ne se livrant jamais à une joie soudaime
C’est qu’elle aime, et doute si elle sera aimée.
Mais, si tu vois celle au regard triste et morne,
Dont lês mouvements brusques et la voix saccadée
Viennent montrer encore tout l’amour qu’elle donne
A celui qui l’aime, et qui l’a délaissée,
Oh! ne ris pás, ami! Sa douleur est poignante,
Elle ne croit plus à rien; sa raison égarée
Fait qu’elle ne desire que d’arriver mourante
Aux pieds de celui qui est toute sa pensée.
Puisque jamais, jamais, cette voix si aimée
Ne parlera plus pour elle le langage du coeur,
Elle que désormais le triste cours de sa vie
Ne sera plus marqué por un jour de bonheur.
Car il est vrai que les fêtes de ce monde
Passent sur la douleur sans jamais la guérir;
Et que celui qui souffre une peine profonde,
Peut assister aux joies sans jamais les sentir.
Elle....
Rio de Janeiro, 1855.
XXXVII
Rio, 8 de julho.
Se não quereis ficar doido, abandonai a cidade, fugi para Petrópolis, ou fechai-vos em
casa.
Sobretudo não vos animeis a deitar a cabeça à janela ou a sair à rua, ainda mesmo de
noite.
Apenas derdes os primeiros passos, encontrareis um homem grave, que vos apertará a
mão como antigo conhecido.
Pensais que vai perguntar pela vossa saúde, ou falar-vos de algum negócio particular?
Enganai-vos completamente.
Desde terça-feira que não há nesta grande cidade senão um negócio. A forma vulgar da
saudação, o clássico bons dias, foi substituído por um cumprimento mais cheio de interesse e
solicitude:
-Então, quantas teve?
-vinte.
-Ah! dou-lhe os parabéns.
E o sujeito deixa-vos com um pequeno sorriso de despeito ou de vaidade satisfeita.
Daí a dois passos encontrais um outro conhecido de mãos nos bolsos e chapéu à banda.
-Meu amigo, quer vender?
-O que, senhor?
-As suas ações.
-Ah! as minhas ações! Não se vendem.
-Pois, se quiser, fico com todas as dez.
Este especulador, que tomais por um comprador de ações, está desesperado por vender
as suas antes do dia onze.
Mais adiante tomam-vos o braço de repente, e vos arrastam para a porta de uma loja
ou para alguma esquina deserta.
-Quero pedir-lhe um favor.
-Pois não, senhor.
-Em quem vota?
-Em... Não sei ainda.
-Pois então peço-lhe o seu voto para o meu candidato.
-É membro da comissão?
-Não.
-Pois então está servido.
-Fico-lhe muito agradecido.
E continuais o vosso caminho, já um pouco azoado.
-Psiu!...psiu!
É um amigo que vem a correr, naturalmente para participar-vos alguma novidade
importante.
-Sabe alguma coisa de novo?
-A respeito...
-Ora, a respeito das ações.
-Não; não tenho ouvido dizer nada.
-Fala-se numa segunda errata.
-Qual! não tinha jeito nenhum.
-Como! O regimento de custas era obra de jurisconsultos, e teve duas erratas.
-Tem razão!
-Adeus.
Quando pensai que vos desvencilhais do homem das erratas, caís nas mãos de um
esquecido, que trata de comentar a grande lista dos agraciados, de princípio a fim.
Começa a calcular pelas famílias, depois passa a analisar os indivíduos, examinar a sua
profissão, e por fim entra no vasto campo dos paralelos e das comparações.
O homem tem na memória uma certidão de batismo de cada um dos agraciados, e um
registro dos bens, da morada e do gênero de vida de todos os agraciados na grande loteria do
caminho de ferro.
Se o deixarem falar, disserta cinco horas a fio, sem copo d’água, sem mesmo temperar
a garganta, sem fazer uma pausa, nem titubear numa vírgula.
Afinal vos larga para ir continuar além a sua propaganda, para ir pregar a nova cruzada
contra os homens da comissão.
Assim enfastiado, aborrecido de todas estas coisas, tendo gasto inutilmente o vosso
tempo, entrais no Wallerstein para conversar com algum amigo que não esteja contaminado.
Achai-vos no círculo de flâneurs, que passam o tempo alegremente a divertir-se a
semear algumas flores neste vale de lágrimas.
Conversa-se sobre as novidades do dia, sobre a probabilidade da vinda de Thalberg e a
notícia do contrato da Stoltz, sobre a próxima representação lírica em favor da Beneficência
Francesa.
Se falais de uma moça elegante, de um lindo toilette preta que brilhava um desses dias
nos salões, de uns bonitos olhos e de uns requebros graciosos, vos interrompem de repente:
-O pai não teve ações!
Se vos lembrais da Charton na Filha do Regimento, e se despertais todas as vossas
belas recordações para sacia-las segunda-feira, ouvindo aqueles gorjeios maviosos de envolta
com as facécias do Ferranti, não vos deixam acabar.
-É verdade, diz um, a propósito de Ferranti, deram-lhe dez ações!
E saís desesperado, correndo para a casa antes que vos venham atordoar novamente os
ouvidos com a maldita palavra que está na ordem do dia.
Quanto mais se soubésseis o que é realmente para toda a sociedade a lista que
publicaram na terça-feira os jornais diários da corte.
É uma espécie de cadastro, de registro, de livro negro da polícia, no qual se acham
escritas as ações de cada um, por conseguinte o seu talento, a sua virtude, a sua consideração
na sociedade.
As moças lá vão procurar os nomes dos noivos; os negociantes indagar se os seus
devedores merecem a continuação do crédito; os amigos saber o grau de amizade que devem
despender mutuamente.
Os curiosos divertem-se com as comparações, e os parasitas estudam os nomes
daqueles a quem devem tirar o chapéu ou fazer simplesmente um cumprimento de proteção.
E assim são as coisas deste mundo.
Dante os homens tinham as suas ações na alma e no coração; agora tem-nas no bolso
ou na carteira. Por isso naquele tempo se premiavam, ao passo que atualmente se compram.
Outrora eram escritas em feitos brilhantes nas páginas da história, ou da crônica
gloriosa de um país; hoje são escritas num pedaço de papel dado por uma comissão de cinco
membros.
Aquelas ações do tempo antigo eram avaliadas pela consciência, espécie de cadinho
que já caiu em desuso; as de hoje são cotadas na praça e apreciadas conforme o juro e
interesses que prometem.
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Mas temos muita coisa agradável sobre que conversar, e não vale a pena estarmos a
gastar o nosso tempo com esta questão de jornais.
Enquanto senadores, deputados, empregados públicos, desembargadores, negociantes e
capitalistas correm à praça para saber a cotação das ações, vamos nós para o teatro ver o
benefício do Gentile.
O público deu-lhe todas as demonstrações de apreço e simpatia; os ramos de flores e os
versos choveram dos camarotes, e a Charton cantou melhor do que ela mesma costuma cantar.
É um pouco difícil, mas é verdade. Há certas noites em que se conhece que não é a
obrigação que a faz cantar, mas a inspiração, um movimento espontâneo, uma necessidade de
expansão.
Nestas noites canta como o poeta que escreve versos inspirados, como o pintor que
esboça o quadro que a sua imaginação ilumina, como a alma triste que dirige a sua prece a
Deus, como a moça que sorri, como a flor que se expande, como o perfume que se exala.
Os lábios vertem os eflúvios d’alma, as melodias que um gênio invisível lhe murmura
aos ouvidos, os segredos divinos que alta noite, a horas mortas, lhe contaram as estrelas, as
sombras, as brisas que passavam sussurrando docemente.
Mas isto são coisas que se sentem, que se compreendem, e que não se explicam. Ouvi
um artista cantar num dos seus bons dias, e percebereis essa nuança inexprimível que vai de
bem representar o bem sentir.
Ia-me esquecendo dar-vos notícia do vosso pequeno teatro, do vosso protegido, minhas
belas leitoras.
Se soubésseis como vos agradece a bondade que tendes tido em anima-lo, como se
desvanece pelo interesse que vos inspira!
Agora já não é somente um pequeno círculo de homens de bom gosto que aí vai
encorajar o seu adiantamento e aplaudir aos seus pequenos triunfos.
Na balaustrada dos seus camarotes se debruçam as senhoras mais elegantes, as moças
as mais gentis dos nossos aristocráticos salões.
O lindo rosto expandindo-se de prazer, o sorriso da alegria nos lábios, elas esquecem
tudo para interessar-se pelo enredo de uma graciosa comédia.
E depois a sua boquinha feiticeira vai repetir no baile, ou na partida, uma frase
espirituosa, um dito chistoso, que requinta de graça, conforme os lábios são mais ou menos
bonitos.
No Teatro Lírico podeis ver um semblante triste, uns olhos vendados pelos longos
cílios de seda, uma fronte pensativa e melancólica.
Mas no Ginásio o prazer roça as suas asas d’ouro por todos esses rostos encantadores; e
bafeja com o seu hálito celeste todos os pensamentos tristes, todas as recordações amargas.
Tudo sorri; os olhos cintilam, as faces enrubescem, a fronte brilha, o gesto se anima, e
a alma brinca e se embala nas emoções doces, calmas e serenas.
A dor, a tristeza, a velhice e o pensamento, nada há que resista a esta franca
jovialidade, que como um menino travesso não respeita nem as cãs, nem as lucubrações
sérias, nem a gravidade e a sisudez.
E quando por volta da meia-noite vos retirais, ides satisfeito, julgando o mundo melhor
do que ele realmente é.
E tudo isto é obra vossa, minhas amáveis leitoras: podeis ter este orgulho. Fostes vós
que criastes este teatro; que o animastes com um sorriso, que o protegeis com a vossa graça, e
que hoje o tratais como vosso protegido.
Entretanto peço-vos que, quando tiverdes ocasião, não lhe deixeis de dar umas dessas
doces repreensões, uma dessas ligeiras advertências, como só sabem dar os lábios de mulher.
Dizei-lhe que faça com que seus artistas decorem melhor os papéis, e aprendam a
pronunciar com perfeição os nomes estrangeiros.
Esqueci-me de pedir-vos isto naquela brilhante reunião em que vos encontrei seta-feira,
tão bonitas, tão satisfeitas, tão risonhas, que bem se via que esta noite tem de ficar gravada na
vossa memória, até que outra a venha fazer esquecer.
E agora atirai o jornal de lado, ou antes passai-o ao vosso marido, ao vosso pai ou ao
vosso titio, para que ele leia o resto.
Bem entendido, no caso de que não esteja pensando em ações, porque então é
escusado; não me dará a atenção de que eu preciso para falar a respeito da discussão que tem
havido ultimamente na câmara.
O Sr. Sayão Lobato fazendo a exumação dos partidos políticos, procurou demonstrar
que as idéias liberais tinham sido sempre estéreis para o país.
Em resposta duas vozes se ergueram; a do Sr. Melo Franco que defendia seus aliados,
ea a do Sr. F. Otaviano que tomou a si a causa nobre do fraco e do proscrito.
Perdoe-nos o ilustre orador, que com tanto afã defende o passado de seu partido e que,
apesar de magistrado imparcial se mostra parcialíssimo político nos seus retrospectos
históricos.
Se o partido liberal não escreveu leis de 3 de dezembro, e não fez grande cópia de
regulamentos, nem por isso deixou de fecundar as instituições do país com o germe
civilizador de sua idéia, de suas crenças, de sua constância em pugnar pelas reformas úteis e
necessárias.
A sua história é a história de muito pensamento generoso e nobre no nosso país, desde
a sua independência até a calma e tranqüilidade de que atualmente gozamos.
Foi ele que nos deu, e que tem defendido ardentemente o júri e a imprensa; foi ele que
primeiro proclamou o princípio das incompatibilidades, das eleições diretas, da independência
do poder judiciário, que iniciou todas estas reformas que hoje se trata de realizar.
Não podemos estender-nos mais; porém em qualquer tempo aceitaremos com o maior
prazer esta discussão; pela nossa vez também, revolveremos as cinzas dos túmulos, mas para
honrá-las, esquecendo os erros dos mortos, e não para profana-las excitando o desprezo dos
vivos.
Os partidos desapareceram da cena política; pertencem ao domínio da história. Simples
investigadores, podemos apreciar os fatos com a calma necessária, sem sermos influenciados
por interesses pessoais.
*
E agora, vem minha boa pena de folhetinista, minha amiga de tantos dias, companheira
inseparável dos meus prazeres, confidente de meus segredos, de minhas mágoas, dos meus
prazeres.
Vem! Quero dizer-te adeus! Vamos separarmo-nos, e talvez para sempre!
Tenho saudade desses dias em que brincava comigo sorrindo-me, coqueteando,
desfolhando as flores da imaginação, e levando-me por estes espaços infindos da fantasia.
Oh! tenho muita saudade! Sempre me lembrarei dessas nossas conversas íntimas ao
canto de uma mesa, com os olhos nos ponteiros do relógio, aproveitando as últimas claridades
do crepúsculo para recordar ainda algum fato esquecido.
Mas é necessário. Faço-te este sacrifício, bem que me pese, bem que o levem a mal os
meus melhores amigos.
Os outros te esquecerão, mas eu me lembrarei sempre de ti: basta isto para consolar-te.
SEGUNDA PARTE
FOLHETINS DO “DIÁRIO DO RIO”
(De 7 de outubro de 1855
a 25 de novembro de 1855)
1
7 de outubro de 1855
Correi, correi de novo, minha boa pena de folhetinista!
És livre, como tuas irmãs, que cortam os ares nas asaa ligeiras; abri o vôo, lançai-vos
no espaço.
Avante.
Mas como estão mudados os tempos; como são diferentes os dias de agora, daquelas
semanas em que brincavas sorrindo com os bailes, com as moças, com a música, com tudo
que era belo e sedutor!
Então tudo eram flores, - flores mimosas que desabrochavam aos raios de um belo sol
de primavera, - que brilhavam sob um céu azul perfumando aqueles dias tão tranqüilos e tão
serenos.
Hoje as rosas murcharam, o céu turvou-se; e nesta sáfara da vida por que passamos
atualmente, apenas florescem os cardos com seus espinhos, as saudades com a sua
melancolia, e os goivos com o seu triste emblema.
Felizmente todo o deserto tem seus oásis, nos quais a natureza por um faceiro capricho,
parece esmerar-se em criar um pequeno berço de flores e de verdura, concentrando nesses
cantinhos de terra toda a força de seiva necessária para fecundar as vastas planícies.
Assim nesta quadra de amarguras e sofrimentos, encontram-se de espaço a espaço
alguns corações ricos de virtudes e de sentimento; são os oásis deste tempo.
Aí sim; aí há flores; não as rosas brilhantes de outrora ou as camélias aveludadas dos
salões; mas as flores modestas, filhas da sombra e do retiro, as flores do – sentimento, as
violetas.
Vós, minhas leitoras, que sabeis sentir, bem compreendeis o que são estas violetas de
que falo; são as flores singelas de vossa alma, - a caridade, a beneficência, o zelo e a
abnegação.
Também me compreendem os pobres e infelizes, que tantas vezes durante estes tempos
de provação tem sentido os perfumes suaves, a fragrância consoladora dessas flores do
coração, - flores que desabrocham orvalhadas com as lágrimas da desgraça e do sofrimento.
E sobre tudo isto, há ainda a religião, - a nossa bela religião de Cristo, - mãe extremosa
de todos os órfãos, - a irmã desvelada de todos os infelizes, - a amiga e companheira fiel dos
pobres, - a consoladora de todas as misérias, e todas as aflições.
É ela que nos há de dar força e coragem para atravessarmos com resignação esses dias
de atribuição, que felizmente parece irão pouco a pouco se acalmando, até nos deixarem
aquela serenidade dos belos tempos de que hoje temos tanta saudade.
E agora, minhas leitoras, deixai-me dar-vos um conselho, que estou certo haveis de
acolher com toda aquela amabilidade com que outrora acompanháveis os ziguezagues desta
minha pena caprichosa, que bem vezes vos dava sérios motivos para um arrufo, para um
enfado.
Voltemos porém ao conselho; não penseis já que é algum conselho muito grave, muito
sério, vestido de calça e casaca preta com gravata branca, - à guisa de um antigo conselheiro
da coroa.
Não; - é um pequeno conselho bem próprio para moças bonitas como sois, - um
conselho que tem além de todas as outras vantagens, o merecimento de mostrar as pérolas de
vossos dentes, e de fazer da vossa boca uma florzinha cor-de-rosa.
Aconselho-vos, que apesar dos tempos em que estamos, apesar de tanta tristeza e
melancolia que envolve esta bela cidade, apesar de tudo, apesar mesmo das lágrimas, não
deixeis de sorrir.
Notai porém que eu digo simplesmente sorrir e não rir.
O riso, é esta expressão vulgar com que exprimimos a alegria, e o humor; é muitas
vezes mesmo um movimento nervoso, sem sentido sem significação, um hábito que se
contrai como tantos outros, como o costume de estalar os dedos, de alisar o bigode, ou
endireitar o colarinho.
Assim rir, quando alguém sofre, quando nossos irmãos padecem, é uma ofensa amarga,
um insulto à dor e a desgraça; porque esse riso, se não é um escárnio, é uma indiferença fria.
É uma insensibilidade estúpida.
Mas o sorriso, é diferente.
O sorriso, é esta exalação da alma, que nos momentos de calma e tranqüilidade vem
desabrochar nos lábios, e abrir-se como uma dessas flores silvestres que o menor sopro
desfolha.
Nunca vistes nas noites cálidas e límpidas, essas estrelas brilhantes que atravessam o
horizonte, traçando no espaço um rasto luminoso, e brilhando um momento entre a escuridão
das trevas?
Dizem que isto é um efeito da eletricidade. Pois o sorriso, - como as estrelas filantes, -
é produzido também por esse choque de emoções, e de sentimentos, que se pode bem
considerar como a eletricidade moral.
Portanto não há mal nenhum, minhas belas leitoras, em que deixeis vossos lábios
sorrirem, e vossas almas expandirem-se no lindo rosto; há sorrisos alegres, porém, também os
há serenos, tristes e melancólicos.
Demais, peço-vos isto também por nós. Que quereis que façamos, se nestes dias aflitos
não virmos brilhar uma estrela, uma flor, um sorriso?
Quanto a mim, sou como o marinheiro do Mediterrâneo, perdido na vasta amplidão dos
mares, batido pela procela, que no meio da escuridão e do vendaval, apenas vê brilhar no céu
uma estrela furtiva, sente-se reanimado, cria novas forças, e murmura a sua prece. Ave Maria
Stella.
Assim no meio dos desgostos e das tribulações, quando virdes um sorriso despontar
nos lábios de uma linda mulher que vos ame, podeis fazer como o marinheiro; ajoelhai e
murmurai a vossa prece. Ave Maria Stella.
Portanto, minhas belas leitoras, sorri, sorri sempre, como sorri o céu, o mar, e tudo que
é belo; porque foi este o destino que deus deu as coisas mimosas: porque é esta a missão que
representam neste mundo a beleza e a graça.
E quando quiserdes sorrir, não esquecei o vosso protegido, o Ginásio, aquele pequeno
e lindo teatro, sobre o qual tantas vezes conversamos outrora, nos domingos.
Ainda é o mesmo; sempre digno da vossa solicitude, sempre esforçando-se em
corresponder a amabilidade com que o tratais.
Depois que nos separamos tão repentinamente, tem havido nele muita coisa de novo,
muita representação interessante; porém de tudo o que se me tem contado, a mais bela noite
do Ginásio foi a de quinta-feira, - em que teve lugar o benefício dos pobres.
Se eu já não soubesse, minhas leitoras, que amais de coração este bom teatrinho, que
vos dá tantas horas de agradável passatempo, podia contar que depois deste ato de
beneficência, não lhe recusaríeis a vossa proteção, e sobretudo a vossa presença, que é a
maior proteção que pode dar uma linda moça.
Não sei sobre que mais hei de falar-vos que já não tenha sido dito e repetido pôr tantas
penas delicadas, que vos apresentam todos os domingos a história da semana.
Sobre Norma?
Quem é que não foi ver no teatro lírico esta criação de Emy La Grua; quem não ouviu
esse canto inspirado e profundo que os faz correr pelo corpo um arrepio de emoção?
Norma, como a vi num desses dias no teatro lírico, fez-me compreender o episódio da
Velleda dos Mártires de Chateaubriand, que, segundo dizem, forneceu o assunto deste
pequeno poema de paixão violenta, de ciúme selvagem, e de amor sublime.
Falam pôr aí de algumas exagerações que pretendem haver na criação deste papel
dramático; mas quem assim pensa, não tem uma verdadeira idéia da arte.
Pôr mim, não concebo que um crítico possa dizer ao poeta, ao artista, ao gênio, enfim
como Deus disse ao mar: - Vós não passareis daqui.
Desde o momento em que o homem, nos vôos de sua inteligência se eleva acima das
circunstâncias ordinárias da vida, desde que o seu pensamento se lança no espaço, possuído
desse desejo ardente, dessa inspiração insaciável de atingir ao sublime, não é possível marcar-
lhe um dique, um ponto que lhe sirva de marco.
Ide dizer ao poeta que não deixe correr a sua imaginação pelos espaços infinitos da
fantasia, - ide dizer ao pintor que force o seu pincel quando corre inspirado sobre a tela, e eles
vos responderão que o pensamento que os anima neste instante escraviza e esmaga a sua
vontade; que a alma e o corpo cedem à força da inspiração que os arrebata neste momento.
Como o poeta, como o pintor, é o artista dramático, quando se acha possuído de seu
papel, quando sente abrasar-se-lhe nas veias o fogo sagrado; é preciso ainda notar que este
tem mais um motivo para deixar-se arrastar, tem os aplausos e os bravos de uma multidão
inteira.
Assim, tudo isto a que vulgarmente chamam exagerações, são apenas os arrojos da
imaginação do artista, os primeiros esboços de sua criação, que ele ainda não teve tempo de
polir e de limar; pôr isso se houverdes visto a Norma todas as vezes como eu, de certo tereis
reparado que cada dia uma dessas exagerações vai tomando nova forma, vai-se desenhando
mais brilhante, mais luminosa, como um painel que se retoca.
Pôr tudo isso que tenho escrito, não penseis que me faço um defensor cego de La Grua,
um defensor quand même da cantora que é hoje a estrela brilhante do teatro Lírico.
Não: - nem ao público, nem a ela, nem a nós, conviria uma admiração tão cega, que
excluísse a franqueza, quando pôr acaso se tornasse necessária.
O artista, a quem julgo ofender dizendo-lhe a verdade, e apontando-lhe um erro, - é
sempre um artista medíocre que vive da sombra da glória, sem merecimento real.
Pôr isso nós, com Emy La Grua, faremos, se for necessário, como dizia Afonso Karr a
propósito das mulheres bonitas; faremos como o escultor que talha o mármore de uma estátua,
não para ofende-la, mas para modelar-lhe as formas elegantes e arredondar-lhe os mimosos
contornos.
Se for necessário, o dissemos nós, porque parece-nos que nunca teremos ocasião de
fazer de nossa pena de folhetinista um buril de escultor.
Al.
II
21 de outubro de 1855
Estava olhando para o fundo do meu tinteiro sem saber o que havia de escrever, e de
repente veio-me à idéia um pensamento que teve Afonso Karr, quase que em idênticas
circunstâncias.
Lembrei-me que talvez aquela meia onça de líquido negro contivesse o germe de muita
coisa grande e importante. E que cada uma gota daquele pequeno lago tranqüilo e sereno
podia produzir uma inundação e um cataclismo.
De fato o que é um tinteiro?
É a primeira vista a coisa mais insignificante do mundo; um traste que custa mais ou
menos caro, conforme o gosto e a matéria com que é feito.
Entretanto, pensando bem, é que se compreende a missão importante que tem um
tinteiro na história do mundo, e a influência que pode exercer nos futuros destinos da
humanidade.
Assim pôr exemplo, aquele meu tinteiro, que ali está encestado a um canto, se pôr
voltas deste mundo fosse parar a Europa, podia tornar-se célebre na história do gênero
humano.
Lamartine ou Vitor Hugo se quisessem tirariam dali um poema, um drama, um livro
cheio de poesia e de sentimento.
Rotschild, ou qualquer banqueiro da Inglaterra, podia com uma simples gota fazer
surgir milhões e produzir de repente uma nova chuva de ouro.
Qualquer mulher bonita, com um só átomo daquela tinta, faria a felicidade de muita
gente escrevendo na sua letrazinha inglesa três ou quatro palavras.
Meyerbeer ou Rossini num momento de inspiração achariam ali uma ópera divina, uma
música sublime, como o Trovador, a Semiramis, ou o Nabuco
Enfim, o papa amaldiçoaria o mundo inteiro, como acaba de fazer com o Piemonte;
Napoleão declararia a guerra à Europa; a Inglaterra levaria a destruição pôr todos os mares; e
a guerra à Europa; a Inglaterra levaria a destruição pôr todos os mares; e a guerra do Oriente
se terminaria de repente.
E tudo isto, todas essas grandes revoluções, todos esses fatos importantes, todas essas
coisas grandes, dormiam talvez no fundo do meu tinteiro, e dependiam apenas de um capricho
do acaso.
Para mim porém, para mim, obscuro folhetinista da semana, o que podia haver de
interessante nas ondas negras da tinta que umedecia os bicos de minha pena?
Um devaneio sobre o teatro lírico, uma poesia sobre algum rostinho encantador, uma
crítica mais ou menos espirituosa sobre a quadra atual, tão fértil em episódios interessantes
para uma pena que os soubesse descrever e comentar?
A minha pena porém, já não presta para essas coisas; de travessa, de ligeira, e alegre
que foi em algum tempo, tornou-se grave e sisuda, e olha pôr cima do ombro para todas essas
pequenas futilidades do espírito humano.
A culpa porém não é dela; é a influência diabólica dessa quadra, que merece ser riscada
dos anais da crônica elegante.
De fato, como se pode hoje brincar sobre um assunto, escrever uma página de estilo
mimoso, falar de flores e de música, se o eco da cidade vos responde de longe: - Pão, -
epidemia, - socorros públicos, - socorros públicos, - enfermaria!
Estais no teatro, esquecido deste mundo e de suas misérias, ouvindo a Grua cantar
algum belo trecho de música, ou a Charton trinar as suas notas de rouxinol francês; não vos
lembrais de coisa alguma, senão de que tendes a alma nos olhos, e os olhos noutros olhos, -
quando sentis no ouvido um zumbido pouco harmônico.
É um sujeito que acabou de cear à luta e que vos pergunta como vai a epidemia, ou vos
conta dois ou três casos que ele presenciou, e cuja impressão agradável deseja comunicar-vos
como vosso amigo.
Se deitais o óculo para algum camarote e começais a contemplar um talhe elegante ou
um colo acetinado, é justamente neste momento que um economista de polpa vos agarra para
discutir a magna questão da farinha de trigo, e do comércio do pão de rala. Ainda se fosse a
questão das carnes, - podia ter sua analogia!
Como é possível pois ter um pouco de poesia, e de espírito numa semelhante época?
Conto escrever duas linhas sem falar da epidemia reinante, dos atos de caridade, e das
enfermarias?
Se isto continua, daqui a pouco os jornais tornar-se-ão uma espécie de boletim; não há
nada que diga respeito à moléstia que não se anuncie.
Abri um jornal qualquer do dia, e vereis pouco mais ou menos o seguinte:
“O Sr. A, partiu para tal parte; o Sr. B, voltou de tal lugar; o Sr. C, vai para tal vila; o
Sr. D, tem dado providências; o Sr. E, ofereceu mil cobertores; o Sr.F, adoeceu, mas já ficou
bom.
E assim pôr diante; ninguém escapa a esta febre de publicação, que já se estendeu até
aos diversos períodos da moléstia.
No meio de tudo isto, as mulheres andam inteiramente absorvidas com a caridade, e
não pensam noutra coisa; e a tal ponto, que as moças bonitas já não aparecem, de tão
ocupadas que têm estado a fazerem trabalhos para o leilão de hoje.
O que há de ser este leilão, eu adivinho; há de ser uma linda festa, muito concorrida,
onde a caridade brilhará no meio de sorrisos graciosos e de olhares brilhantes; em que o amor,
a vaidade, o orgulho, todas essas paixões mundanas servirão de pedestal à bela estátua da
virtude celeste.
É aí, que as lindas mulheres vão retribuir à Providência, os tesouros de beleza e de
graça, que a natureza lhes deu; é aí que o seu belo olhar, o seu sorriso, o seu gesto elegante,
pedindo para os pobres, renderão a Deus um verdadeiro culto.
Hoje pois terá lugar uma larga remissão de pecadilhos, e uma justa penitência da parte
das moças bonitas e coquettes, que pôr tanto tempo zombaram impunemente dos protestos e
da paciência de seus adoradores.
Deixemos porém estes assuntos já esgotados, e voltemos ao teatro lírico, que é
atualmente o ponto de reunião mais interessante desta bela capital.
Ultimamente a nossa cena lírica ia perdendo muito no espírito público; embora
possuísse duas artistas de incontestável merecimento, o repertório estava já tão conhecido que
não oferecia a menor variedade.
Eu, pelo menos, ia ao teatro como um homem levado pelo hábito e acostumado a ouvir
todas as noites, recostado à janela, cantar nas moitas do seu jardim alguma ave melodiosa.
Uma noite, era um rouxinol que gorjeava as suas canções mimosas, - era a Charton.
Outra, era a sereia que embriagava com os sons palpitantes de sua voz harmoniosa, - era Emy.
Havia gente, que gastava o seu tempo a discutir o que era mais agradável e mais
artístico. Os homens de juízo e de bom gosto faziam como eu; admiravam a estrela do céu, e a
flor do campo, sem procurar saber qual era mais bela.
Agora porém parece-nos que o teatro lírico vai tomar outro aspecto; preparam-se novas
óperas, e trata-se de criar um novo repertório.
Além da Sapho que se deve representar breve, teremos com a Charton a Fidanzata
Corsa cujo ensaio começou ontem, e depois o Nabuco com E. La Grua e o Walter.
Para o dia 2 de dezembro fala-se numa composição francesa, e numa ópera em que
cantarão juntas as duas prima-donas rivais.
Com a chegada porém de Tamberlich e de Julienne Dejean, é que a nossa cena se
reanimará completamente; e que fará gosto assistir a uma dessas lutas do talento e da arte,
lutas cujos troféus são as camélias, as rosas, e os lindos ramos de flores que se abatem aos pés
do vencedor.
A vinda do Tamberlich, é sobretudo muito necessária, não só pôr não termos um bom
tenor, como pôr consideração para com as nossas patrícias.
Na verdade é uma injustiça imperdoável, que elas não tenham um cantor pôr quem se
entusiasmem; entretanto, que nós temos Emy, Arsene, e Anneta; nada menos do que três, isto
é; - um número suficiente para revolucionar o mundo.
Começo de novo a olhar para o fundo do meu tinteiro para ver se ainda há alguma
coisa.
Esperai! Lá vejo surgir o que quer que seja, - um pequeno ponto, um ponto quase
imperceptível e confuso, que vai pouco a pouco se tornando mais distinto, como uma vela que
desponta no horizonte entre a vasta amplidão dos mares.
Talvez nos traga coisas interessantes e curiosas; notícias que vos compensem da
insipidez destas páginas ingratas.
Oh! O ponto cresce, cresce! Vai tomando a fisionomia de uma espécie de porteiro de
secretaria, ou de bedel de academia.
Agora vejo-o distintamente; é um amigo velho!
-Bem-vindo, meu bom amigo, bem-vindo, amigo sincero dos folhetinistas e dos
escritores, bem-vindo, ponto final!
Não há remédio, senão ceder-vos o lugar que vos compete; ei-lo,
(.)
III
28 de outubro de 1855
Estava sem inspiração, o que me sucede muita vez.
Abri um livro, nem me lembra que livro era.
A primeira palavra que vi foi em latim; era um provérbio:
Res est magna tacere.
Façam idéia, pois, que impressão podia produzir uma semelhante máxima num espírito
que procurava inspirações.
Quando eu desejava um tema para falar, - e falar mais do que uma moça que discute
modas, ou um ministro que falta a uma promessa, - salta-me pela frente a sabedoria romana, e
manda-me calar da maneira mais impertinente.
Ora para um folhetinista que não quer absolutamente indispor-se com os sábios, não
havia remédio senão obedecer.
Resolvi portanto calar-me.
A resolução era a mais prudente, e também a mais cômoda possível mas tinha um
inconveniente.
Os meus leitores, e sobretudo as minhas maliciosas leitoras, eram muito capazes de
supor que me calava pôr não ter nada que dizer.
Isto seria uma quebra para a minha reputação de folhetinista; seria uma falta
imperdoável para aqueles que julgam que o espírito de um escritor de revista deve ser uma
esponja que durante a semana se embebeda e sature de idéias, e que ao domingo se esprema
no papel, e deite uma chuva de bonitos pensamentos e lembranças graciosas.
Ora, apesar de não pretender a glória desta comparação polipiana, contudo o meu
amor-próprio não podia consentir que me visse decaído das boas graças do leitor pôr causa de
três palavras latinas.
E três palavras latinas que eram pôr si mesmas uma mentira e uma contradição; porque,
se o tal sábio (Salomão ou Sócrates) estivesse bem convencido da utilidade de calar-se, não
teria a indiscrição de falar e dizer aquelas palavras: Res est magna tacere.
Mas é que todos os sábios deste mundo são assim; pregam muito boas máximas,
excelentes conselhos, e eles são os primeiros que fazem o contrário, e que dão o mau
exemplo.
Tudo isto porém nada tem com a questão; o que é verdade é que me achava na mais
difícil posição do mundo; pôr um lado a prudência e a sabedoria mandavam que me calasse,
pôr outro o leitor e o público exigiam que falasse e escrevesse.
Se houvesse um meio de combinar as duas coisas, e ficar com ambas, seria para mim
um salvatério.
Mas ainda estou pouco ao fato destes meios empregados pôr certos jornalistas e certos
políticos, novos Janos da civilização que passam pela sociedade, sorrindo para um e outro
lado com cada um dos cantos da boca.
Não me restava pois senão um expediente, e foi o que decidi-me a adotar.
Era preciso calar-me, visto que os sábios o ordenavam; mas, calando-me, restava-me o
direito de dizer ao menos os assuntos diversos sobre que me calava.
Assim nem incorro na censura de falador, nem também se pode dizer que não tenho
matéria sobre que escrever.
Uma das primeiras coisas sobre que eu me calo é sobre a questão atual da farinha de
trigo, sobre a questão do pão.
Com efeito, poucas matérias são tão importantes como esta, que afeta geralmente a
todos os diversos interesses da sociedade.
Os pobres e os ricos, os empregados, os ministros, os pretendentes, os confeiteiros, os
gastrônomos, as senhoras, o país, a colonização, a estatística, enfim tudo tem uma relação
imediata com esta grande questão.
Isto exige uma explicação.
Ei-la:
Há diversas espécies de pão: o pão branco e o pão de rala, o pão-de-ló, o pão d’ouro, e
muitas outras espécies menos importantes; há igualmente uma espécie indefinida, genérica,
ainda não caracterizada, e que se exprime ordinariamente pelo simples termo – o pão.
Esta última espécie é a mais importante; todos trabalham para ganhar o pão; o pobre
muitas vezes não tem o pão para a boca; e o operário vê-se obrigado a regar o pão com o suor
do seu rosto.
Já se vê que este pão não é feito nos fornos e nem se compõe de fermento, e que pôr
conseguinte não é o preço da farinha de trigo ou uma padaria central e privilegiada que o
tornarão mais fácil para o pobre.
Este pão é o pão do trabalho, do trabalho ativo, honesto e inteligente a que todo o
pobre deve dedicar-se com amor, deixando os hábitos de indolência e os vícios, que quase
sempre são a causa única da miséria.
Esta espécie pois exige do governo não só uma proteção à indústria do país, como uma
política ativa e regular, com as competentes casas de detenção, necessárias para o trabalho dos
velhos e mendigos.
A questão do pão-de-ló tem grande interesse também: este pão é muito saboroso e
muito suave ao paladar, mas pôr isso mesmo é um pouco mais caro do que os outros.
Dizem que o pão-de-ló – higienicamente falando – é um pouco indigesto; mas a
experiência tem mostrado o contrário: há estômagos que digerem um número extraordinário
de boas fatias.
A respeito desta espécie já pusemos em prática o sistema francês da administração
municipal da boulangerie parisienne.
Temos uma padaria central ou nacional, e diversas padarias provinciais, onde se fabrica
excelente pão-de-ló, que se distribui conforme o estômago de cada um.
Esta organização precisa de uma reforma radical, que demanda longos estudos e muita
prudência e reflexão da parte do governo.
Vejam pois que tinha razão quando disse que a questão do pão era uma das de maior
vulto da atualidade.
Quanta reforma importante, quanta ciência, quanto estudo e prática não exige esta
única palavra?
Que revolução econômica e social não são capazes de produzir estas três linhas
juntinhas e cobertas com um til à guisa de chapéu-de-sol?
E ainda isto não é tudo. Disse que o país, as senhoras, as famílias, a população, a
estatística, as modas, tudo enfim estava empenhado na questão do pão.
E vou prova-lo.
Mas... agora me lembro que não posso falar, que obriguei-me a calar, em deferência
aos provérbios latinos.
Portanto fiquem os leitores em jejum, a menos que algum dos tais impertinentes
provérbios não queira falar pôr mim, como pôr exemplo, este: Sine Cerere et Baccho friget
Vênus.
A bom entendedor meia palavra basta. Aquele friget que ali está com um ar tão sonso e
tão ingênuo é um brejeiro de conta; e se ele quisesse falar mostrar-nos-ia a influência legítima
do pão.
Porém é um verbo muito sisudo e discreto, e pôr isso não há meio de arrancar-lhe uma
explicação mais clara.
Há ainda outras muitas coisas sobre que podia falar, mas a respeito das quais me calo
para cumprir o prometido.
Podia falar da representação da Sapho, e dizer muita coisa bonita e interessante sobre a
nossa grega, que inspira com seu canto os nossos poetas, e com os seus olhos os nossos
diletantes.
Podia fazer um poema sobre esta história de um amor profundo, que se reproduz entre
nós todos os dias, e que acaba sempre pôr um passo de Leucate.
A única diferença que existe é na posição geográfica e na qualidade do passo de
Leucate moderno, o que é devido à diferença dos países e à diversidade das idades, dos usos e
costumes.
Assim, o passo de Leucate antigo era um rochedo à beira do mar; o da Idade Média era
um convento no cimo de uma montanha; o de nossos dias é um casamento de conveniência.
As Saphos de hoje, quando chegam ao triste desenlace de uma história de amor, sobem
ao altar e de lá precipitam-se...
Precipitam-se nos braços de um homem que não amam, precipitam-se na monótona e
triste existência de um casamento mal sucedido.
Mudados pois os nomes e os lugares, o drama é o mesmo, e as personagens idênticas.
Em continuação deste tema de Sapho moderna, podia falar-vos das Mulheres de
mármore, representadas sexta-feira no Ginásio, e pintar-vos uma bela cena da Grécia criada
pelo pincel do Bragaldi.
Haveis de saber o admirável efeito que produziu esta representação, a que deveis ir
assistir esta noite; lá conversaremos a gosto, e apreciaremos juntos a habilidade com que
todos os artistas desempenham os seus papéis.
Sobre o concerto do teatro lírico desta noite, também poderia escrever algumas linhas
recomendando-vos o talento da distinta harpista Mme. Belloc, que não foi feliz na
concorrência.
Mas a razão, eu a sei: nesta época de tantos desconcertos era impossível que fosse bem
aceito um concerto.
Agora, tendo eu me calado sobre tanta coisa, é justo que converse um pouco com as
minhas leitoras.
Tenho de lhes noticiar que se acha criada uma nova ordem – A ordem das violetas...
Esta ordem é dedicada especialmente à caridade, e teve sua origem no dia do leilão das
Belas-Artes, em um bouquet de violetas.
Quem a criou (o que para mim é segredo) teve uma feliz inspiração; tirou o ramo do
seio, distribuiu as flores à direita e à esquerda a quem as mereceu pôr caridade; e o sorriso de
seus lábios dizia neste momento: - Honni soit que mal y pense.
O caso é que a ordem está criada, e que agora o luxo, o chic, é trazerem os gentlemen
na casaca preta a modesta e linda florzinha, que tornou-se o emblema de uma tão santa
virtude.
Pôr falar nisto lembro-me que hoje tem lugar o segundo leilão das Belas-Artes.
Quando criaram este edifício, nunca pensaram que ele teria o nobre destino que lhe
deram domingo passado, e que o seu nome teria uma outra significação ainda mais
apropriada.
Com efeito, que mais belas-artes, do que as artes, as travessuras, os meios engenhosos,
que a caridade aí inspirou domingo passado às elegantes peregrinas da Glória?
Mas que há aí de admirar!
Eram brasileiras.
Se não sabeis o que quer dizer isto, ouvi-me.
Vou contar-vos uma história muito linda, um verdadeiro conto de fada.
Não sei se minha pena ainda se lembrará dessas coisas de outro tempo, desses contos
árabes tão cheios de poesia oriental.
Mas enfim lá vai.
Foi um dia...
Lancei os olhos sobre uma página solta deste folhetim, e lá vi o meu Cabrion.
Res est magna tacere.
Calo-me pois, e desta vez seriamente; dou um ponto na boca, ou antes, no papel.
IV
4 de novembro de 1855.
Desejava dirigir uma pergunta aos meus leitores.
Mas uma pergunta é uma coisa que não se pode fazer sem um ponto de interrogação.
Ora, eu tenho uma birra muito séria a esta figurinha de ortografia, a esta espécie de
corcundinha que parece estar sempre chasqueando e zombando da gente.
Com efeito, o que é um ponto de interrogação?
Se fizerdes esta pergunta a um gramático, ele vos atordoará os ouvidos durante uma
hora com uma dissertação de arrepiar os cabelos.
Entretanto, não há coisa mais simples de definir do que um ponto de interrogação;
basta olhar-lhe para a cara.
Vede: - ?
É um pequeno anzol.
Ora, para que serve o anzol?
Para pescar.
Portanto, bem definido, o ponto de interrogação é uma parte da oração que serve para
pescar.
Exemplo:
1º Quereis pescar um segredo que o vosso amigo vos oculta, e que desejais saber;
deitais o anzol disfarçadamente com a ponta da língua:
-Meu amigo, será verdade o que me disseram, que andas apaixonado?
2º Quereis pescar na algibeira de algum sujeito uma centena de mil réis; preparais o
cordel e lançais o anzol de repente:
-O sr. Pode emprestar-me aí uns 200 mil réis?
3º Quereis pescar algum peixe ou peixãozinho: requebrais os olhos, adoçai a voz, e pôr
fim deitais o anzol:
-Uma só palavra: tu me amas?
É preciso porém que se advirta numa coisa.
O ponto de interrogação é um anzol, e pôr conseguinte serve para pescar; mas tudo
depende da isca que se lhe deita.
Nenhum pescador atira à água o seu anzol sem isca; ninguém portanto diz pura e
simplesmente:
-Empresta-me 300 mil réis?
Não; é preciso que o anzol leve isca, e que esta isca seja daquelas que o peixe que se
quer pescar goste de engolir.
Alguns pescadores costumam deitar um pouco de mel, e outros seguem o sistema dos
índios que metiam dentro d’água certa erva que embebedava os peixes.
Assim, ou dizem:
-Meu amigo, o senhor, que é o pai dos pobres, (isca) empresta-me 300 mil réis?
(anzol).
Ou então empregam o segundo meio:
-Será possível que o benfeitor da humanidade, o homem que todos apregoam como a
generosidade personificada, que o cidadão mais popular e mais estimado desta terra, que o
negociante que revolve todos os dias um aluvião de bilhetes do banco, me recuse a miserável
quantia de 300 mil réis?
No meio do discurso já o homem está tonto de tanto elogio, de maneira que, quando o
outro lhe lança o anzol, é com certeza de trazer o peixe.
Ainda tinha muita coisa a dizer sobre esta arte de pescar na sociedade, arte que tem
chegado a um aperfeiçoamento miraculoso.
Fica para outra ocasião.
Pôr ora basta que saibam os meus leitores que o ponto de interrogação é um verdadeiro
anzol.
O caniço desta espécie de anzol é a língua, e o fio ou cordel a palavra; fio elástico
como não há outro no mundo.
Ás vezes, quando se olha para esta figurinha aleijada, o ponto de interrogação parece-
se mais com um daqueles corcundinhas, espécie de demoninhos maliciosos, de que falam os
contos de fada e que viviam a fazer pirraças aos homens.
É que de fato há ocasiões em que ele torna-se realmente um anãozinho zombeteiro e
impertinente, que leva a ousadia até a rir-se nas barbas de um pobre homem.
Haveis de ter encontrado pelo mundo algum desses homens que depois de terem feito
todo o mal que podem a outro, vêm com o riso nos lábios insultar a dor e envenenar com sua
baba a ferida mal cicatrizada.
Este homem atira à cara do outro o corcundinha de que vos falei, e dirige pouco mais
ou menos uma pergunta neste sentido:
-Então, meu amigo, pôr que não me conta os seus pesares? Não tem confiança em
mim?
Há também um certo ponto de interrogação que tem seus ares de mestre de latim ou de
professor de primeiras letras.
Este é carrancudo e severo; tem a voz áspera e fanhosa, como do homem que toma
rapé; e ordinariamente anda aos pulos.
Lembro-me perfeitamente que na minha aula de latim às vezes estava eu bem distraído,
quando ele saltava-me pela frente gritando:
-Hora-ae, vocativo?
Felizmente todas as coisas deste mundo têm verso e reverso; o ponto de interrogação,
que quase sempre é um anzol, um anão corcunda, ou um pedagogo, parece-se às vezes com
um desses meninos travessos e gentis, um desses anjinhos curiosos e inocentes que desejam
saber tudo.
Então ele pergunta, mas é como o filho à sua mãe; ri-se, mas é de prazer e de alegria; e
leva todo o tempo a brincar entre as palavras, como o colibri no meio das flores.
Vou mostrar-vos essa face risonha do ponto de interrogação, esse verso da medalha
cunhada pelos gramáticos.
É uma poesia que li, não sei onde, e que só tem um defeito: o de ser uma pergunta sem
resposta.
Ei-la:
A EMY LA-GRUA
Que geme de amor,
Que beija lasciva
O seio da flor,
Colhe em teus beijos
O brando suspiro,
A brisa furtiva
Os doces bafejos
De que eu me inspiro?
A onda ligeira
Que treme e palpita,
Que de feiticeira
Murmura e saltita,
Viu-te no sorrir
Que o lábio desata
Brincar e fugir
A doce volata?
A corda da lira
Que mal estremece,
E tênue suspira
Um som que entristece,
Bebe em teu pranto
O débil queixume,
Guarda de teu canto
O eco, o perfume?
Tens nos lábios teus
A flor da harmonia,
Que dás como Deus,
Aos sons melodia,
Acento divino,
A vaga o seu friso,
Às auras um hino,
E a tudo o sorriso?
Dos anjos soubeste
As notas sublimes
D’harpa celeste,
Com que tudo exprimes;
Ou deu-te o amor
A chama sagrada,
O grito da dor,
A voz inspirada?
Agora é muito natural que, depois de ter lido toda esta maçada, depois de ter virado e
revirado em todos os sentidos o ponto de interrogação, o meu leitor esteja desesperado pôr
saber qual era a pergunta que eu lhe pretendia fazer, e que deu causa a todo esse aranzel,
misturado de poesia.
É muito justo, e pôr isso vou satisfaze-lo.
Queria contar domingo passado.
É um conto a respeito das mocinhas brasileiras.
O prometido é devido.
Aí vai pois:
“Um dia a fada Beleza desceu à terra, resolvida a distribuir pôr todas as moças os
tesouros de graça e mimos que possuía.
“Mandou que seu irmão o anãozinho Amor chamasse uma mulher de cada nação, para
receber o dom que lhe coubesse.
“Quando todas estavam reunidas, a fada começou a distribuição dos seus presentes.
“Deus à Andaluza cabelos negros e tão longos que lhe podiam servir de mantilha.
“A Italiana olhos brilhantes e ardentes como as estrelas do céu de Nápoles.
“A Árabe um moreno excitante e uma pele doce e macia como as penas do marabu.
“A Inglesa uma aurora boreal para tingir as faces, os lábios e as espáduas.
“A Alemã pérolas para os dentes e miosótis para os olhos suaves.
“A Russa a distinção de uma princesa e a nobreza necessária para trazer um nome de
sete sílabas terminado pôr off.
“A Francesa a delicadeza do lírio com a graça e o mimo das rosas.
“Depois, passando aos detalhes, deitou a alegria nos lábios da Siciliana, o espírito na
cabecinha loira da Irlandesa, o bom senso no coração da Holandesa.
“Então a Brasileira, que pôr modéstia e pôr timidez estivera retirada a um canto, puxou
docemente a ponta da túnica azul da fada.
-“E eu?
-“Ah! tinha te esquecido.
-“É verdade.
“E agora como há de ser? Já dei tudo que trazia.
-“Mas eu fico sem nada?
A fada refletiu um momento: depois, chamando as outras com um sinal, disse-lhes:
-“Vós sois tão boas que espero haveis de reparar uma falta que cometi esquecendo na
distribuição a vossa irmã do Brasil. Eu vos peço pois que cada uma tire um pouco do presente
que lhe fiz, e o dê a esta menina tão modesta.
-Não era possível recusar.
“Todas as mulheres do mundo, com uma graciosa amabilidade, chegaram-se à
Brasileira, e deram-lhe, uma os seus cabelos negros, outra as estrelas dos seus olhos, esta o
sorriso de seus lábios, aquela a ondulação de suas formas acetinadas.
Eis a história que vos prometi contar domingo, quando vos falava das nossas patrícias.
Ainda sei outras tão lindas como esta, mas que a pena a correr não pode demorar-se para
contá-las.
Irão em ziguezague.
Não reparem se passo em silêncio pela representação de Sapho, apesar de ser a obra-
prima de Paccini.
Digam o que quiserem os maestros, não gosto dessa música de barulho, que abafa a
voz humana, e obriga os cantores a fazerem contorsões horríveis.
Na Norma e no Otelo, onde os cantores cantam, há prazer em ouvir-se uma bela voz,
que brinca nuns lábios risonhos, desatar-se em ondas de harmonia, ou desprender-se de um
seio que se ergue apenas numa ondulação suave.
Mas nestas óperas, onde a voz é um grito, onde o canto é uma convulsão, as notas são
arrancadas com esforço, a boca se contrai, e a melodia desaparece num estrépido que atordoa;
parece que assistimos ao martírio do cantor, a um suplício horrível da beleza, do talento e da
inspiração.
Não; pôr mais que digam, a voz humana não foi feita para essa música de estrépito. Se
desejais ouvir a natureza em suas convulsões, assisti ao espetáculo da tempestade numa costa
desabrida, mas não ide ao teatro pedir a um cantor que vos venda pôr uma mesquinharia de
dinheiro as centelhas divinas de seu gênio e de sua alma.
O talento é uma vida, é a vida d’alma, da inteligência e do pensamento; nenhum artista
tem pois o direito de cometer esse suicídio moral, e de esperdiçar, como Emy La-Grua, numa
só noite, a seiva e o viço de uma existência inteira.
Quando assisti à primeira representação da Sapho, pareceu-me ver um quadro, no qual
um pintor de gênio, querendo tocar o sublime, derramasse toda a sua inspiração e gastasse
todas as tintas de sua palheta.
Havia alguns traços belos, porém no mais eram tons carregados, claros e escuros pouco
harmoniosos, perfis ásperos e destacados sobre um fundo sombrio e confuso.
Depois de todo este preâmbulo, é necessário que conte aos meus leitores os
acontecimentos notáveis da semana.
Todos os reduzem a um dia (o sábado), a um acontecimento (a chegada do paquete), e
a uma notícia, que anda de boca em boca e de jornal em jornal:
A TOMADA DE SEBASTOPOL
Escrevendo-a, não traço unicamente a crônica da semana, mas a história do mundo
durante um ano.
(.)
V
11 de novembro de 1855.
Estou decidido a não escrever hoje a minha revista, e como os meus leitores não
quererão dispensar o seu folhetim dos domingos, não há remédio; vou fazer um romance.
Um romance!
Não é qualquer coisa, é uma história dividida em capítulos, que principia rindo e acaba
chorando, ou vice-versa; e na qual devem entrar necessariamente um namorado, uma moça
bonita, um homem mau, e diversas outras figurinhas de menos importância.
Um romance em regra só pode começar de manhã ao romper do dia, de tarde ao rugido
da tempestade, e de noite ao despontar da lua: excetuam-se os romances domésticos, que não
têm hora certa, e que regulam-se pelo capricho do autor.
Ora, o romance que eu pretendo fazer está inteiramente fora da regra, porque não tem
começo, nem fim; e quanto aos personagens limitam-se a dois unicamente.
Enfim, sem mais preâmbulo, vou contá-lo aos meus leitores, que lhe darão o apreço
que entenderem.
Foi há muito tempo.
A Malibran, a bela e poética Malibran, cismava sozinha, com a cabeça indolentemente
caída sobre o ombro, e os grandes olhos negros e melancólicos vagando no espaço.
A noite estava límpidas e serena; as estrelas cintilavam no azul do céu; o vento que
suspirava na ramagem das árvores mal quebrava o silêncio das horas mortas.
De repente os lábios da artista se entreabriram num sorriso, e um gorjeio sonoro, um
trilo brilhante começou a brincar nas covinhas da boca, e pôr fim foi aninhar-se no cálice de
uma margarida que crescia num vaso.
Um momento depois, o olhar da Malibran animou-se, a graça e a faceirice do sorriso
desapareceram com a expressão ardente e apaixonada que iluminou o seu semblante.
A voz desprendeu-se vibrante e profunda do seio que palpitava, e soltou-se numa
dessas volatas magníficas, num desses gritos d’alma que não se exprimem.
A nota pairou um momento nos ares; depois oscilou ao sopro da brisa, e caiu entre as
folhas de um botão de rosa, como uma gota do orvalho da noite.
Até aqui o meu romance é muito simples e nada tem que admire.
São duas notas gêmeas, filhas do mesmo sorriso, criadas pelo mesmo sentimento, duas
irmãs que a sorte deste mundo separou, dando-lhes um destino diverso.
Mas o que segue é o mais interessante; agora é que o romance vai começar.
A Malibran, apesar de artista e de achar-se então na flor da idade, aborreceu-se de
cismar, e teve sono; o sono, assim como a fome, é um dos prosaísmos deste mundo a que
ninguém escapa, seja rei ou poeta.
Logo que sentiu que as pálpebras lhe pesavam, a bela artista lançou um último olhar às
flores do céu e às estrelas da terra, e fechou a sua gelosia.
Houve um momento de silêncio.
Depois a brisa travessa roçou ligeiramente as suas asa pelas folhas; e uns dons
maviosos, um canto trinado e argentino exalou-se do seio de uma flor.
Era o gorjeio da Malibran, que balouçando-se no cálice da margarida, trilava uma ária
do Barbeiro de Sevilha, como se estivesse na avant-scène do teatro lírico.
Mal tinha ele começado, quando sentiu-se um farfalhar de folhas agitadas pelo vento, e
viu-se a rosa erguer a fronte de princesa, volver a haste com um meneio altivo, e deixar cair
do seio uma nota límpida, sonora e brilhante, que ofuscou inteiramente o pobre gorjeio.
Desta vez era a volata da Malibran, que adormecida entre as folhas da rosa despertava
de repente e se lançara no espaço, julgando que ia fazer estremecer o salão da Ópera com a
tríplice salva de aplausos do costume.
Mas, em lugar desses admiradores entusiastas, não havia ali senão dilettanti modestos
que apenas sabiam aplaudir com o silêncio; e pôr isso a viração calou-se, e as águas nem
sequer murmuraram.
Entretanto a margarida teve inveja da rosa; o gorjeio teve ciúme de seu irmão, e para
vingar-se abandonou o seio da flor, e transformou-se num rouxinol.
Largou-se então a cantar, a trinar, a fazer arrulhos doces e mimosos, como sons de
pérola que corressem entre os dedos afilados de uma menina graciosa; tudo para ele era um
hino de prazer: de um som fazia um canto, de um canto um poema de harmonia.
Todos o admiravam; porém, quando julgava o seu triunfo certo, viu deslizando nas
águas tranqüilas do lago o cisne da Itália, que modulava o seu último canto, essa criação
poética imaginada para exprimir o canto d’alma que se despede da terra e cria asas para
remontar ao céu.
O cisne soltou um ou dois harpejos, cheios de melancolia e de sentimento; e bastou isto
para que o rouxinol batesse as asas e cortasse os ares num vôo rápido.
Aqui termina a primeira parte do romance. Se quereis saber o resto, continuai a ler; se
não, voltai a folha, e lede os anúncios, que não deixam de ter o seu interesse, sobretudo para
quem tem de alugar amas de leite.
Voltem, aos assunto.
O rouxinol voou, até que chegou a uma bela terra toda coberta de loureiros em flor e de
fustes de colunas de mármore espalhadas a esmo.
Era a Grécia, se bem me lembro.
Corria perto, entre um montão de ruínas tapeçadas de hera e de musgo, o Rio Alfeu, o
amigo e colega dos poetas da Arcádia.
A alguns passos destacava-se um grupo de estátuas, que pelo primor da carnação e pela
delicadeza do perfil pareciam ter saído do buril de Fídias ou Praxíteles.
O rouxinol pousou num ramo de árvore, e olhou as estátuas batendo as asas de
contente; mas voltando-se viu o cisne que ele tinha deixado na Itália, banhando-se nas águas
do Alfeu.
Ambos lançaram-se ao grupo das estátuas: o rouxinol aninhou-se no seio de uma ninfa,
cujo nome não me lembro; o cisne pousou no ombro de uma Safo.
De repente as duas estátuas animaram-se, estremeceram, e pôr um movimento
instintivo, elas que tinham vivido sempre juntas, elas que eram irmãs de arte e de pensamento,
elas que eram feitas do mesmo mármore, voltaram-se as costas e separaram-se.
Assim viveram muito tempo, até que um dia ouviu-se um hino de amor, e as duas
estátuas foram-se aproximando a pouco e pouco, sorriram uma para a outra, e deram-se as
mãos.
A música que se ouvia era o spartito de Romeu e Julieta; e as duas estátuas animadas
pareceram-nos...
Adivinhem os leitores, ou antes esperem pelo dia 2 de dezembro, em que nos consta se
representará Romeu e Julieta: aí acharão o fim deste romance, se é que ele tem fim.
Depois de ter escrito um romance, é duro fazer uma crônica, ainda mesmo de uma
semana como esta, em que nada de bom há a dizer.
No teatro lírico tem-se representado o Nabuco, com geral aceitação. O Walter é um
excelente artista, e tem um canto cheio de expressão e de elegância; quando se o ouve
conhece-se que há nela mais do que bela voz e boa figura, há alma e sentimento.
A Grua canta perfeitamente, canta como ela costuma cantar, mas, com licença dos
admiradores, e portanto com licença de mim mesmo, o folhetinista que viu o Otelo, a Norma,
Sapho e Nabucodonosor, tem o que quer que seja a dizer sobre o desempenho desses
diferentes papéis.
O artista é como o Proteu da fábula; deve ter o dom de metamorfosear-se a cada
momento; deve mudar de figura, de sentimento, de expressão, assim como muda de vestuário.
Norma é uma mulher selvagem que ama com essa paixão violenta e profunda das
naturezas primitivas, que sacrificou ao seu amor e crença de seus pais, a sua virgindade e os
votos de sua religião; e tudo isto pôr um inimigo de sua pátria.
Norma é uma amante criminosa, desprezada, que procura vingar-se a todo o transe, que
ameaça no seu desespero a sua rival, a seu amante, e a seus filhos; e que só à beira do túmulo,
junto à fogueira, torna-se mulher, e perdoa.
Safo é um espírito cultivado, uma alma de poeta, que sente todos os extremos do amor,
e que o desprezo leva à morte, não pôr uma vingança, mas pôr um sacrifício voluntário, pôr
um desapego à vida.
A respeito de Abigail não falemos; caráter ambicioso, mais orgulho do que amor,
condena-se à morte pôr despeito ou antes remorso.
Entretanto, mudado o vestuário, há na Safo o que quer que seja do ciúme da Norma,
assim como em Abigail se reconhecem ainda uns longes da musa grega e da sacerdotisa
druídica.
Faltava-me defender as Mulheres de Mármore de uma acusação injusta de imoralidade
que se lhes tem feito.
Mas o público que tem concorrido ao Ginásio, e os diversos folhetinistas que elogiam
constantemente o drama, me dispensam de gastar tempo e papel.
É preciso saber como entende-se essa imoralidade de que se trata; porque nós já não
estamos no tempo em que as meninas de 20 anos ficavam com as faces em brasa quando um
pai um pouco desbocado falava pôr descuido em amor ou casamento.
Hoje as moças de 10 anos geralmente discutem as diversas teorias do amor, e sabem o
que é preciso para não ignorar coisa alguma; falam do casamento como de uma partida de
prazer; lêem romances franceses, e riem-se com muito gosto quando se representam as
proezas de Richelieu.
VI
18 de novembro de 1855
Desta vez estou de verve; vou escrever um livro.
Se bem me lembro, já dei aos meus leitores um folhetim-romance, um folhetim-
comédia, um folhetim em viagem, um folhetim-álbum.
Faltava-me porém dar um folhetim-livro, e pôr isso quero hoje realizar essa nova
transformação do Proteu da imprensa.
De fato o folhetim já pôr si é um livro; é o livro da semana, livro de sete dias, impresso
pelo tempo e encadernado pela crônica; é um dos volumes de uma obra intitulada o Ano de
1855.
Neste volume a cidade do Rio de Janeiro faz as vezes de papel de impressão, os
habitantes da corte são os tipos, os dias formam as páginas e os acontecimentos servem de
compositores.
Mas não é disto que se trata, e sim do projeto gigantesco que concebi de escrever hoje
um livro-folhetim.
Há de ser um livro completo, precedido de um prólogo, dividido em capítulos, e escrito
com toda a gravidade de um homem predestinado a visitar a posteridade envolvido em uma
capa de couro e na companhia das traças, das teias de aranha e da poeira das estantes.
Preparem-se pois os meus leitores, limpem os vidros dos óculos, tomem a sua pitada de
rapé, e... aí têm o livro.
Pôr ora é apenas o título:
LIVRO DA SEMANA
ou
HISTÓRIA CIRCUSNTANCIADA DO QUE SE PASSOU
DE MAIS IMPORTANTE
nesta
CIDADE DO RIO DE JANEIRO
desde
O DIA 11 DO CORRENTE MÊS, EM QUE SUBIU AOS ARES
COM GERAL ADMIRAÇÃO, O BALÃO
AEROSTÁTICO ATÉ O DIA DE HOJE 18
compreendendo
todos os acontecimentos mais notáveis
da semana, não só a respeito de
teatros e divertimentos,
como em relação à po-
lítica, às artes
e ciências
OBRA CURIOSÍSSIMA
em todos os sentidos
escrita
no ano da graça de nosso senhor Jesus Cristo
de 1855
Pôr
UMA TESTEMUNHA OCULAR
RIO DE JANEIRO
MDCCCLV
Tipografia do Diário do
Rio de Janeiro.
Ao título segue-se a dedicatória.
Há certas obras em que a dedicatória é um simples luxo; em outras porém, como nesta,
é de rigor.
Uma dedicatória deve ser simples e verdadeira.
Pôr exemplo:
AOS MEUS RESPEITÁVEIS LEITORES.
O. D. C.
Em sinal de consideração e preguiça de escrever o folhetim de hoje.
O AUTOR.
(Ora muito bem: quanto a título e dedicatória, estamos arranjados; passemos à terceira
página, em que naturalmente deve vir o prólogo.
O prólogo é o bom dia de um escritor ao seu leitor, é o aperto de mão amigável de um
sujeito que é apresentado a outro a quem não conhecia; é a cortesia do orador que
cumprimenta o seu auditório antes de começar o discurso.
Vamos ver como nos saímos do prólogo: tenha o leitor a bondade de passar à outra
página).
PRÓLOGO
Não é a ambição de glória que me faz dar hoje à luz este pequeno Livro da Semana,
fruto de algumas horas de trabalho; é unicamente o desejo de tornar-me útil no meu país e de
concorrer com um óbulo para a grande obra da nossa literatura pátria, que induziu-me a
registrar os fatos importantes da semana que acabou ontem 1.
Se o público acolher bem este meu primeiro filho, talvez que animado pela sua
benevolência me resolva a continuar na carreira encetada. Do contrário consolar-me-ei com a
consciência de ter cumprido o meu dever.
Rio, 18 de novembro.
O AUTOR.
Depois do prólogo, o autor costuma fazer uma introdução, na qual apresenta o plano
geral de sua obra, e prepara o espírito do leitor para seguir o desenvolvimento das idéias
contidas na sua obra.
Passemos pois à
INTRODUÇÃO
Esta semana que acabou apresentou uma face curiosa pelo lado da insipidez.
Portanto o leitor não deve esperar uma descrição poética, nem mesmo essa variedade
que encanta e deleita.
Omnis variatio delectat2.
Apenas procurarei fazer a narração fiel, não desses boatos sem fundamento que pôr aí
correm, mas daquilo que eu próprio vi e ouvi3.
Começarei pelo começo.
1
O autor alude naturalmente à representação da Fidanazata Corsa, à subida do balão, ao desenvolvimento e
progresso da ciaque do teatro lírico, que sem dúvida teve um grande alcance para o futuro do país.
2
A citação latina, além de dar ao livro um certo cunho de erudição, é uma linha que se poupa e que o autor
enche à custa dos que o precederam. (Nota do folhetinista).
3
O autor é míope, e quase sempre anda distraído.(Nota do público).
Feita a introdução, passa-se ao primeiro capítulo, que é uma espécie de segunda
introdução.
Alguns autores usam capítulos com sumários; outros apenas dão uma idéia geral
daquilo sobre que vão tratar.
O meu autor é deste último sistema.
Eis o índice dos capítulos, que forma a 4ª página:
Cap. 1º - Em que o autor mostra pôr que feliz acaso lhe veio a idéia de escrever este
livro.
Cap. 2º - Em que o autor, depois de refletir profundamente; resolve-se a começar pelo
princípio e acabar pelo fim.
Cap. 3º - Que serve para mostrar como o domingo e a segunda-feira foram dois dias
muito insípidos.
Cap. 4º - Como o autor foi ao teatro lírico terça-feira ouvir música, e voltou muito
desgostoso pôr causa da chuva, que fez com que a casa estivesse inteiramente vazia.
Cap. 5º - No qual se contam duas viagens importantes que fez o autor esta semana,
uma ao redor da baía no vapor Marques de Olinda, e outra ao redor de uma mesa de almoço
ao vapor do champanha.
Cap. 6º - Em que o autor, não tendo mais nada que contar, começa a dar tratos à
imaginação para descobrir alguma boa idéia e encher o resto das páginas que lhe faltam.
Cap. 7º - Como o autor, sempre à busca da sua idéia, começa a roer as unhas, indício
certo de que a imaginação já vai se iluminando.
Cap. 8º - No qual o autor lembra-se finalmente que podia falar da Grua e da Charton;
mas pôr fim resolve-se a fazer reticência.
Cap. 9º - Em que o autor trata de diversas coisas, e especialmente de encher papel.
Cap.10º - Que serve de conclusão à obra.
Agora, eu podia escrever todos estes capítulos: mas de que servia?
Todo o mundo sabe que um livro hoje em dia não é mais do que o título, o prólogo, a
introdução, e o índice dos capítulos.
O leitor passa os olhos rapidamente, folheia o livro, e apenas de espaço a espaço
encontra uma boa idéia, um trecho interessante.
O mais não vale a pena ler, porque reduz-se a uma meia dúzia de palavras, a uma
caterva de citações.
Suponha portanto o leitor que, depois de ter lido o título, folheia o nosso livro, e lê
unicamente os seguintes trechos:
Afonso Karr diz não sei onde que o elogio não tem merecimento, senão quando aquele
que elogia podia dizer o contrário, e aquele que é elogiado podia consentir que se fizesse uma
censura.
Eu, que não posso deixar de aceitar este preceito de mestre, que o acho muito justo e
razoável, sempre que censuro é unicamente para dar valor ao elogio quando chegar a ocasião
de faze-lo.
Quando censurar a Charton, é unicamente para mostrar que os elogios que lhe fizeram
foram merecidos; quando fizer um reparo a respeito da Grua, é somente porque desejo ter
ocasiões de lhe fazer todos os elogios.
Demais uma censura tem sua graça e seus chistes, enquanto que o elogio constante é de
uma monotonia insuportável.
Quem poderia aturar um céu azul, um sol brilhante e um dia límpido e sereno, se não
fosse a chuva e a temperatura de que lhe servem de contraste?
Quem admiraria as moças bonitas, se não fosse a quantidade de mulheres feias que
existe neste mundo, e que se encontra a cada passo?
Quem apreciaria certas iguarias, se não fosse a pimenta, a mostarda, e o tempero de
que são adubadas?
O mesmo sucede com o elogio; a censura é a pimenta que lhe dá o sainete, é a fome
que o faz saboroso, é a tempestade que quando se desfaz deixa o céu mais límpido e sereno.
Acho esta teoria tão boa que estou resolvido, pelo bem de todos, a sacrificar-me e a não
elogiar a mais ninguém.
De agora em diante arrogo-me o direito de crítico, e começo a fazer censuras pôr conta
dos elogios que já fiz e dos que possa vir a fazer.
E portanto comecemos.
Censuro em primeiro lugar os admiradores das cantoras que não admitem a menor
observação, pôr mais delicada que seja.
Parece que ´`a força de olharem para o sol ficaram deslumbrados, e não vêem pôr
conseguinte aquilo que salta aos olhos.
Censuro depois as próprias cantoras, porque julgam que é, exagerando-se que hão de
realçar o seu merecimento.
Todos nós sabemos que isto nada vale; há bem pouco tempo que o céu mesmo nos deu
uma lição mostrando-nos ao meio-dia uma estrela junto do sol.
O sol brilhava, mas a estrela derramava sua luz calma e serena.
Finalmente censuro-me a mim mesmo, porque não penso como os outros; e censuro ao
meu leitor pôr não ter melhor empregado o seu tempo.
Finalmente censuro-me a mim mesmo, porque não penso como os outros; e censuro ao
meu leitor pôr não ter melhor empregado o seu tempo.
VII
25 de novembro de 1855
Falemos das flores.
O que é uma flor?
Será esta criação vegetal que na primavera se abre do botão de uma planta?
Não: a flor é o tipo da perfeição, é a mais sublime expressão da beleza, é um sorriso
cristalizado, é um raio de luz perfumado.
Pôr isso há muitas espécies de flor.
Há as flores do céu – as estrelas, - que brilham à noite no seu manto azul, como os
olhos de uma linda pensativa.
Há as flores do ar – as borboletas, - que têm nas suas asas ligeiras as mais belas cores
do prisma.
Há as flores da terra – as mulheres, - rosas perfumadas que ocultam entre as folhas os
seus espinhos.
Há as flores dos lábios – os sorrisos, lindas boninas que o menor sopro desfolha.
Há as flores do mar – as pérolas, - filhas do oceano que saem do seio das ondas para se
aninharem no seio de uma mulher morena.
Há as flores da poesia – os versos, - às vezes tão cheios de perfumes e de sentimentos
como a mais bela flor da primavera.
Há as flores da religião – as preces, - modestas violetas que perfumam a sombra e o
retiro.
Há as flores da harmonia – os gorjeios – que brincam nos lábios mimosos de uma
bonequinha sedutora.
Há as flores do espírito – os ziguezagues, - que nascem sobre o papel como rosas
silvestres e sem cultura.
(Não falo dos nossos ziguezagues, que, quando muito, são flores murchas).
Há enfim uma espécie de flor que é tão rara como a tulipa negra de Alexandre Dumas,
como o cravo azul de Jean-Jacques, como o crisântemo azul de George Sand.
É a flor da vida, este sonho dourado, este puro ideal a que todos aspiram e de que tão
poucos gozam.
Porque a flor da vida apenas vive um dia, como as rosas da manhã que a brisa da tarde
desfolha.
E quando murcha, deixa dentro d’alma os seus perfumes, que são essas recordações
queridas que nos sorriem ainda nos últimos tempos da existência.
Para uns a flor da vida nasce nos lábios de uma mulher; para outros no seio de um
amigo.
Feliz do caminhante que à beira do bosque pôr onde passa colhe esta florzinha azul,
espécie de urze cingida de uma coroa de espinhos.
Muitas vezes, depois de muitas fadigas, quando já tem as mãos feridas dos espinhos, e
que vai colher a flor, ela se desfolha.
O vento soprou sobre ela, ou um verme roeu-lhe os estames.
Até aqui os meus leitores têm visto o mundo pelo prisma de uma flor; mas não se
devem iludir com isso.
Algum velho político de cabelos brancos lhes dirá que isto são simples devaneios de
uma imaginação exaltada.
A flor é a poesia, mas o fruto é a realidade, é a única verdade da vida.
Enquanto pois os poetas vivem à busca de flores, os homens sérios e graves, os homens
práticos só tratam de colher os frutos.
Eles vêem desabrochar as flores, exalar os seus perfumes, e esperam como o hortelão
que chegue o outono e com ele o tempo da colheita.
E na verdade, a flor encerra sempre o germe de um fruto, de um pomo dourado, que
outrora perdeu o homem, mas que é hoje a sua salvação.
A explicação disto me levaria muito longe, se eu não me lembrasse que até agora ainda
não escrevi uma linha de revista, e ainda não dei aos meus leitores uma notícia curiosa.
Mas, a falar a verdade, não me agrada este papel de noticiador de coisas velhas, que o
meu leitor todos os dias vê reproduzidas nos quatro jornais da corte, em primeira, segunda e
terceira edição.
Poderia dizer-lhe que depois da epidemia vai-se revelando uma outra epidemia de
divertimentos, realmente assustadora.
Fala-se em clube artístico, em baile mascarado no teatro lírico, em passeios de
máscaras pelas ruas, numa companhia francesa de vaudevilles, e em mil outras coisas que
tornarão esta bela cidade do Rio de Janeiro um verdadeiro paraíso.
Neste tempo é que os folhetinistas baterão as asas de contentes, e não terão trabalho de
escrever tiras de papel; preferirão ir ao baile, ao passeio, ao teatro, colher as flores de que hão
de formar o seu bouquet de domingo.
Enquanto porém não chega esta bela quadra, essa primavera dos salões, esse abril
florido da nossa sociedade, não há remédio senão contentarmo-nos com o que temos, e em
vez de rosas, apresentar ao leitor as folhas secas do ano.
A respeito de teatro, não falemos; é uma casa em cujo pórtico (digo pórtico
figuradamente) a prudência parece ter gravado a inscrição de Dante: - Guarda e passa.
Se desprezais o aviso e entrais, daí a pouco tereis razão de arrepender-vos.
Sentai-vos em uma cadeira qualquer: a vossa direita está um guísta; a vossa esquerda
um chartonista.
Levanta-se o pano: representa-se a Norma ou a Fidenzata Corsa; canta uma das duas
prima-donas, uma das duas prediletas do público.
-Bravo! grita o gruísta entusiasmado.
-Que exageração! diz o chartonista estirando o beiço.
-Divino!
-Oh! é demais!
-Sublime!
-Insuportável!
E assim neste crescendo continuam os dois dilettanti, de maneira que o vosso ouvido
direito está sempre em completa oposição com o vosso ouvido esquerdo.
Cai o pano.
No intervalo conversai um pouco com os vossos vizinhos.
-É preciso ser completamente ignorante, diz o gruísta com o aplomb de um maestro,
para não se apreciar a sublimidade do talento desta mulher!
Vós, meu leitor, que não quereis assinar um termo de ignorante, não tendes remédio
senão confessar-vos gruísta, e em lugar de dois pontos de admiração dais três.
-Com efeito, é uma artista exímia!!!
Apenas acabais a palavra, quando o chartonista vos interroga do outro lado.
-É possível que um homem de gosto e de sentimento admita semelhantes exagerações?
Ficais embatucado; mas, se não quereis passar pôr homem de mau gosto, deveis
imediatamente responder:
-Com efeito, não é natural.
Daí a um momento o vosso vizinho da direita retruca:
-Veja, todos os camarotes da 4ª ordem estão vazios.
-É verdade!
Torna o vizinho esquerdo:
-Com esta chuva, que casa, hem!
-Boa!
Agora acrescentai a isto as desafinações do Dufrene, a rouquidão do Gentile, os
cochilos do contra-regra, e fazei idéia do divertimento de uma noite de teatro.